A VONTADE HUMANA E O QUE ELA DEVE RENUNCIAR – SÃO JOÃO DA CRUZ

Os Três Fiat
A VONTADE HUMANA E O QUE ELA DEVE RENUNCIAR – SÃO JOÃO DA CRUZ
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CAPíTULO XXII
Danos causados à alma que põe o gozo da
vontade nos bens naturais.
1. Entre os danos e proveitos dos diversos gêneros de gozo já mencionados, há muitos que são comuns
a todos. Entretanto, como provém diretamente da aceitação ou da renúncia do gozo, seja ele de qualquer
gênero, aponto aqui, em cada uma das seis divisões de que vou tratando, alguns danos e proveitos determinados,
embora também se achem nas outras, por serem, como digo, anexos ao gozo encontrado em
todas. Minha intenção principal é explicar os males e proveitos particulares que traz à alma a aceitação ou
a recusa do gozo em cada coisa. Dou-lhes o nome de particulares, porque são causados primária e imediatamente
por tal gênero de gozo, e não podem ser produzidos por outro gênero senão de modo secundário e mediato. Por exemplo: o dano da tibieza espiritual é resultado direto de todo e qualquer gênero de gozo, e assim é dano geral, comum às seis divisões já ditas;
o da sensualidade, porém, é dano particular nascido diretamente do gozo dos bens naturais.

2. Portanto, os danos espirituais e corporais que direta e efetivamente provêm à alma que põe o seu gozo
nos bens naturais, podem ser reduzidos a seis principais: o primeiro é vanglória, presunção, soberba e desprezo do próximo.
Com efeito, se alguém põe a sua estima exclusivamente num objeto, não pode deixar de tira-la dos outros.
Daí se segue, no mínimo, verdadeira desestíma dos demais. Quando se concentra a
estima em algo, retira-se o coração do resto, por causa daquele apreço particular; e dessa real desestima é
muito fácil cair no desprezo intencional de algumas coisas, em particular ou em geral, não só no coração,
mas também expresso pela língua, dizendo: tal ou tal pessoa ou coisa não é como tal ou tal outra.
O segundo dano consiste em mover o sentido à complacência e deleite na sensualidade e luxúria. O terceiro é cair
em adulação e lisonja, onde há engano e vaidade, conforme diz Isaias: “Povo meu, os que te louvam, esses
mesmos te enganam” Os 3,12). E a razão é esta: se algumas vezes se pode louvar com verdade as graças
e os encantos exteriores, todavia, seria difícil não resultar daí algum prejuízo, seja expondo O próximo à
vã complacência e gozo inútil, seja envolvendo nisso afetos e intenções imperfeitas. O quarto dano, que é
geral, faz a razão e o sentido interior perderem a sua lucidez, como sucede também no gozo dos bens temporais,
e de certo modo com muito maior intensidade nos bens de que tratamos. Porque estes bens naturais são mais conjuntos ao homem que os temporais, e assim o gozo deixa sua impressão, vestígio e assento com mais eficácia e presteza, fascinando o sentido mais
profundamente. A razão e o juízo, então, obscurecidos por esta nuvem tão próxima de afeição e gozo, perdem a liberdade.
Daí nasce o quinto dano: a distração da mente nas criaturas. Esse, por sua vez, produz o sexto, a frieza e frouxidão de espírito:
dano que provém geralmente de todas as espécies de gozo e costuma chegar às vezes ao ponto de causar na alma
grande tédio e tristeza nas coisas de Deus, até vir a borrecê-las. Neste gozo perde-se infalivelmente a pureza de espírito, ao menos no princípio; porque, se alguma devoção se experimenta, será muito sensível e grosseira, pouco espiritual, ainda menos interior e
recolhida, consistindo mais no gosto sensitivo do que na força do espírito. Este, na verdade, está tão imperfeito, que é incapaz por isso mesmo de destruir o hábito de tal gozo. Ora, é suficiente um hábito desordenado para impedir a pureza do espírito, embora a
alma não consínta de modo positivo nos atos desse gozo. Perceber-se-á ter este fervor sua sede, de certo
modo, muito mais na fraqueza do sentido do que na força do espírito. Isto será bem comprovado nas ocasiões, vendo-se qual a perfeição e fortaleza da alma, conquanto muitas virtudes possam existir, não o nego, juntamente com numerosas ímperfeições. Mas afirmo que
a suavidade e a pureza do espírito interior não permanecem conjuntamente aos gozos não reprimidos;
porque reina a carne militando contra o espírito, -e embora este não perceba o dano, padece, pelo menos, oculta distração.

3. Voltando, porém, ao segundo dano, – que encerra inúmeros males, os quais não se podem descrever com
a pena ou exprimir com as palavras, – não nos é desconhecida nem oculto até onde ele vai, e quão
grande seja a desventura nascida no gozo colocado na formosura e graças naturais. Por este motivo, se
contam cada dia tantas mortes de homens, tantas honras perdidas, tantas fortunas dissipadas, tantas emulações e contendas, tantos adultérios, rornícações e pecados de luxúria, enfim, tantos santos precipitados no abismo, cujo número pode ser comparado à terça parte
das estrelas do firmamento que foram derrubadas na terra pela cauda da serpente (Ap 12,4). Vemos o ouro fino, despojado do seu brilho e esplendor – esquecido na lama; os ínclitos e nobres de Sião que se vestiam de ouro fino, reputados como vasos de barro e
feitos em pedaços (Lm 4,1-2). Até onde não penetra o veneno desse mal?

4. E quem não bebe pouco ou muito deste cálice dourado que oferece a mulher babilônica do Apocalipse? Sentando-se ela sobre aquela grande besta que tinha sete cabeças e dez cornos, dá a entender não haver alto nem baixo, nem justo ou pecador, a quem
não tenha apresentado o seu vinho, cativando mais ou menos o coração; pois, como está ali escrito dela,
todos os reis da terra beberam do vinho de sua prostituição (Ap 17,3-4). A todos os estados e condições
abraça e até mesmo o supremo e nobilíssimo santuário do sacerdócio divino, colocando, como disse Daniel, a
sua abominável taça no lugar santo (Dn 9,27). Dificilmente se encontra homem bastante forte que não
seja levado a beber pouco ou muito do vinho desse cálice, isto é, deste gosto vão a que nos referimos
agora. Esta é a razão de se dizer que todos os reis da terra foram embriagados por esse vinho; porque bem
poucos se acharão, por santos hajam sido, que não se tenham deixado seduzir e inebriar, mais ou menos, por
essa bebida de gozo e prazer da formosura e das graças naturais.

5. Esta expressão – “eles se embriagaram” – é digna de nota; com efeito, o vinho dos prazeres, por pouco
que dele se prove, encanta e obscurece a razão, como acontece aos que estão embriagados. E é tão violento
o seu veneno, que corre perigo a vida da alma se esta não toma imediatamente poderoso antídoto que o
lance fora o mais depressa possível. Porque a fraqueza espiritual, crescendo sempre, reduzirá a mesma alma
a estado tão miserável que pode ser comparado ao de Sansão, a quem foram arrancados os olhos e cortados
os cabelos onde residia sua fortaleza; como ele ver-se-á obrigada a moer nas atafonas, cativa entre os seus
inimigos. E, após todos esses males, talvez ainda encontre a morte eterna, assim como ele encontrou a
morte temporal no meio dos que lhe eram adversos;
a causa de todos esses danos é a bebida desse gozo que a faz morrer espiritualmente, do mesmo modo que
aconteceu corporalmente a Sansão, e acontece a muitos hoje em dia. E, no fim de tudo, virão a dizer-lhe seus
inimigos, para sua grande confusão: “Não eras tu que rompias os laços, dobrados, e despedaçavas as queixadas dos leões, matando os mil fílísteus? Não arrancavas as portas e te livravas de todos os teus inimigos?”

6. Concluamos, enfim, dando o remédio necessário contra este veneno: quando o coração se sente movido
pelo gozo vão dos bens naturais, deve lembrar-se quanto é inútil, perigoso e prejudicial alegrar-se em outra
coisa que não seja servir a Deus. Deve considerar o castigo dos anjos decaídos, precipitados nos abísmos pavorosos, só por causa de um olhar de complacência sobre a própria beleza e dotes naturais; e de quantos males esta vaidade não é fonte cada dia para
os homens! Animem-se, portanto, a seguir em tempo o conselho do Poeta os que começam a ter afeição a
este gozo: “Apressai-vos desde o princípio a aplicar o remédio, porque, se o mal tiver tempo de crescer no
coração, tarde virá a medicina”. 1 “Não olhes para o vinho, diz o Sábio, quando te começa a parecer louro,
quando brilhar no vidro a sua cor; ele entra suavemente, mas no fim morderá como uma serpente, e
difundirá o seu veneno como o basilisco” (Pr 23,31-32).

CAPÍTULO XXIII
Dos proveitos que a alma tira não colocando seu gozo nos bens naturais.

1. Muitos são os proveitos recebidos pela alma quando aparta o coração do gozo dos bens naturais. Esta
abnegação, além de dispô-la para o amor divino e para todas as virtudes, produz diretamente a humildade consigo mesma e a caridade geral para com o próximo.
Realmente, Se a alma a ninguém se apega em particular, em vista das qualidades naturais e aparentes
que são ilusórias, conserva-se livre e pura para amar racional e espiritualmente todos os homens, como
Deus quer que sejam amados. Criatura alguma merece amor senão pela virtude que nela há. Amar desse modo
é amar segundo a vontade de Deus e, além disso, com grande liberdade; e se este amor nos liga à criatura,
mais fortemente ainda nos prende ao Criador. Porque, então, quanto mais cresce a caridade para com o próximo,
mais também se dilata O amor de Deus; reciprocamente, quanto maior é o amor de Deus, mais aumenta o do próximo. Assim acontece, porque tem esta caridade a mesma origem e a mesma razão, que é Deus.|

1. Encontra-se esta citação de Ovídio na Imitação de Cristo. Livro I.
cap, XIII. “Principiis obsta; sero medicina paratur”.

2. Outro excelente proveito resulta à alma desse desprendimento: é o de cumprir e observar com perfeição
o conselho dado por Nosso Salvador em São Mateus:
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo” (Mt 16,24). Seria impossível à alma realizá-lo se colocasse o gozo em seus dons naturais, porquanto fazer algum caso de si mesmo não é negar-se, nem seguir a Cristo.

3. A renúncia a esse gênero de gozo traz ainda à alma um imenso proveito: estabelece-a numa grande
tranqüilidade, e afasta as distrações, recolhendo os sentidos, mormente os olhos. A alma, longe de aspirar a
satisfazer-se nesses bens, não os quer olhar nem aplicar a eles os outros sentidos, a fim de não ser atraída
ou ficar presa a tais atrativos; não se detém em perder tempo nem ocupar o pensamento neles, tornando-se semelhante à cautelosa serpente que fecha os ouvidos para não ouvir a voz dos encantadores, com receio de que venham a seduzi-la (SI 57,5-6). Porque
guardando as portas da alma, isto é, os sentidos, igualmente se guarda e aumenta a tranqüilidade e pureza
dela.
4. As almas já adiantadas na mortificação desta espécie de gozo aí encontram outro lucro que não é dos
menores: os objetos sensuais e os maus pensamentos não lhes causam a mesma impressão produzida nas
almas que ainda se contentam nessas coisas. Assim, pela negação e mortificação deste gozo, o espiritual
adquire grande pureza de alma e de corpo, isto é, de espírito e sentido, vindo a ter uma conformidade angélica com Deus e tornando-se verdadeiramente, na alma e no corpo, digno templo do Espírito Santo. Não poderá realizar-se isto se o coração der acesso ao gozo
dos bens naturais. Não é necessário haver consentimento ou lembranças de coisas impuras: basta o deleite produzido pela simples notícia delas para manchar a alma e os sentidos. Diz-nos o Sábio, a esse respeito: o Espírito Santo se afastará dos pensamentos
sem inteligência, isto é, daqueles que não são esclarecidos pela reta razão e por ela ordenados a Deus
(Sb 1,5),

5. Outro proveito geral é livrar-se a alma não somente dos prejuízos e dos males enumerados acima,
mas ainda ser preservada de inúmeras vaidades e de muitos outros inconvenientes de ordem espiritual ou
temporal. Evita, sobretudo, cair na pouca estima em que são consideradas as pessoas muito convencidas do
seu mérito e dos dons naturais percebidos em si mesmas ou no próximo. Ao contrário, são consideradas
como sábias e prudentes, e na realidade o são, todas aquelas exclusivamente presas ao que agrada a Deus,
sem fazer caso de outros bens.
6. Dos ditos proveitos, afinal, resulta o último bem inapreciável e útil à alma: a liberdade de espírito, tão
necessária para o serviço de Deus, e com a qual se vencem facilmente as tentações, sofrendo com coragem
os trabalhos e aumentando os progressos nas virtudes.

CAPíTULO XXIV
Terceiro gênero de bens em que a vontade
pode pôr a afeição do gozo: os bens sensiveis.
Sua natureza e variedade. Como a vontade
se deve dirigir a Deus, renunciando aos atrativos deles.

1. É tempo de falar do gozo dos bens sensíveis: é o terceiro gênero de bens nos quais a vontade pode comprazer-se. Ora entendemos por esses bens tudo o que cai sob o domínio do sentido da visão, audição, olfato, paladar e tato, e que serve para formar os raciocínios
interiores imaginários. Em uma palavra, tudo o que pertence aos sentidos corporais interiores e exteriores.

2. Para purificar a vontade e obscurecê-la em relação ao gozo dos objetos sensíveis, encaminhando-a a Deus
nesses bens, é necessárío pressupor uma verdade já muitas vezes declarada: o sentído da parte inferior do
homem, de que tratamos neste momento, não é nem pode ser capaz de conhecer e compreender a Deus tal
qual é. Assím não pode o olho vê-lo, nem a ele nem a qualquer objeto semelhante à sua divina Essência:
não pode o ouvido escutar sua voz nem qualquer som que se lhe possa comparar; o olfato é incapaz de
sentir perfume tão suave; o gosto, de saborear doçura tão elevada e deliciosa; o tato, de sentir toque tão
delicado e deleitãvel; enfim não cabe na imaginação e mente humana sua forma, nem figura alguma que o
represente. Isaías, a propósito, diz: “Que nem olho o viu, nem ouvido o ouviu, nem jamais o percebeu o
coração humano” (Is 64,4; í Cor 2,9).
3. Duas causas podem proporcionar o gozo e as delícias dos sentidos: a impressão recebida das coisas
exteriores ou alguma comunicação interior de Deus.
Ora, a parte sensitiva não pode, de forma alguma, conhecer a Deus, nem por via do espírito, nem pela
dos sentidos, pois não tendo capacidade para tanto, recebe sensivelmente o espiritual e o sensitivo. Conseqüentemente, deter a vontade nas satisfações causadas por essas apreensões exteriores seria, no mínimo, vaidade e certamente um obstáculo a impedir a força da
vontade de empregar em Deus todo o seu gozo. Não pode a vontade chegar a este fim de modo perfeito,
senão quando se purifica e renuncia ao gozo nesse gênero de bens, como em todos os outros.

4. Disse eu advertidamente: deter a vontade nesse gozo é vaidade; porque se a alma não se demora nele
e, logo ao experimentar na vontade certo deleite no que vê, ouve ou trata, apressa-se em elevar-se para
Deus, é ótima coisa. E quando tais impressões servem de motivo e auxílio eficaz para despertar o fervor na
oração, não somente não há de rejeitá-las, mas pode e deve valer-se delas para tão santo exercicio. Algumas
almas são encaminhadas para Deus pela influência dos bens sensíveis; todavia, devem ter nisto muita discrição
visando os frutos que dai recolhem. Muitas vezes usam os espirituais dos ditos bens sob pretexto de oração
e aproximação de Deus; mas fazem-no de tal modo, que mais se pode chamar recreação que oração, dando
mais gosto a si mesmo que a Deus. Embora sua intenção pareça ter Deus por fim, o efeito é recrear os
sentidos; e tiram dai mais fraqueza de imperfeição do que fervor da vontade para entregar-se a Deus.
5. Por esta razão, darei aqui uma regra para se conhecer quando as satisfações sensiveis são úteis ou
não ao progresso espiritual: se assim que o ouvido percebe músicas ou quaisquer sons agradáveis, o olfato
aspira suaves perfumes, o paladar se deleita com alguns sabores ou sente o tato delicados toques, imediatamente, ao primeiro movimento, a noticia e a afeição da vontade se encaminham para Deus, dando-lhe mais gosto a sua ascensão para ele, do que a impressão
sensível que a motivou, é prova de haver conseguido real proveito. Os objetos sensiveis, assim, podem ser
usados sem receio, porque favorecem o fervor do espírito e servem ao fim para o qual foram por Deus
criados e dados ao homem, isto é, elevar o espírito a melhor conhecê-lo e amá-lo. Todavia, devemos observar bem: a alma que tira desses gostos sensíveis o puro efeito espiritual, nem por isso os deseja e bem pouco caso faz deles, embora quando se apresentam
sinta muito gosto devido ao sentimento de Deus que lhe causam; assim nunca se move a buscá-los e, quando
se lhe oferecem, a vontade logo os deixa e se eleva para Deus.

6. O motivo por que a alma se preocupa tão pouco com essas impressões, embora lhe sejam auxílio para
a união, é o seguinte: o espírito, com esta prontidão de ir para Deus em todas as coisas, por todas as vias,
sente-se tão alimentado e satisfeito com o espírito de Deus, que se torna indiferente a tudo o mais e nada
deseja; e se deseja essas impressões, pelo motivo espiritual, logo passa adiante, as esquece e não faz caso.
Aquele, porém, cuja vontade pára e se nutre nesses prazeres e não possui liberdade de espirito deve privar-se deles, porque lhe são prejudiciais. Embora com a razão procure neles apoio para ir a Deus, todavia, como gosta deles a parte sensível – e conforme o
gosto sempre é o efeito – é certo ser esse apoio antes obstáculo e prejuízo que auxilio e vantagem. Apenas
a alma note em si tendência para tais recreações, deve mortificá-la, pois, quanto mais a deixar crescer, mais
se multiplicarão as imperfeições e fraquezas.

7. Portanto, o espiritual, em qualquer gosto que se lhe oferecer aos sentidos, seja fortuito ou propositado,
aproveitará dele unicamente para ir a Deus, levantando para o Senhor o gozo de sua alma, para ser útil
e proveitoso. Advirta que todo prazer, mesmo sendo de coisa muito elevada, se não for com aniquilamento
e mortificação de outro qualquer gozo, é vão, sem proveito e estorva a união da vontade com Deus.

CAPITULO XXV
Exposição dos danos que a alma recebe em querer por o gozo da vontade nos bens sensíveis.

1. Antes de tudo observemos que, se a alma não obscurecer e mortificar o gozo produzido pelos objetos
sensíveis, e não o endereçar a Deus, expor-se-á a todos os danos gerais acima enumerados, nascidos dos outros
gêneros de gozo: obscurecimento da razão, tibieza, tédio espiritual etc. Mas, em particular, existem muitos
danos tanto espirituais como corporais, diretamente originados desse gozo das coisas sensíveis.

2. Primeiramente, se a alma não tem coragem de renunciar por amor a Deus aos gozos que lhe vêm
pela vista, cai na vaidade de espírito e na distração da mente, cobíça desordenada, concupiscência, desregramento interior e exterior e, afinal, em pensamentos impuros e inveja.
3. Em segundo lugar, quem se compraz em ouvir coisas inúteis não deixa de incorrer em muitas distrações, .em superfluidade das palavras, inveja, juízos tememáríos, volubilidade de pensamentos e, daí, em outros numerosos males não menos perniciosos.

4. O gozo de aspirar suaves perfumes produz repugnância pelos pobres – sentimento oposto à doutrina de Cristo, – inimizade à dependência, dureza de coração para as coisas humildes e insensibilidade espiritual, ao menos em proporção do apetite naquele gozo.
5. Os sabores que deliciam o paladar ocasionam diretamente gula e embriaguez, cólera, discórdia, falta de caridade para com o próximo e os pobres, como teve para com Lázaro aquele mau rico, que se banqueteava cada dia esplendidamente (Lc 16,19). Daí nascem ainda
as indisposições corporais e as doenças, e também os movimentos desregrados, porque se aumentam os incentivos da luxúria. Por sua vez, fica o espirito como submerso em grande torpor; o desejo e o gosto dos bens espirituais diminui de tal sorte que já não os pode suportar, nem mesmo se deter ou se ocupar neles.
Esse gozo produz ainda o descontentamento de muitas coisas, distração dos demais sentidos e do coração.

6. Do gozo encontrado pelo tato nas coisas suaves e agradáveis, nascem muitos outros danos ainda mais
funestos, que, em pouco tempo, pervertem sensivelmente o espírito, roubando-lhe a força e o vigor. Daqui
nasce o abominável vício da volúpia ou incentivos para ela, na proporção desse prazer. Este gozo nutre
a luxúria, torna o espírito efeminado e tímido, o sentido lânguido e melífluo, disposto ao pecado e ao mal.
Infunde vã alegria e prazer no coração, desenfreia a língua, dá muita liberdade aos olhos; embota e entorpece os outros sentidos, segundo o grau do tal apetite.
Tira ao juízo a sua retidão, mergulha-o na ignorância e na incapacidade espirituais, tornando-o moralmente
pusilânime e inconstante; as trevas obscurecem a alma; a fraqueza se apodera do coração, fazendo-o recear
mesmo onde não há que temer. Outras vezes, o espírito de confusão, a insensibilidade de consciência e de
espírito são os frutos deste gozo, porquanto debilita de tal modo a razão, que fica incapaz de dar ou tomar
um bom conselho, de receber os bens de ordem espiritual e moral, enfim inútil como um vaso quebrado.

7. Assim, desse gênero de gozo se originam todos os males, aqui enumerados, em maior ou menor íntensidade, segundo a força do gozo e conforme o caráter, a fraqueza e a inconstância da criatura a ele entregue.
Certas naturezas, efetivamente, em pequenas ocasiões receberão mais detrimento do que outras em muito grandes.

8. Finalmente, o gozo produzido pelo tato expõe a alma a todos os males e danos apontados acerca dos
bens naturais. E, assim, abstenho-me de mencionã-los novamente, como também deixo de falar em outros
muitos prejuízos que traz esse gozo, como, por exemplo, a negligência nos exercícios espirituais e nas penitências corporais, a tibieza e falta de devoção na freqüência dos sacramentos da penitência e da Eucaristia.

CAPITULO XXVI
Proveitos espirituais e temporais que resultam à alma da renúncia ao gozo nas coisas sensíveis.
L Admiráveis os proveitos encontrados na privação deste gozo, uns espirituais e outros temporais.

2. O primeiro é a reparação das forças enfraquecidas pelas distrações nas quais o exercício exagerado dos
sentidos fez cair. Então, a alma recolhida em Deus conserva o espírito interior, e as virtudes já adquiridas
tomam novo crescimento.
3. Não é menos excelente o segundo proveito. A abnegação desse gozo sensível transforma o homem sensual
em homem espiritual e do estado animal eleva-o ao estado racional. Mesmo permanecendo homem, a sua
vida se aproxima da vida angélica – e de terrestre e humano, torna-se celeste e divino. Na realidade, quem
for ávido desses bens sensíveis e fizer deles o objeto do seu gozo, não merecerá outras qualificações senão
as de sensual, animal, terrestre etc. Mas, quando se priva do gozo, pode com muita razão ser chamado
espiritual, celeste e divino.
4. Essa verdade é confirmada pelo Apóstolo quando diz que o exercício dos sentidos e a força da sensualidade contradizem à força e exercício do espírito (Gl 5,17). Portanto, se uma dessas forças vem a faltar e enfraquecer-se, a que lhe é oposta necessariamente
crescerá e se desenvolverá, desaparecido o obstáculo que impedia o seu progresso. Assim, quando se aperfeiçoa o espírito – esta parte superior da alma que tem referência e comunicação com Deus, – merece todos os mencionados atributos, porque se aperfeiçoa
em bens e dons de Deus espirituais e celestiais. Esta dupla verdade se prova por S. Paulo que chama de
“homem animal àquele cuja afeição da vontade se inclina para o sensível, porque não percebe o que é do
espírito de Deus”. E àquele que eleva a Deus a afeição da sua vontade dá o nome de “homem espiritual, que
julga tudo e tudo penetra, ainda o que há de mais oculto na profundidade de Deus” ClCor 2,14-15.10). A
alma, pois, encontra aqui o admirável proveito de uma grande disposição para receber os favores divinos e os dons espirituais.

5. O terceiro proveito consiste em excessivo aumento das delícias e do gozo na vontade – mesmo sob o
ponto de vista temporal – segundo a promessa de nosso divino Salvador: “Receberá o cêntuplo” (Mt
19,29). Se. renunciares a uma satisfação, o Senhor te dará cem vezes mais aqui na terra, na ordem espiritual e temporal. Mas, se te deixas seduzir pelo prazer sensível, recolherás o cêntuplo em aflições e amarguras. Por exemplo: quando o sentido da visão já está
purificado e desprendido do gozo que sente em ver, a alma experimenta alegria espiritual em tudo quanto
vê, seja da terra ou do céu, encaminhando-se a Deus através de todas as coisas. Quando purifica o sentido
da audição, a alma recebe do mesmo modo o cêntuplo em gozos espirituais pelo hábito que tem de oferecer
a Deus tudo o que ouve de divino ou humano. E, assim por diante, nos demais sentidos já purificados. No paraíso terrestre, nossos primeiros pais viviam no estado de inocência; nada viam, diziam, ou faziam, que não lhes servisse de maior sabor para a contemplação,
porque tinham bem ordenada e perfeitamente sujeita a parte sensitiva à razão. De maneira semelhante, aqueles que têm os sentidos submissos ao espírito em todos os bens sensíveis, desde os primeiros movimentos, recebem o deleíte de uma amorosa advertência e
contemplação de Deus.

6. À alma pura, todas as realidades superiores ou inferiores trazem beneficio ajudando-a a adquirir maior
pureza, enquanto que a alma impura de umas e outras costuma tirar prejuízo, por causa de sua própria impureza. O homem que não vence o gozo do apetite não experimentará ordinariamente essa alegria serena em Deus, por meio das criaturas e obras da criação. Ao
contrário, o que renunciou à vida dos sentidos dirige todas as operações destes e de suas potências à divina
contemplação. É reconhecido, em boa filosofia, que cada coisa age segundo a qualidade do seu ser. Assim,
o homem vivendo espiritualmente, tendo mortificado a sua vida animal, claro está que, sem contradição,
em todas as suas ações e movimentos espirituais, há de dirigir-se em tudo para Deus. Em conseqüência, a
esse homem puro de coração, tudo proporciona uma notícia divina, muito cheia de gozo e prazer, casta,
pura, espiritual, alegre e amorosa.

7. Daqui posso inferir a seguinte doutrina: até o homem ter o sentido tão habituado na purificação deste
gozo sensível, de modo a tirar, logo ao primeiro movimento, o proveito já mencionado, isto é, encaminharse diretamente- a Deus em tudo, tem necessidade de negar o seu gozo e prazer em tudo, a fim de retirar a alma da vida sensitiva. Se assim não fizer é para
recear que, não sendo ele ainda espiritual, tire, porventura, mais forças para os sentidos que para o espírito;. predominará, então, em suas ações essa força do sentido que produz, sustenta e cria maior sensualidade.

Porque, como diz nosso Salvador, “o que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do espirito é espírito”
(Jo 3,6). Nisto se repare muito, porque esta é a .verdade. Aquele cujo gozo nos bens sensíveis não está
ainda mortificado não se atreva a aproveitar-se muito da força e operação dos sentidos, pensando achar nisso
auxílio para progredir na via espiritual: pelo contrário, as forças da alma hão de crescer mais pela negação
do gozo e apetite em todas as coisas sensíveis, do que pelo uso delas.

8. Quanto aos bens da glória, merecidos na outra vida pela negação deste gozo, não há necessidade de
enumerá-los aqui. Porque os dotes gloriosos do corpo, como a agilidade e a claridade, nos que se mortificaram, serão de uma excelência muito superior à daqueles que não renunciaram aos prazeres; além disto, o aumento da glória essencial da alma corresponderá ao
seu amor por Deus, por quem negou as coisas sensíveis; e na proporção da renúncia a cada gozo momentâneo e passageiro, receberá eternamente, como diz S. Paulo, um peso imenso de glória (2Cor 4,17). Não quero agora referir os demais proveitos, tanto morais,
como temporais e espirituais, que são conseqüência desta noite do gozo sensível; pois são os mesmos já
expostos a propósito dos outros gêneros de gozo, e aqui se produzem num grau mais eminente. Com efeito,
o prazer renunciado nos bens naturais toca mais de perto –a natureza do homem e por isso este adquire mais íntima pureza na negação deles.

CAPíTULO XXVII
Começa a declarar o quarto gênero de bens, que são os morais. Diz quais sejam, e de que
modo é lícito pôr neles o gozo da vontade.

1. Os bens morais constituem o quarto gênero de
bens nos quais a vontade pode encontrar o seu gozo.
Por eles entendemos as virtudes morais e os hábitos
resultantes dos seus atos, o exercício das obras de mí- ~ricórdia, a observação das leis divinas e humanas.
Em resumo, tudo o que ordinariamente ocupa a atívidade de um caráter inclinado à virtude.
2. A posse desses bens e o hábito que a alma tem
dessas boas obras concedem mais direito para gozar-se
neles do que qualquer dos três outros mencionados
até aqui. Por duas razões, – cada uma em particular
ou ambas em conjunto, – pode o homem gozar-se
nesses bens: primeiramente, por causa do que são em
si mesmos e, depois, em consideração à utilidade que
trazem, como meio e instrumento de perfeição. E,
assim, a posse dos três outros gêneros de bens não
merece gozo algum da vontade, pois, como pudemos
reconhecê-lo, nenhum valor intrínseco possuem, e não
podem, em sua natureza, trazer proveito algum ao
homem. São caducos e transitórios, e, longe de serem
úteis, geram e acarretam sofrimentos, dores e aflições
de ânimo. O homem pode, na verdade, gozar-se neles
pelo segundo motivo, isto é, quando lhe servem de
intermediários para ir a Deus. Mas esse é resultado
muito incerto e a experiência demonstra que sua alma
recebe, de ordinário, mais perdas que ganhos. Sucede
o contrário com os bens morais que são, já pelo primeiro motivo, isto é, pela sua natureza e seu próprio
valor, dignos de atrair a estima de quem os possui,
porque consigo trazem tranqüilidade, paz, reto e ordenado uso da razão, e acerto nas obras. Nada pode o
homem naturalmente possuir de melhor nesta vida.
3. E, assim, porque as virtudes merecem por si mesmas ser amadas e estimadas, humanamente f.alando,
bem se pode o homem gozar de possui-las e exercitálas, não só pelo que valem, como pelos bens naturais
e temporais que proporcionam. Deste modo e por esta
razão, os filósofos, sábios e príncipes da antiguidade
as estimaram e louvaram, esforçando-se por adquiri-las
e praticá-las. Sendo gentios, só tinham em vista os
proveitos temporais, corporais e naturais da vida presente; contudo obtiveram por este meio mais do que
as vantagens e a passageira fama ambicionada; pois
Deus, que ama todo o bem (mesmo no bárbaro e no
gentio) e nenhuma coisa boa impede que se faça, segundo diz o Sábio (Sb 7,22), aumentava-lhes a vida,
honra, e senhorio, dando-lhes também a paz. Assim fez
aos romanos, porque usavam de justas leis: sujeitoulhes quase todo o mundo, pagando-lhes temporalmente
os bons costumes, já que por sua infidelidade eram
incapazes de prêmio eterno. Com efeito, Deus ama
tanto estes bens morais, que só por Salomão lhe ter
pedido a sabedoria, a fim de instruir o seu povo, governá-lo em eqüidade e instrui-lo nos bons costumes,
agradou-se tanto, que lhe respondeu: “Porque me pediste a sabedoria para discernires o que é justo …
eis pois fiz o que me pediste. Mas dei também o que
tu não me pediste, a saber, riquezas e glória, em tal
grau que não se achará um semelhante a ti entre os
reis passados e futuros” (lRs 3,11-13).
4. O cristão pode ter gozo em possuir as virtudes
morais e naturais, e em praticar as boas obras que
lhe proporcionam as vantagens temporais já enumeradas. No entanto, este primeiro motivo não deve ser
o único móvel do seu gozo (como o fora para os pagãos, cuja visão não transcendia os limites da vida
presente). O homem iluminado pela luz da fé, que
lhe faz esperar a bem-aventurança eterna – sem a
qual o universo inteiro de nada lhe serviria, – deve
reger-se, no exercício das virtudes morais, pelo segundo
motivo mais nobre de gozo que é praticá-las por amor
de Deus e para adquirir a vida eterna. Só deve pôr
os olhos e todo o seu gozo em servir e honrar ao
Senhor, com seus bons costumes e virtudes. Sem isto,
de nada valem estas perante Deus, como se deduz
da parábola das dez virgens do Evangelho. Todas tinham conservado a virgindade e praticado boas obras;
cinco dentre elas, porém, não souberam pôr o seu
gozo nessa segunda maneira, isto é, não o dirigiram
para Deus; em vez disso, alegraram-se vãmente, só em
possuir aqueles bens. Desse modo foram excluídas do
céu, sem nenhum agradecimento ou galardão de seu
Esposo. Existiram, na antiguidade, muitos homens virtuosos cuja vida foi cheia de boas ações, e inúmeros
cristãos dos nossos dias realizam grandes obras: mas
de nada lhes servirão para a vida eterna, porque não
pretenderam nelas a glória e a honra devidas unicamente a Deus. Em vez de se alegrar com a bondade
das suas obras e com a honestidade dos seus costumes, o cristão somente deve gozar-se quando age por
amor de Deus, sem nenhum outro motivo. Porque,
assim como merecem maior prêmio de glória as ações
feitas unicamente para servir a Deus, do mesmo modo
aquelas que forem desviadas para outros fins serão
causa de maior confusão sua diante do Senhor.
5. Para dirigir, pois, a Deus o gozo dos bens morais,
é necessário ao cristão advertir que o valor das suas
boas obras, jejuns, esmolas, penitências etc., não se
funda tanto na quantidade e qualidade, como na intensidade do amor de Deus com que as pratica. Serão
mais valiosas na medida em que forem feitas com mais
pureza e perfeição de amor divino e com menos preocupação de gozo, prazer, consolo ou louvor nesta vida
ou na outra. Portanto, o homem não há de apoiar o
coração no gosto, consolação ou sabor e demais vantagens que muitas vezes costumam trazer esses exercícios e boas obras; deve antes recolher seu gozo só
em Deus, desejando servi-lo. É necessário purificar-se
e permanecer às escuras em relação a esse gozo querendo em suas ações, feitas em segredo, que somente
Deus se regozije e compraza, a fim de ser dada a ele
toda a honra e glória sem nenhum outro interesse ou
intenção. Assim a alma recolherá em Deus toda a força
de sua vontade no U150 dos bens morais.

CAPÍTULO XXVIII
Sete danos aos quais se expõe a alma quando põe o gozo da vontade nos bens morais.

1. Os principais danos em que pode cair o homem,
pela vã complacência nas boas obras e costumes, são
sete, e muito perniciosos por serem espirituais.

2. O primeiro dano é vaidade, orgulho, vanglória, e
presunção. Porque não é possível gozar das próprias
obras sem estimá-las. Daí resultam a jactância e os
outros vícios que a acompanham, como vemos no fariseu do Evangelho (Lo 18,12) quando orava e dava
graças a Deus, orgulhando-se porque jejuava e fazia
outras boas obras.

3. O segundo dano em geral se encadeia com o precedente: consiste em julgar os próximos como maus
e imperfeitos em comparação à própria conduta e às
próprias ações. Vem então a desestima interior para
com eles, que às vezes se manifesta por palavras. É a
linguagem do fariseu quando em sua oração dizia:
“Graças te dou, meu Deus, porque não sou como os
mais homens, que são ladrões, injustos, adúlteros” (Lo
18,11). Desse modo, num só ato caía em dupla falta:
estimar a si mesmo e desprezar os outros. Quantos
cristãos em nossos dias assim fazem dizendo: não sou
como fulano, não procedo como este ou aquele, nem
faço isto ou aquilo. E muitos se mostram piores do
que o fariseu. Este desprezava, em verdade, todo o
mundo em geral, e o publicano em particular: não sou,
dizia ele, como este publicano. Mas aqueles a que nos
referimos vão mais longe ainda, e chegam a irritar-se
com os louvores dirigidos ao próximo e a invejar os
que, nas ações e qualidades, lhes são superiores.

4. O terceiro dano é que estas pessoas, procurando
em suas obras o que mais lhes causa gosto, ordinaria-
mente só as fazem quando esperam receber por elas
algum prazer ou louvor. E assim, conforme disse Jesus
Cristo, tudo fazem para que o vejam os homens (Mt
23,5), e não agem puramente por amor de Deus.
5. O quarto dano resulta desse último: é a privação
da recompensa divina por terem procurado o galardão
nesta vida, em gozo e consolo, interesse de honra ou
de outra maneira, nas suas obras. Afirma-nos o Senhor
que essas pessoas já receberam a sua recompensa (~t
6,2)’ Desse modo, ficaram só com o trabalho em suas
ações, e confusas sem nenhuma paga. É tão profunda
a miséria que esse dano traz aos filhos dos homens,
que tenho para mim esta certeza: a maior parte das
obras feitas em público são, ou viciosas, ou sem nenhum valor, ou imperfeitas diante de Deus, por não
se terem desprendido aqueles, que as fazem, dos interesses do egoísmo e respeito humano. Pode-se pensar
outra coisa de certas obras e instituições feitas por
alguns que as não querem fazer a não ser quando vão
acompanhadas de honras, respeitos humanos e vaidades do mundo, ou com o fim de perpetuar, por tal
meio, o nome da família, da linhagem e senhorios?
Chegam a ponto de colocar suas armas e brasões nos
templos, como se quisessem tomar o lugar das imagens, diante das quais todos dobram os joelhos! Podemos dizer que nessas obras mais adoram a si mesmos
que a Deus. E na verdade assim fazem, quando têm
em vista um fim tão baixo, e sem esse fim não realizariam aquelas ações. Mas, deixando de lado esses
homens – são os piores, – quantos há que de muitas
maneiras caem em suas obras, neste dano! Alguns querem louvor para suas ações; outros desejam receber
agradecimentos; outros ainda procuram tornar suas
obras conhecidas de tais e tais pessoas, e mesmo do
mundo inteiro. Se dão esmola, têm o cuidado de fazê-la
passar pelas mãos de terceiros, a fim de mais aumentar a sua publicidade. Enfim, alguns querem tudo isso
junto. Isso é tocar a trombeta como fazem os vaidosos (Mt 6,2), diz-nos O Salvador no Evangelho. Donde não
receberão recompensa alguma de Deus pelas suas obras.
6. Se querem evitar este dano, devem ocultar as
boas ações, de modo que somente Deus lhes seja testemunha, sem desejar aprovação de ninguém. Não somente hão de escondê-las a todos os olhares, mas ainda
aos seus próprios olhos, não se comprazendo nelas
como se algo fossem. Tal o sentido espiritual da palavra de Nosso Senhor. “Não saiba a tua esquerda o
que faz a tua direita” (Mt 6,3). Em outros termos:
não consideres com olhos temporais e carnais as obras
espirituais que fazes. Deste modo se concentra em
Deus a força da vontade e os atos frutificam na presença dele; e longe de perder o fruto das -boas obras
ter-se-á nelas grande merecimento. Assim se entende
a sentença de Jó: “Se o meu coração sentiu algum
oculto contentamento, e beijei a minha mão com a
minha boca, eu cometi uma grande iniqüidade” (Jó
31,25.27-28). A mão, aqui, é o símbolo da ação, e a
boca significa a vontade que nela se compraz. Por
haver aí complacência em si mesmo, declara Jó: “Se
meu coração se alegrou ocultamente, obrou grande iniqüidade e negação contra Deus”. Como se quisesse
dizer que não teve complacência, nem se deleitou seeretamente no próprio coração.
7. O quinto dano é não progredirem as almas no
caminho da perfeição. Com efeito, estando apegadas
em suas ações ao gosto e consolo, quando estes lhes
faltam em suas obras e exercícios, desanimam e perdem a perseverança por não achar neles sabor. Isto
acontece ordinariamente quando Deus, querendo levar
essas almas adiante, lhes dá o pão duro dos fortes e
lhes tira o leite dos meninos, provando-lhes as forças
e purificando-lhes o apetite terno para que possam
alimentar-se com o manjar dos adultos. A tais pessoas
se aplica espiritualmente a sentença do Sábio: “As
moscas que morrem perdem a suavidade do ungüento”
(Eclo 10,1); porque, em se lhes oferecendo alguma
mortificação, desfalecem em suas obras deixando de
396 SUBIDA DO MONTE CARMELO
fazê-las, isto é, perdem a perseverança na qual se encontra a suavidade do espírito e a colaboração ínteríor.
8. O sexto dano é uma tendência habitual ao engano
na apreciação das coisas e das obras. Baseiam o valor
destas sobre o gosto encontrado, julgando as agradáveis melhores do que as desagradáveis. Assim louvam
e estimam as primeiras desestimando as segundas. No
entanto as obras mais comumente mortificantes à natureza, sobretudo quando se é principiante, são mais
preciosas aos olhos do Senhor, por causa da negação
própria então praticada. Naquelas em que se busca
o consolo, é mais fácil buscar-se a si mesmo. A este
propósito, disse o profeta Míquéías: “Eles chamam bem
ao mal que obram as suas mãos” (Mq 7,3)’ Assim
acontece porque põem o seu gozo nas obras, e não
em dar gosto unicamente a Deus. Seria demasiado
longo descrever o domínio que esse mal exerce tanto
sobre as pessoas dadas à espirítualidade, como sobre
o comum dos homens. Encontrar-se-á dificilmente alguém, cujos atos tenham por móvel o puro amor de
Deus, sem se apoiar em algum interesse humano de
satisfação, gosto ou outro respeito.
9. Se o homem não extingue a complacência vã sentida nas obras morais, experimenta então o sétimo
dano que o torna incapaz de receber um conselho
sábio e seguir direção racional no que deve fazer. Porque a fraqueza habitual que tem em procurar a própria satisfação em suas ações o encadeia de modo a
não reconhecer o conselho alheio como melhor; ou se
o estima como tal, não tem coragem para segui-lo.
Estas pessoas se entibiam muito no amor de Deus e
do próximo: o amor-próprio mesclado a todas as suas
obras dá motivo a que se resfrie a caridade.
LIVRO III – CAPíTULO XXIX
CAPíTULO XXIX
Dos proveitos auferidos pela alma na renúncia
ao gozo dos bens morais.
397
1. Imensos proveitos resultam para a alma quando
recusa aplicar vãmente o gozo da sua vontade a esse
gênero de bens. O primeiro é livrar-se de muitas tentações e enganos do demônio, ocultos sob a satisfação
proporcionada pelas boas obras. ‘É a isto que se referem as palavras de Jo: “Dorme à sornba, no esconderijo dos caniços, e em lugares úmidos” (Jó 40,16). Pode
ser aplicado esse texto ao demônio que se serve, para
enganar a alma, dessa satisfação e dessas obras vãs,
figuradas pelos lugares úmidos e pela fragilidade do
caniço. Ora, não é de admirar que o inimigo nos engane secretamente sob o véu deste gozo, já por si
mesmo ilusório, sobretudo se há uma certa tendência
à jactância no coração. Bem disse o profeta Jeremias:
“A tua arrogância te enganou” (Jr 49,16), Com efeito,
haverá ilusão maior que a jactância? O meio para a
alma livrar-se deste engano é renunciar definitivamente
ao gozo vão.
2. O segundo proveito é fazer as obras com maior
madureza e perfeição – o que não aconteceria, havendo
nelas a paixão do gozo. Esta paixão excita de tal modo
o apetite irascível e o concupíscível, que a razão perde
toda a sua orientação. Anda assim o homem, mudando
e variando nos seus projetos e ações, abandonando
umas e tomando outras, começando e deixando sem
acabar coisa alguma. Como o móvel das obras é o
gozo, e sendo este em si mesmo muito variável, e em
algumas naturezas ainda mais, sucede que, uma vez desaparecido esse gozo, desvanecem-se também as obras
e os propósitos, mesmo os mais importantes. Para tais
pessoas, o prazer é a alma e a força dos seus empreendimentos; não mais existindo o gozo, desaparece a perseverança e a obra se reduz a nada, como naqueles de
que disse Cristo; “Que ouvem a palavra com alegria;
398 SUBIDA DO MONTE CARMEW
mas depois vem o demônio e lhes tira a palavra do
coração para que não perseverem” (Lc 8,12)’ Isto pro
vém de que a semente divina não possuía outra força
nem outra raiz em seu coração, senão o gozo. É, pois,
excelente disposição para se conseguir êxito e perseverar no bem mortificar a vontade nesse gozo. Grande
é este proveito da abnegação, como também é grande
o dano oposto. O homem prudente fixa os seus olhos
na substância e fruto da obra sem considerar o sabor
e o gosto dela. Não dá golpes no ar, como se costuma
dizer, mas encontra em sua ação gozo estável, sem
nenhum descontentamento.
3. O terceiro proveito é totalmente divino: reprimindo a vã satisfação experimentada nas suas obras, o
homem se faz pobre de espírito e participa de uma
das bem-aventuranças proclamadas pelo Filho de Deus:
“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles
é o reino dos céus” (Mt 5,3).
4. O quarto proveito proporcionado a quem renuncia
ao gozo dos bens morais é que será manso, humilde
e prudente em suas obras; não se deixará dominar
pela impetuosidade e precipitação, arrastado pelo apetite concupiscível e irascível do gozo. Não mais haverá para ele motivo de presunção nessas obras, pois
não mais as estima com vã complacência, enfim, não
agirá incautamente como faria se estivesse cego pelo
gozo.
5. O quinto proveito consiste em tornar a pessoa
agradável a Deus e aos homens lívrando-a da avareza,
da gula, da preguiça, da inveja espiritual e de mil
outros vícios.
LIVRO In – CAPíTULO XXX
CAPíTUW XXX
Começa a tratar do quinto gênero de bens,
que são os sobrenaturais, nos quais a vnntade
se pode comprazer. Diz em que consistem, e
como se distinguem dos bens espirituais. De
que modo se deve dirigir a Deus o gozo que
neles se encontra.
399
1. Agora é conveniente tratar do quinto gênero de
bens nos quais pode a alma gozar-se; os bens sobrenaturais. Por eles entendemos as graças e dons concedidos pelo Senhor, superiores à habilidade e poder natural, chamados gratis daiae, dons gratuitos. Tais são
os dons de sabedoria e ciência conferidos a Salomão,
e também as graças enumeradas por S. Paulo: “A fé,
a graça de curar as doenças, o dom dos milagres, o
espírito de profecia, o discernimento dos espíritos, a
interpretação das palavras, enfim, o dom de falar diversas línguas (lCor 12,9-10).
2. Sem dúvida, todos esses bens são espirituais, como
os do sexto gênero, do qual nos ocuparemos mais
tarde; todavia, existe entre eles diferença notável, motivo para distingui-los uns dos outros. O exercício dos
bens sobrenaturais tem por fim imediato a utilidade
do próximo e é para esse proveito e fim que Deus
os concede, conforme diz S. Paulo: “E a cada um é
dada a manifestação do Espírito para proveito dos
demais” CIb, 5,7). Isto se aplica a essas graças. Os
bens espirituais, porém, têm por objetivo somente as
relações recíprocas entre Deus e a alma, pela união
do entendimento e da vontade, conforme explicaremos
mais adiante. Assim, pois, há diferença entre o objeto
de uns e outros; os bens espirituais visam só o Criador
e a alma, enquanto os sobrenaturais se aplicam às
criaturas; diferem também quanto à substância e, por
conseguinte, quanto à operação, sendo, portanto, necessário estabelecer certa divisão na doutrina.
3. Falemos agora das graças e dos dons sobrenaturais, no sentido aqui dado. Para purificar a vã com-
400 SUBIDA DO MONTE CARMEW
placência que a alma neles pode achar, vem a propósito assinalar dois proveitos desse gênero de bens; um
temporal e outro espiritual. O primeiro é curar dcentes, dar a vista a cegos, ressuscitar mortos, expulsar
demônios, anunciar o futuro aos homens, e outros
semelhantes benefícios. O segundo é eterno, e consiste
em tornar Deus mais conhecido e servido, seja por
quem opera esses prodigios, seja pelos que deles são
objetos ou testemunhas.
4. Quanto ao proveito temporal pode-se dizer que as
obras sobrenaturais e os milagres pouca ou nenhuma
complacência merecem da alma; porque, excluído o proveito espiritual, pouca ou nenhuma importância têm
para o homem, pois em si mesmos não são meio para
unir a alma com Deus, como é somente a caridade.
Com efeito, essas obras e maravilhas sobrenaturais não
dependem da graça santificante e da caridade naqueles
que as exercitam; seja Deus as conceda verdadeiramente, apesar da maldade humana, como fez ao ímpio
Balaão e a Salomão, seja quando exercidos falsamente
pelos homens, com a ajuda do demônio, como sucedia
a Simão Mago; ou ainda pelas forças ocultas da natureza. Ora, se entre tais graças extraordinárias algumas
houvesse de proveito para quem as pratica, evidentemente seriam as verdadeiras, concedidas por Deus.
E estas, – excluindo o seu proveito espiritual, – claramente ensina S. Paulo o seu valor dizendo: “Se eu
falar as línguas dos homens e dos anjos, e não tiver
caridade, sou como o metal que soa, ou como o sino
que tine. E se eu tiver o dom da profecia, e conhecer
todos os mistérios e quanto se pode saber; e se tiver
toda a fé, até ao ponto de transportar montes, e não
tiver caridade nada sou” (lCor 13,1-2). Muitas almas
que receberam esses dons extraordinários e neles puseram sua estima, pedirão ao Senhor, no último dia,
a recompensa que julgam ter merecido por eles, dizendo: Senhor, não profetizamos em teu nome, e em teu
nome obramos muitos prodígios? E a resposta será:
LIVRO IH – CAPíTULO XXXI 401
“Apartai-vos de mim, os que obrais a iniqüidade”
(Mt 7,22-23L
5. Portanto, jamais deve o homem comprazer-se em
possuir tais dons a não ser pelo lucro espiritual que
deles pode tirar, isto é, em servir a Deus com caridade verdadeira, pois aí está o fruto da vida eterna.
Por essa razão nosso Salvador repreendeu seus díscípulos quando mostravam muita alegria por terem expulsado os demônios: “Entretanto, não vos alegreis de
que os espiritos se vos submetam; mas alegrai-vos de
que os vossos nomes estejam escritos no céu” (Lc
10,20). O que, em boa teologia, significa: gozai-vos somente de que estejam vossos nomes escritos no livro
da vida. Seja esta a conclusão: a única coisa na qual
pode o homem comprazer-se é a de estar no caminho
da vida eterna fazendo todas as suas obras em caridade. Tudo, pois, que não é amor de Deus, que proveito traz e que valor tem diante dele? E o amor não
é perfeito quando não é bastante forte e discreto em
purificar a alma no gozo de todas as coisas, concentrando-o unicamente no cumprimento da vontade de
Deus. Deste modo se une a vontade humana com a divina por meio destes bens sobrenaturais.
CAPíTULO XXXI
Dos prejuízos causados à alma quando põe
o gozo da vontade neste gênero de bens.
1. A meu parecer, três são os danos principais em
que a alma pode cair colocando seu gozo nos bens
sobrenaturais: enganar e ser enganada, sofrer detrimento na fé e deixar-se levar pela vangóría ou alguma
vaidade.
2. Quanto ao primeiro dano, é muito fácil enganar
os outros e a si mesmo quando há complacência nas
obras sobrenaturais. Eis a razão: para distinguir quais
sejam as falsas das verdadeiras, e saber como e a que
402 SUBIDA DO MONTE CARMELO
tempo se devem exercitar, é necessário grande díscernimento e abundante luz de Deus: ora, o gozo e a
estimação de tais obras impede muito estas duas coisas. Isto acontece por dois motivos: porque o prazer
embota e obscurece o juízo; e porque o homem, movido pelo desejo de gozar, não somente cobiça aqueles
bens com muita sofreguidão, mas ainda se expõe a
agir fora de tempo. Mesmo no caso de serem verdadeiras as virtudes e as obras, bastam os defeitos assinalados para produzir muitos enganos, quer por não
serem elas entendidas no seu sentido real, quer por
não se realizarem nem trazerem proveito às almas no
tempo e modo mais oportuno. É verdade que Deus,
distribuidor dessas graças sobrenaturais, as concede
juntamente com a luz e o impulso para obrá-las na
ocasião e maneira mais conveniente; todavia, o homem
ainda pode errar muito, devido à imperfeição e ao
espírito de propriedade que nelas tem, não as usando
com a perfeição exigida pelo Senhor e conforme a
vontade de Deus. A hístória de Balaão confirma o que
dizemos; quando este falso profeta se determinou, –
contra as ordens de Deus, – a ir maldizer o povo de
Israel, o Senhor, indignado, o queria matar (Nrn
22,22-23), Também S. Tiago e S. João, levados por
um zelo indiscreto, queriam que caísse fogo do céu
(Lc 9,54) sobre os samaritanos, pelo fato de recusarem a hospitalidade a nosso Salvador; mas foram logo
repreendidos por ele.
3. Daí se vê claramente como estes espíritos de que
vamos falando determinam-se a fazer tais obras fora
do tempo conveniente, movidos por secreta paixão de
imperfeição, envolta em gozo e estima delas. Quando
não há semelhante imperfelção, as almas esperam o
impulso divino para realizar essas obras, e só as fazem
segundo o modo e o momento requerido pelo Senhor;
pois, até então, não convém agir. Deus, por isso, queixava-se de certos profetas, por Jeremias, dizendo: “Eu
não enviava estes profetas e eles corriam, não lhes
falava nada e eles profetizavam” (Jr 23,21). Acrescen-
LIVRO In – CAPíTULO XXXI 403
tando: “Enganaram ao meu povo com a sua mentira
e com os seus milagres, não os havendo eu enviado,
nem dado ordem alguma” (Jr 23,32). Em outro trecho
diz ainda que eles tinham visões apropriadas à tendência do seu espírito e que eram essas precisamente
as que divulgavam (Ib. 26). Esses abusos não se dariam se os tais profetas não tivessem misturado o
abominável afeto de propriedade a estas obras sobrenaturais.
4. Pelas citações feitas, podemos reconhecer que o
dano deste gozo leva o homem a usar de modo iníquo
e perverso dessas graças divinas, como Balaão e os
que faziam milagres para enganar o povo; e, além
disso, induz à temeridade de usar delas sem as haver
recebido de Deus. Deste número foram os que profetizavam e publicavam as visões da sua fantasia, ou
aquelas que tinham por autor o demônio. Este, com
efeito, explora imediatamente a disposição desses homens afeiçoados aos favores extraordinários; fornecelhes abundante matéria neste vasto campo exercendo
as suas malignas influências sobre todas as suas ações;
e eles assim enfunam as velas para vogar livremente
com desaforada ousadia nestas prodigiosas obras.
5. O mal não para ai: o gozo e a cobiça desses bens
levam essas pessoas a tais excessos que, se antes títinham feito pacto oculto com o demônio (porque
muitos fazem coisas extraordinárias por esse meio),
chegam ao atrevimento de se entregar então a ele por
pacto expresso e manifesto, tornando-se seus discipulos e aliados. Daí saem os feiticeiros, encantadores, mágicos, adivinhos e bruxos. Para cúmulo do mal, esta
paixão de gozo nos prodígios extraordinários leva a
ponto de se querer comprar a peso de dinheiro as
graças e os dons de Deus, a modo de Simão Mago,
para fazê-los servir ao demônio. Esses homens procuram ainda apoderar-se das coisas sagradas, e, – não
se pode dizê-lo sem tremer! – ousam tomar até os
divinos mistérios, como já tem sucedido, sacrílegamente usurpando o adorável corpo de Nosso Senhor
404 SUBIDA DO MONTE CARMELO
Jesus Cristo para uso de suas próprias maldades e
abominações. Digne-se Deus mostrar e estender até eles
a sua infinita misericórdia.
6. Cada um de nós bem pode compreender quão pernícíosas para si mesmas e quão prejudiciais à cristandade são estas pessoas. Observemos de passagem que
todos aqueles magos e adivinhos do povo de Israel,
aos quais Saul mandou exterminar, caíram em tantas
abominações e enganos porque quiseram imitar os verdadeiros profetas de Deus.
7. O cristão, pois, dotado de alguma graça sobrenatural, deve acautelar-se de pôr aí o seu gozo e estio
mação, não buscando obrar por esse meio; porque
Deus que lha concedeu sobrenaturalmente para utilidade da sua Igreja, ou dos seus membros, movê-lo-a
também sobrenaturalmente quando e como lhe convier. O Senhor que mandava aos seus discípulos não
se preocupassem do que nem como haviam de falar,
quando se tratasse de coisa sobrenatural da fé, quer
também que nestas obras sobrenaturais o homem espere a moção interior de Deus para agir, pois na
virtude do Espírito Santo é que se opera toda virtude.
Embora os discípulos houvessem recebido de modo
infuso as graças e os dons celestes, conforme se lê
nos Atos dos Apóstolos, ainda assim fizeram oração a
Deus rogando-lhe que fosse servido de estender sua
mão para obrar por meio deles prodígios e curas de
doentes, a fim de introduzir nos corações a fé de
Nosso Senhor Jesus Cristo (At 4,29·30).
8. O segundo dano que pode provir do primeiro é
detrimento a respeito da fé, de duas maneiras. A primeira, quanto ao próximo; como, por exemplo, se uma
pessoa se dispõe a fazer milagres ou maravilhas fora
de tempo ou sem necessidade, não somente tenta a
Deus, o que é grave pecado, como ainda poderá fazer
com que o efeíto não corresponda à sua expectativa.
Os corações, desde logo, serão expostos a cair no descrédito ou no desprezo da fé. Porque embora o mílagre se realize,e Deus assim o permita por motivos só
LIVRO 111 – CAPíTULO XXXI 405
dele conhecidos, como fez com a pitonisa de Saul (1Sm
28,12) (se é verdade que foi Samuel que ali apareceu),
nem sempre acontecerá assim. E quando acontecer
realizar-se o prodígio, não deixam de errar os que o
fazem, e de terem culpa, pois usam dessas graças
quando não é conveniente. A segunda maneira é que
o homem pode sentir em si mesmo detrimento em
relação ao mérito da fé. A estima exagerada dos milagres, cujo poder lhe foi dado, desvia-o muito do hábito
substancial da fé que por si mesma é hábito obscuro;
e assim, onde abundam os prodigios e os fatos sobrenaturais, há menos merecimento em crer. A esse propósito, diz-nos S. Gregório: “A fé é sem mérito quando a razão humana e a experiência lhe servem de
provas”. Por este motivo, Deus só opera tais maravilhas quando são absolutamente necessárias para crer.
A fim de que os seus discípulos não perdessem o mérito da fé quando tivessem experiência da sua ressurreição, Nosso Senhor, antes de se lhes mostrar,
fez várias coisas, para induzi-los a crer sem o verem.
A Maria Madalena primeiramente mostrou vazio o sepulcro e depois lhe fez ouvir dos anjos a notícia desse
mistério; porque a fé vem pelo ouvido, como diz
S. Paulo, e assim esta santa deveria acreditar antes
ouvindo do que vendo. Mesmo quando o viu, foi sob
o aspecto de um homem comum. Nosso Senhor quis
desse modo acabar de instruí-la na fé que lhe faltava
por causa de sua presença sensível, Aos seus díscípudos, primeiramente, enviou as santas mulheres a darlhes a nova da ressurreição, e eles depois foram olhar
o sepulcro. Aos dois que iam a Emaús (Lc 24,15)
juntou-se no caminho dissimuladamente; e inflamavalhes os corações na fé, antes de se manifestar aos seus
olhos. Enfim, repreendeu a todos os seus apóstolos
reunidos, por não acreditarem na palavra dos que lhes
tinham anunciado a sua ressurreição. E a São Tomé,
porque quis ter experiência tocando nas suas chagas,
censurou o Senhor quando lhe disse: “Bem-aventurados
os que não viram, e creram” (Jo 20,29).
406 SUBIDA DO MONTE CARMELO
9. Vemos, portanto, que não é condição de Deus
fazer milagres, antes, ele os faz quando não pode agir
de outro modo. Foi por isso que censurou aos faríseus: “Vós, se não vedes milagres e prodígios, não
credes” (Ib. 4,48). As almas cuja afeição se emprega
nessas obras sobrenaturais sofrem grande prejuízo
quanto à fé.
10. O terceiro dano é cair ordinariamente a alma na
vanglória ou em alguma vaidade, quando quer gozar
em tais obras extraordinárias. O próprio prazer por
essas maravilhas já é vaidade, não sendo proporcionado puramente em Deus e para Deus. Eis por que
Nosso Senhor repreendeu seus discípulos quando manifestaram alegria por terem subjugado os demônios
(Lo 10,20); jamais lhes dirigiria esta reprimenda, se
não fosse vão tal gozo.
CAPÍTUW XXXII
Dos proveitos resultantes da abnegação do gozo
nas çraças sobrenaturais.
1. A alma, além das vantagens encontradas livrandose dos três danos assinalados, adquire, pela privação
de gozo nas graças sobrenaturais, dois proveitos muito
preciosos. O primeiro é glorificar e exaltar a Deus;
o segundo, exaltar-se a si mesmo. Efetivamente, de dois
modos é Deus exaltado na alma. Primeiramente, desviando o coração e a afeição da vontade de tudo o que
não é Deus, para Iixã-los unicamente nele. “Chegar-se-á o
homem ao cimo do coração, e Deus será exaltado” (SI
63,7). O sentido destas palavras de Davi já foi referido
no começo do tratado sobre a noite da vontade. Quando o coração paira acima de todas as coisas, a alma
se eleva acima de todas elas.
2. Quando a alma concentra todo o seu gozo só em
Deus, muito glorifica e engrandece ao Senhor que então lhe manifesta sua excelência e grandeza; porque
LIVRO III – CAPÍTULO XXXII 407
nesta elevação de gozo, a alma recebe de Deus o testemunho de quem ele é. Isso, porém, não acontece sem
a vontade estar vazia e pura quanto às alegrias e às
consolações a respeito de todas as coisas, como o
Senhor ainda o ensina por Davi: “Cessai, e vede que
eu sou Deus” (SI 45,11). E outra vez diz: “Em terra
deserta, e sem caminho, e sem água; nela me apresentei a ti como no santuário para ver o teu poder e
a tua glória” (SI 42,3). Se é verdade que Deus é glorificado pela completa renúncia à satisfação de todas
as coisas, muito mais exaltado será no desprendimento
dessas outras coisas mais prodigiosas, quando a alma
põe somente nele o seu gozo; porque são graças de
maior entidade, sendo sobrenaturais; e deixá-las para
estabelecer unicamente em Deus sua alegria será atribuir a ele maior glória e maior excelência do que a
elas. Quanto mais nobres e preciosas são as coisas desprezadas por outro objeto, mais se mostra estima e
rende-se homenagem. a este último.
3. Além disto, no desapego da vontade nas obras sobrenaturais, consiste o segundo modo de exaltar a Deus.
Pois, quanto mais Deus é crido e servido sem testemunhos e sinais, tanto mais é exaltado pela alma; porque ela crê de Deus mais do que os sinais e os milagres lhe poderiam dar a entender.
4. O segundo proveito, como dissemos, faz a alma
exaltar-se a si mesma. Afastando a vontade de todos
os testemunhos e de todos os sinais aparentes, eleva-se
em fé muito mais pura, a qual Deus lhe infunde e
aumenta com maior intensidade. Ao mesmo tempo, o
Senhor faz crescer na alma as duas outras virtudes
teologaís, a esperança e a caridade. A alma goza, então,
de sublimes e divinas notícias, por meio deste hábito
obscuro da fé em total desapego, Experimenta grande
deleite de amor pela caridade que lhe faz gozar unicamente de Deus vivo; e mediante a esperança permanece satisfeita quanto à memória. Tudo isto constitui
admirável proveito, essencial e diretamente necessário
à perfeita união da alma com Deus.
408 SUBIDA DO MONTE CARMELO
CAPÍTUW XXXIII
Começa a tratar do sexto gênero de bens nos
quais pode a vontade se comprazer. Diz quais
são, e faz a primeira classificação deles.
1. Sendo o intuito de nossa obra encaminhar a alma
pelos bens espirituais até a divina união com Deus,
agora tratando do sexto gênero de bens, isto é, dos
bens espirituais que melhor contribuem para esse fim,
é necessário tanto eu como o leitor os considerarmos
com muita advertência. É muito certo e comum algumas pessoas, por falta de ciência, servirem-se dos bens
espirituais só para satisfação do sentido, permanecendo °
espírito vazio. Dificilmente se encontrará quem não
tenha o espírito em grande parte prejudicado por esse
domínio do sentido que toma para si as realidades
espirituais e as absorve antes de chegarem ao mesmo
espírito, deixando-o, desse modo, vazio e árido.
2. Voltando ao nosso assunto, entendo por bens espio
rituais todos aqueles cuja moção nos ajuda e dirige às
coisas divinas, ou favorecem o trato da alma com Deus
e as comunicações de Deus à alma.
3. Começo a fazer a divisão deles, pelos gêneros supremos; classifico os bens espirituais de duas maneiras:
uns agradáveis, e outros penosos. Cada gênero destes
se subdivide também em duas espécies. Entre os bens
espirituais agradáveis, uns revelam coisas claras e distintas, outros obscuras e confusas; e entre os penosos,
igualmente, alguns são de coisas claras e distintas e
outros, confusas e obscuras.
4. Todos esses bens podem ser divididos segundo as
potências da alma: uns, relacionados com os conhecímentos intelectuais, pertencem ao entendimento; outros,
por serem afeições, pertencem à vontade; e outros, afinal, por serem imaginários, entram no domínio da
memória.
5. Deixemos para depois a explicação dos bens penosos, pois fazem parte da noite passiva, onde falaremos
LIVRO IH – CAPíTULO XXXIV 409
deles. Ponhamos também de lado aqueles bens agradáveis cujo objeto são as coisas confusas e obscuras,
pois encontrarão seu lugar mais além, quando tivermos que tratar da notícia geral, confusa e amorosa na
qual se consuma a união da alma com Deus. No segundo livro, quando estabelecemos as divisões entre os
conhecimentos do entendimento, fizemos menção dessa
notícia geral, adiando intencionalmente esse assunto
para estudá-lo no fim de tudo. Trataremos agora dos
bens agradáveis que são de coisas claras e distintas.
CAPfTUW XXXIV
Dos bens espirituais que podem distintamente
cair no entendimento e memória. Como deve
a vontade proceder no gozo que ai encontra.
1. Não pouco teríamos que fazer aqui com o grande
número das apreensões da memória e do entendimento,
ensínando à vontade como proceder acerca do gozo
nelas encontrado, se não houvéramos tratado largamente de tudo isso no segundo e terceiro livro. Efetivamente já indicamos aí o modo de dirigir essas duas
potências para a união divina, através dessas apreensões; da mesma forma deve proceder a vontade. Por
este motivo, não é necessário repetir aqui tudo quanto
já foi dito. Basta ensinar que, assim como a memória
e o entendimento devem renunciar a todas as ditas
apreensões, a vontade por sua vez se há de despojar
do gozo oferecido por elas. A mesma atitude das duas
primeiras potências a respeito de todas as apreensões
distintas deve ser a da vontade, porque o entendimento e as outras potências nada podem admitir ou
negar sem o consentimento da vontade; e assim a mesma doutrina que serve para um caso servirá também
para o outro.
2. Veja-se, portanto, nos lugares referidos tudo quanto aqui se requer, observando que a alma incorrerá
em todos os danos e perigos ali declarados se não
410 SUBIDA DO MONTE CARMELO
souber encaminhar o gozo da vontade para Deus, no
meio de todas as apreensões.
CAPíTUW XXXV
Dos bens espirituais agradáveis que podem ser
objeto claro e distmu» da vontade. De quantas
espécies são.
1. Podemos reduzir a quatro gêneros todos os bens
nos quais a vontade pode distíntamente comprazer-se:
os que nos movem à devoção, os que nos incitam a
servir a Deus, os que nos dirigem a ele e os que nos
levam à perfeição. Trataremos de cada um segundo
esta ordem, começando pelos primeiros, a saber: as
imagens e retratos dos santos, os oratórios e cerimônias religiosas.
2. Pode haver, quanto a essas imagens e quadros,
muita vaidade e gozo inútil. Sendo tão importantes
para o culto divino e tão necessários para mover a
vontade à devoção como o demonstra o uso e aprovação da Santa Igreja, – e, portanto, convém nos aproveitarmos desse meio para despertar nossa tibieza, –
todavia, muitas pessoas põem muito mais o gozo na
pintura e ornato exterior do que no seu significado.
3. A Santa Igreja ordenou o uso das imagens para
dois fins principais: reverenciar nelas os santos, e mover a vontade despertando a devoção dos fiéis, por
meio delas, para com os mesmos santos. Quando esses
dois efeitos se produzem, as imagens são muito proveitosas, e o seu uso necessário. E, assim, devem ser
preferidas aquelas que retratam os santos mais ao vivo
e ao natural, movendo a maior devoção; só este motivo
justifica a preferência, e não o preço e curiosidade do
Ieitío ou ornato exterior. Há quem repare mais na
arte e valor da imagem, do que no santo nela representado. Em vez de dirigirem a sua devoção espiritual
e interior ao mesmo santo invisível, põem-na no ornato
e confecção material daquela imagem que deveriam es-
LIVRO In – CAPíTULO XXXV 411
quecer, pois é apenas motivo para a alma se afervorar;
e aplicam ao objeto exterior o amor e gozo da vontade
com deleite e satisfação do sentido. Com este modo
de agir, impedem totalmente o verdadeiro espírito que
requer o aniquilamento do afeto em todas as coisas
particulares.
4. Ver-se-á bem o que afirmamos, no uso detestável
adotado em nossos tempos por certas pessoas que, não
tendo ainda aborrecido o traje vão do mundo, adornam as imagens segundo os costumes modernos inventados cada dia pelos mundanos para seus passatempos
e vaidades, e com esste traje frívolo e repreensível vestem as ditas imagens. Isto aos santos sempre foi e é
sumamente odioso. Parece que tais pessoas, por sugestão diabólica, querem canonizar as suas próprias vaidades, ornando com estas as sagradas imagens, não
sem grave injúria aos mesmos santos. Desse modo, a
honesta e séria devoção da alma, que lança e arroja
de si até a sombra de qualquer vaidade, é substituída
por uma espécie de ornato de bonecas; e alguns chegam a servir-se das imagens como se fossem ídolos
em que põem toda a sua complacência. Vereis ainda
outras pessoas que não se fartam de acrescentar imagens a imagens, e querem que sejam de tal ou qual
feitio e espécie, colocadas de determinada maneira,
para deleitarem ao sentido, enquanto a devoção do
coração é bem diminuta. Têm tanto apego a essas imagens, como Micas ou Labão aos seus ídolos: o primeiro saiu de casa bradando em altas vozes porque
lhos roubavam, e o segundo, após ter percorrido longo
caminho para os recuperar, muito encolerizado, revolveu toda a tenda de Jacó para encontrá-los (Jz 18,24;
Gn 31,34),
5. A pessoa verdadeiramente devota faz do invisível
o objeto principal de sua devoção; não necessita de
muitas imagens, antes usa de poucas, escolhendo as
mais ajustadas ao divino que ao humano; procura conformar as imagens e a si mesma ao estado e condição
da outra vida, e não segundo o traje e modo deste
412 SUBIDA DO MONTE CARMELO
século. Têm em vista, não somente livrar o apetite de
ser movido pela figura deste mundo, mas ainda não
dar ocasião a que essas imagens lhe tragam a lembrança dele como aconteceria se oferecessem aos olhos
alguma coisa semelhante às do século. Longe de apegar o coração às que usa, bem pouco se aflige se lhas
tiram, porque busca dentro de si mesma a viva imagem de Cristo crucificado, e nele se goza por tudo lhe
ser tirado e tudo lhe faltar. Até quando lhe subtraem
os motivos e meios mais próprios para a sua união
com Deus, fica sossegada. Efetivamente, é maior perfeição conservar-se a alma com tranqüilidade e satisfação interior na privação de todos esses meios, do
que possuí-los com apego e apetite. Embora seja bom
recorrer às imagens que ajudam à devoção, escolhendo
por este motivo as que mais movem a alma, todavia,
não é perfeito apegar-se a elas com propriedade, a
ponto de entristecer-se quando lhas tiram.
6. Tenha por certo a alma o seguinte: quanto mais
estiver presa a qualquer imagem ou motivo sensível,
menos subirá a sua oração e devoção até Deus. Sem
dúvida, podem ser preferidas algumas imagens a outras, por retratarem mais expressamente os santos, excitando assim maior devoção; mas, unicamente por
esta causa, é permitido afeiçoar-se a elas, sem aquele
apego e propriedade a que nos referimos. De outro
modo; todo o proveito e fruto que havia de tirar o
espírito em elevar-se a Deus por esses motivos de devoção, absorvê-lo-ia o sentido, estando engolfado no
gozo desses mesmos instrumentos; e aquilo que me deveria ajudar a alma, por minha imperfeição me serve
de obstáculo, tanto como o apego e afeição desordenada a qualquer outra coisa.
7. Sobre este ponto das imagens, talvez alguma objeção me seja feita, por quem não haja compreendido
bastante a desnudez e pobreza de espírito requerida
para a perfeição. Mas nada se pode opor, certamente,
ao reconhecer a imperfeição muito comum insinuada
na escolha dos rosários. É raro encontrar pessoa que
LIVRO tn – CAPíTULO XXXVI 413
não tenha alguma fraqueza a esse respeito, desejando
que sejam de tal forma e não de outra, de cor determinada, preferindo um metal a outro, com tal ou tal
ornamento etc. No entanto, Deus não ouve mais favoravelmente as orações feitas com este ou aquele, pois
a matéria do objeto não tem importância alguma.
As orações ouvidas por Deus são de preferência as
que saem de um coração simples e verdadeiro, cuja
única pretensão é agradar ao Senhor, sem cuidar deste
ou daquele rosário, a não ser por causa das indulgências.
8. Tal o modo e condição de nossa vã cobiça, que
em tudo quer fazer presa; como bicho roedor, come
as partes sãs, e nas coisas boas e más faz o seu ofício.
Com efeito, que significa a tua predileção por um rosário curiosamente trabalhado? E por que preferes seja
desta matéria e não de outra, senão para assim satisfazer o teu gosto? Por que escolhes esta imagem de
preferência àquela, pelo motivo do seu preço e da sua
arte, sem reparar se te inflamará mais no amor divino? Certamente, se empregasses teu apetite e gozo
somente em amar a Deus, serias indiferente a isto ou
àquílo. Causa grande aborrecimento ver algumas pessoas espirituais tão apegadas ao modo e feitio desses
objetos e à curiosidade e vã complacência no uso deles,
jamais se satisfazendo; andam sempre a trocar uns por
outros, mudando e olvidando a devoção do espírito
por esses meios visíveis. Muitas vezes a eles se apegam com afeto desordenado, bem semelhante ao que
têm a outros objetos temporais; e deste modo de proceder resulta-lhes não pouco dano.
CAPíTULO XXXVI
Continua a falar das imagens. Ignorância de
certas pessoas a este respeito.
1. Muito haveria que escrever sobre a pouca inteligência de muitas pessoas a propósito das imagens.
As vezes, chega a tanto a sua inépcia, que confiam
414 SUBIDA DO MONTE CARMELO
mais numa imagem do que em outra, na persuasão
de serem mais ouvidas por Deus por aquela do que
por esta, embora ambas representem a mesma realídade,como, por exemplo, duas de Jesus Cristo ou
duas de Nossa Senhora. Isto acontece porque põem
a sua afeição na figura exterior, preferindo uma à
outra, mostrando assim grande ignorância no modo de
tratar com Deus e de prestar-lhe a devida honra e
culto, o qual só olha a fé e pureza do coração daquele
que ora. Se Deus concede mais graças por meio de
determinada imagem do que por outra do mesmo
gênero, não é porque haja na primeira algo especial
para esse efeito (embora haja diferença no exterior);
mas somente porque as pessoas se sentem movidas a
mais devoção por meio daquela. Se tivessem a mesma
devoção para com ambas as imagens (e ainda sem
esses meios), receberiam os mesmos favores divinos.
2. A diferença das formas ou a beleza material da
imagem não são motivo para Deus fazer milagres e
mercês; serve-se o Senhor daquelas diferenças, não
para as imagens serem estimadas com preferência de
umas e outras, mas unicamente para despertar nas
almas a devoção adormecida, e o afeto dos fiéis à
oração. Ora, como por meio daquela imagem este resultado é produzido, isto é, se acende a devoção nas
almas, movendo-as a mais oração (porque uma e outra
são meios para Deus atender o que lhe é pedido),
então costuma o Senhor conceder suas graças por
aquela determinada imagem, operando milagres. Não
procede Deus assim por causa da imagem, em si
mesma apenas uma pintura, mas por causa da devoção e fé que as almas têm para com o santo representado. Se tivesses, pois, a mesma devoção e fé em
Nossa Senhora, diante de uma como de outra imagem
(pois ambas representam a mesma Senhora), receberias as mesmas graças, e ainda sem imagem alguma.
Vemos por experiência como Deus faz os seus prodígios e graças por intermédio de certas imagens cuja
escultura ou pintura deixa muito a desejar, não afere-
LIVRO m – CAPíTULO XXXVI 415
cendo interesse algum à curiosidade; assim o faz para
impedir os fiéis de atribuírem qualquer coisa nesses
prodígios à escultura ou à pintura da imagem.
3. Muitas vezes Nosso Senhor escolhe as imagens
colocadas nos lugares solitários e apartados para conceder suas mercês. De um lado, porque a. devoção dos
fiéis aumenta com o sacrifício de se transportarem até
onde elas estão, e torna mais meritório o seu ato; de
outro, porque se afastam do barulho e do tumulto da
multidão para orar, como fazia o divino Mestre. Por
isto, quem faz alguma peregrinação, é bom fazê-la quando não vão outros peregrinos, embora seja em tempo
extraordinário. ‘Quando há grande concurso de gente,
jamais aconselharia que se fizesse, pois ordinariamente
se volta mais distraído do que quando se foi. Muitos
fazem essas romarias mais por recreação do que por
devoção. Havendo piedade e fé, qualquer imagem produz efeitos bons nas almas; mas, fora disso, nenhuma
imagem trará proveito. Bem viva imagem era nosso
Salvador em sua vida mortal; e, todavia, não aproveitava àqueles que não tinham fé, por mais que estivessem em sua divina companhia e presenciassem as
suas obras maravilhosas. Era esta falta de fé a causa
de não serem operados muitos milagres pelo mesmo
Senhor em sua terra, como diz o Evangelista (Lc
4,23-24) .
4. Quero declarar também aqui alguns efeitos sobrenaturais produzidos pelas imagens em certas pessoas.
Deus às vezes infunde nessas imagens virtude particular, de modo a ficar impressa com muita força na
mente aquela figura, e, ao mesmo tempo, a devoção
causada na alma, como se estivesse sempre presente;
e assim, cada vez que a pessoa se lembra da imagem,
sente despertar a mesma devoção experimentada a primeira vez que a viu, e esse efeito se produz com
maior ou menor intensidade. Sucederá que em outra
imagem, embora mais primorosa, não achará à mesma
pessoa aquele espírito.
416 SUBIDA DO MONTE CARMELO
5. Muitas almas também sentem maior devoção diante
de algumas imagens do que de outras, e não será esse
efeito sobrenatural; tratar-se-á apenas de gosto ou afeição da natureza. Assim como entre as pessoas, pode
haver simpatia e inclinação para uma que talvez seja
menos formosa, e que, entretanto, contentará mais a
alguém, ocupando-lhe a imaginação e prendendo-lhe o
afeto, porque lhe agrada aquela forma e figura, do
mesmo modo acontece com as imagens. Julgarão aquelas almas ser devoção o sentimento de afeto nascido
de tal ou qual imagem, e não será talvez mais que
afeição e gosto natural. Outras vezes, olhando uma
imagem, parece-lhes vê-la mover-se ou fazer sinais e
se lhes manifestar por qualquer modo, ou .lhe falar.
Tudo isto, bem como os efeitos sobrenaturais a que
já nos referimos, pode vir da parte de Deus, produzindo bons e verdadeiros frutos, seja para aumentar a
devoção, seja para proporcionar à alma alguma ajuda
a que se possa apoiar em sua própria fraqueza, evitando as distrações; mas muitas vezes são astúcias do
demônio, com o fim de prejudicar e iludir as almas.
Portanto, daremos doutrina sobre esta matéria no capítulo seguinte.
CAPíTULO XXXVII
Como se deve dirigir para Deus .Q gozo encontrado pela vontade nas imagens, de modo
a não constituírem estas motivos de erro ou
obstáculo.
1. Assim como as imagens são de grande proveito
trazendo-nos a lembrança de Deus e dos seus santos,
movendo a nossa vontade à devoção quando as usamos
de forma conveniente, assim também podem ser fonte
de inúmeros erros quando a alma não sabe dirigir-se
por elas a Deus nos efeitos sobrenaturais que produzem. Um dos principais meios empregados pelo demônio para surpreender as almas incautas e afastá-las
LIVRO III – CAPíTULO XXXVII 417
do verdadeiro caminho da vida espiritual é precisamente este de coisas sobrenaturais e extraordinárias
que manifesta nas imagens, tanto nas corporais e materiais aprovadas pela Igreja, como nas representações
interiores que costuma imprimir na imaginação, sob a
aparência de tal ou tal santo ou da sua imagem. Transfigura-se assim o demônio em anjo de luz, dissimulando-se sob os mesmos meios que nos são dados para
ajuda e remédio de nossas fraquezas, para deste modo
surpreender a nossa inexperiência. Uma alma boa deve
ter maior cuidado e receio naquilo que lhe parece bem,
pois o mal traz consigo o próprio testemunho de si.
2. Estes são os danos encontradiços nesta matéria:
ser impedida no seu vôo para Deus, servir-se das imagens de modo grosseiro e ignorante, ser enganada natural ou sobrenaturalmente por meio delas. Para evítálos, e também para purificar o gozo da vontade no
uso das imagens, dirigindo-se por elas a Deus conforme
a intenção da Igreja, só uma advertência basta à alma:
já que as imagens nos servem de motivo para o invisível, é necessário que a afeição e o gozo da vontade
se encaminhem exclusivamente à realidade por essas
imagens representadas. Portanto, tenha o fiel este
cuidado: vendo a imagem, não queira embeber o sentido naquela figura, seja corporal ou imaginária, bem
lavrada ou ricamente ornada; quer lhe inspire devoção
sensível, ou espiritual, quer lhe manifeste sinais extraordinários. Não faça caso desses acidentes, nem se detenha na imagem; mas eleve o espírito para o invisível
que ela representa, aplicando o sabor e gozo da vontade em Deus com oração e devoção interior a ele,
ou ao santo que é ali invocado. Não deixe o sentido
ficar preso à pintura, impedindo o espírito de voar à
realidade viva. Desta maneira, a alma não será enganada, porque não se prenderá ao que lhe disser a imagem; elevar-se-á, pelo contrário, acima do sentido, e
pelo espírito, com grande liberdade, até Deus; e também não terá mais confiança numa imagem do que
em outra. Quando encontrar em alguma delas sobrena-
418 SUBIDA DO MONTE CARMELO
turalmente maior devoção, elevando-se logo com o afeto
para Deus, receberá mais copiosas graças. Na verdade,
quando o Senhor concede essas e outras semelhantes
mercês, inclina o gozo e a afeição da vontade para o
invisível, e assim quer sempre que o façamos, em total
renúncia da força e sabor de nossas potências em relação a todo o visível e sensível.
CAPíTULO XXXVIII
Continua a explicar os bens que movem a
alma à devoção: oratórios e lugares consagrados à oração.
1. Parece-me ter já demonstrado quanta imperfeição
pode ter o espiritual quando se detém nos acessórios
das imagens, e como a imperfeição é talvez mais perigosa; porque sob o pretexto de serem coisas santas,
as almas se acreditam em segurança, refreando menos
o atrativo natural de propriedade. Enganam-se assim
freqüentemente, no gosto experimentado no uso desses
objetos piedosos, imaginando-se cheios de devoção;
quando, porventura, apenas se trata de tendência e
apetite natural, que se aplica a esses objetos como se
poderia aplicar a outros.
2. Comecemos a falar dos oratórios. Certas pessoas
acrescentam imagens sobre imagens no seu oratório,
comprazendo-se na ordem e ornamentação com que
dispõem tudo, para ficar o mesmo oratório bem adornado e atraente. Quanto a Deus, não pensam em reverencíá-Io mais, e pelo contrário, cuidam menos disso,
porque empregam todo gozo e complacência naquelas
pinturas e ornatos, desviando-o da realidade invisível,
como dissemos. Sem dúvida, todo ornamento e decoração, e toda reverência para com as imagens é sempre
pouca; por isso, aqueles que as tratam com pouco respeito e veneração são dignos de censura, bem como
os pintores e escultores que as fazem tão grosseiras e
imperfeitas. que antes tiram a devoção do que a au-
LIVRO III – CAPfTUW XXXVIII 419
mentam. Por este motivo deveriam vedar a fabricação
de imagens aos que nesta arte não são peritos. Não
obstante, que relação existe entre o culto oferecido às
imagens e o espírito de propriedade, apego e apetite
nesses ornamentos e atavios exteriores que de tal maneira cativam o teu sentido a ponto de impedirem
tanto o teu coração de unir-se a Deus, e amá-lo esquecendo tudo por seu amor? Se faltares a este dever
por causa daqueles objetos sensíveis, não somente o
Senhor deixará de agradecer tudo quanto fazes, mas
dar-te-á o castigo merecido, por não teres buscado em
tudo seu divino beneplácito, de preferência ao teu
gosto. A festa da entrada triunfal de Nosso Senhor em
Jerusalém (Mt 21) apóia o que afirmamos. Enquanto
o povo o recebia com palmas e cantos, Sua Majestade
chorava. A causa de suas lágrimas era ver os corações
tão afastados dele acreditando pagar a dívida de reconhecimento, por aqueles sinais e manifestações exteriores. Mais faziam festa a si mesmos do que a Deus.
Assim acontece a muitos em nossos dias quando há
alguma solenidade em qualquer lugar: costumam alegrar-se muito nos festejos e folguedos, gostando de
ver e de serem vistos, ou comprazendo-se em comer
ou ainda buscando outros motivos humanos, bem longe
de procurarem o agradável a Deus. Nessas tendências
e intenções tão baixas nenhum gosto dão ao Senhor,
sobretudo, se os promotores de tais festas misturam
coisas profanas e ridículas, próprias para excitar o riso
e a distração dos assistentes, ou procurando atrair a
atenção do povo em vez de despertar a devoção nas
almas.
3. E que dizer de outras intenções de algumas pessoas nessas festas, ou quando as celebram por interesse de lucro? Estes têm o olho da cobiça mais aberto
sobre o próprio ganho que sobre o serviço do Senhor.
Não ignoram a insensatez da sua conduta, e Deus, que
os vê, ainda melhor o sabe. Saibam que se não têm
reta intenção, fazem mais festa a si do que a Deus.
Tudo quanto é feito para a própria satisfação, ou para
420 SUBIDA DO MONTE CARMEW
agradar aos homens, Deus não aceita como feito a si.
Antes sucede muitas vezes estarem os homens folgando
de tomar parte nas festas religiosas, e Deus estará se
irritando contra eles, como aconteceu aos filhos de
Israel cantando e dançando em torno do seu ídolo
(Ex 32,7-28), imaginando honrar a Deus, quando muitos
milhares dentre eles foram exterminados pelo Senhor.
Ou ainda poderá suceder como aos sacerdotes Nadab
e Abiú, filhos de Aarão, que foram mortos com os
turíbulos nas mãos porque oferecíam fogo estranho
(Lv 10,1-2). De igual modo, o que penetrou na sala
do festim sem estar revestido da túnica nupcial foi,
por ordem do rei, lançado, de pés e mãos atados, nas
trevas exteriores (Mt 22,12). Mostram-nos esses diversos castigos até que ponto desagradam a Deus as irreverêncías cometidas nas reuniões feitas em sua honra.
6 Senhor, meu Deus, quantas festas vos fazem os
filhos dos homens, nas quais o demônio tem a sua
parte maior do que a vossa! O inimigo se alegra nessas
festas porque, aí, como tratante faz a sua féria. Quantas vezes, Senhor, podereis vós dizer nessas ocasiões:
“Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15,8), isto é, o seu culto
é destituído de fundamento. Deus deve ser servido unicamente pelo que ele é, sem que se interponham outros
fins: não o servir, pois, por esse motivo, é não o reconhecer como causa final de nosso culto.
4. Voltando a falar dos oratórios: há pessoas que
procuram ornamentá-los mais para satisfazer o próprio
gosto, que para honrar a Deus. Outras fazem tão pouco
caso da devoção desses lugares como se fossem salões
mundanos; e ainda outras pessoas os estimam tão
pouco, a ponto de terem mais gosto nas coisas humanas do que nas divinas.
5. Mas, deixando isto de parte, dirijamo-nos aos que
fiam mais fino, como se costuma dizer; queremos falar
daqueles que se têm em conta de gente devota. Essas
pessoas se preocupam de tal modo em contentar as
próprias inclinações naturais para decorar seus orató-
LIVRO IH – CAPíTULO XXXIX 421
rios, que nisso gastam todo o tempo que deveriam dar
a Deus pela oração e recolhimento interior. Não compreendem que nesta desordem, sem recolhimento e paz
para a alma, encontram tanta distração como nos outros cuidados temporais; a cada passo se inquietam
nos seus apetites, mormente se alguém tentasse tirarlhes aquele gozo.
CAPíTULO XXXIX
Como se deve usar dos oratórios e igrejas,
encaminhando o espírito para Deus.
1. Para dirigir a Deus o espírito nesse gênero de
bens que movem à devoção, convém advertir que é
permitido e mesmo útil aos principiantes algum prazer e gosto sensível nas imagens, oratórios e outros
objetos visíveis de piedade. Como não perderam ainda
o gosto das coisas temporais, e não estando ainda a
sua alma mortificada, este gosto sensível nos motivos
de devoção lhes é indispensável para afastá-los dos prazeres terrestres. Assim acontece à criança a quem se
apresenta um objeto antes de retirar o que ela tem
na mão a fim de distraí-la e impedir que chore vendo-se
com as mãos vazias. Para progredir, porém, na perfeição, é preciso desprender-se até dos gostos e apetites
em que a vontade pode comprazer-se; porque o puro
espírito não se prende a objeto algum, estabelecendo-se
unicamente no recolhimento e trato íntimo com Deus.
Se faz uso de imagens e oratórios, é de modo passageiro, e logo se eleva a Deus, esquecendo tudo o que
é sensível.
2. É bom escolher para a oração os lugares mais
aptos para tal exercício; contudo, deve-se escolher de
preferência aqueles que menos embaraçam os sentidos
e o espírito para a união com Deus. Pode-se aplicar,
a esse respeito, a palavra de Nosso Senhor à samaritana, quando esta lhe perguntou qual era o lugar mais
adequado para a oração, se o templo ou o monte. Jesus
422 SUBIDA DO MONTE CARMELO
respondeu que a qualidade da verdadeira oração não
estava dependendo de um ou de outro lugar, mas que
o Pai se agradava daqueles que o adoravam em espírito e em verdade. Podemos concluir dessas palavras
que, embora as igrejas e os oratórios se destinem, sem
dúvida, exclusivamente à prece e sejam apropriados
para a oração, todavia, para o íntimo trato da alma
com Deus, deve ser dada a preferência aos lugares
que menos possam ocupar e prender o sentido. Não
existe razão para certas pessoas escolherem sítios agradáveis e amenos; em vez de recolherem o espírito em
Deus, antes o detêm em recreação e gosto sensível.
Um lugar solitário e mesmo agreste facilita mais a
oração, pois o espírito, não sendo retido e limitado
pelas realidades visíveis, sobe em vôo seguro e direto
para Deus. Enfim, se os lugares exteriores algumas
vezes ajudam o espíríto ase elevar, é sempre sob a
condição de serem logo olvidados quando a alma se
une a Deus. Nosso Salvador, para nos dar exemplo,
escolhia habitualmente para orar os lugares solitários,
não favorecendo muito os sentidos, mas antes levantando o espírito ao céu, tais como as montanhas que
se levantam da terra e ordinariamente são destituídas
de vegetação, não oferecendo recreação sensivel.
3. Desse modo, o verdadeiro espiritual não cuida senão em procurar o recolhimento interior, sem se prender a tal ou tal lugar, nem a esta ou àquela comodidade, porque isso seria estar atado ao sentido; busca,
porém, esquecer tudo escolhendo para isto o lugar
mais desprovido de objetos e encantos sensíveis, para
poder gozar de seu Deus, na solidão de toda criatura.
É notável ver algumas pessoas espirituais unicamente
preocupadas em compor os seus oratórios e dispor os
lugares de oração, segundo os próprios gostos e inclinações. Não se preocupam com o recolhimento interior,
que é o mais importante; bem pouco espírito possuem, pois, se o possuíssem, não poderiam achar gosto
nesses modos e maneiras; antes, achariam cansaço.
LIVRO In – CAPíTULO XL
CAPÍTULO XL
Prossegue, en.caminhando o espírito ao recolhimento interior nas coisas já ditas.
423
1. Existem almas que nunca chegam a entrar nas
verdadeiras alegrias do espírito, porque jamais suprimem definitivamente o apetite do gozo imoderado dos
objetos exteriores e sensíveis. Observem bem essas
almas que, se as igrejas e os oratórios materiais são
lugares consagrados especialmente à oração, e se a
imagem é o objeto que reaviva o fervor, isto não
quer dizer que se deva empregar todo o gosto e sabor
nesses meios visíveis, esquecendo de orar no templo
vivo, isto é, no recolhimento interior. Para chamar
nossa atenção para este ponto, o Apóstolo S. Paulo
disse: “Não sabeis ‘vós que sois templo de Deus, e
que o espírito de Deus mora em vós?” UCor 3,16).
A esta consideração nos convida a palavra, já citada,
de Nosso Senhor à samaritana: “Aos verdadeiros adoradores, em espírito e verdade, é que convém adorar”
(Jo 4,24), Muito pouco caso faz Deus de teus oratórios
e lugares de oração bem dispostos e acomodados, se
por empregares neles teu gozo e apetite tens menos
desnudez interior que a pobreza de espírito na renúncia a tudo que podes possuir.
2. Se queres purificar a vontade do apetite e gozo
e vã complacência nos objetos exteriores elevando-a
livremente para Deus na oração, deves ter o cuidado
de conservar a consciência pura e de guardar toda a
tua vontade para Deus e a tua mente verdadeiramente
fixa nele. E, como disse, é preciso escolheres o lugar
mais afastado e solitário que puderes encontrar, aplicando então todo o gozo da vontade em invocar e glorificar a Deus. Quanto a essas pequenas satisfações
exteriores, não faças caso delas, procurando antes negálas. A alma, acostumada a saborear a devoção sensível,
jamais conseguirá chegar à força do deleite espiritual
achado na desnudez do espírito mediante o recolhimento interior.
424 SUBIDA DO MONTE CARMELO
CAPíTULO XLI
De alguns danos em que caem as almas entregues ao gozo sensivel dos objetos e lugares
de devoção.
1. A procura das doçuras sensíveis causa ao espiritual muitos prejuízos, interiores e exteriores. Com
efeito, quanto ao espírito, jamais chegará ao recolhimento interior, que consiste em privar-se e esquecer-se
de todos os gozos sensíveis, entrando no profundo centI’O de si mesmo, para aí adquirir com eficácia as virtudes. Quanto ao exterior, o homem encontra o inconveniente de não se acomodar em todos os lugares para
orar, não se dispondo a fazê-lo senão naqueles que lhe
causam gosto. E assim, muitas vezes, faltará à oração,
pois, como se diz vulgarmente, só sabe ler na cartilha
da sua aldeia.
2. Além disso, esta tendência natural torna-se causa
de grande ínconstãncía, porque a alma é incapaz de
permanecer muito tempo no mesmo lugar e de perseverar no mesmo estado. Vê-Ia-eis hoje aqui, e amanhã
ali; ora se retira numa ermida, ora em outra; orna
um dia um oratório, e no seguinte ornará outro. Pomos
nesse número as pessoas inconstantes que passam a
existência mudando de estado e de maneira de viver.
Como não se sustêm nos exercícios espirituais senão
pelo fervor e gozo sensível, jamais fazem sérios estorços para recolher-se no seu interior pela abnegação da
vontade e pela paciência em suportar as menores contrariedades. Apenas descobrem um sítio favorável à sua
devoção, ou um gênero de vida adaptado ao seu gosto
e ao seu humor, logo o buscam, abandonando o que
anteriormente ocupavam. Mas como foram impelidas
por aquele gosto sensível, depressa procuram outra
coisa, porque a sensibilidade é por sua natureza inconstante e variável.
LIVRO III – CAPíTULO XLII
CAPÍTUW XLII
Três espécies de lugares devotos. Como a
vontade deve proceder a respeito deles.
425
1. Encontro três espécies de lugares próprios para
mover a vontade à devoção. A primeira se acha em
certos sítios, certas disposições de terreno que, pela
agradável variedade dos seus aspectos, despertam naturalmente a devoção, pondo sob os nossos olhos vales
ou montanhas, árvores ou uma pacífica solidão. Esses
meios são vantajosos, desde que a vontade imediatamente se transporte para Deus, esquecendo-os; pois.
como se sabe, para alcançar o fim não se deve usar
do meio mais do que é suficiente. Se alguém procura,
com efeito, recrear o apetite e satisfazer os sentidos,
experimentará antes secura e distração para o espírito;
porque somente o recolhimento interior é capaz de
produzir gozo e fruto espiritual.
2. Portanto, chegadas a esses lugares, as pessoas devem esquecê-los, procurando permanecer unidas a Deus
no interior. Se ficam presas ao sabor e gosto do sítio,
mudando daqui para ali, mais buscam recreação sensitiva e instabilidade de ânimo, do que sossego espiritual. Sabemos como os anacoretas e outros santos
eremitas, nos vastíssimos e ameníssimos desertos, escolheram o menor lugar suficiente para habitarem, edificando estreitíssimas celas e covas onde se encerravamo Em uma dessas S. Bento viveu três anos. Um
outro solitário, que foi S. Simão, atou-se com uma
corda a fim de não transpor os limites fixados por
esse laço voluntário; e, assim, grande número de outros, cuja enumeração seria demasiado longa. Esses
santos estavam persuadidos de que, se não extinguissem a cobiça e o apetite de achar gosto e sabor espiritual, jamais chegariam a ser espirituais.
3. A segunda espécie é mais particular: são alguns
lugares onde Deus se digna conceder a certas pessoas
favores espirituais excelentes e muito saborosos. Seja
426 SUBIDA 00 MONTE CARMELO
no meio dos desertos ou fora deles, pouco importa.
As almas favorecidas por essas graças inclinam-se instintivamente para o lugar onde as receberam, sentindo,
muitas vezes, grandes desejos de aí voltar. Todavia,
isso não significa que tornem a encontrar as mesmas
graças, já uma vez recebidas, pois não dependem de
sua própria vontade. Deus concede esses favores quando, como e onde lhe apraz, sem prender-se a lugar,
ou tempo, nem ao arbítrio daquele a quem os concede. Se o coração estiver despojado de todo apego,
poderá ser-lhe útil ir orar algumas vezes nesses lugares, e isto por três razões. Primeiramente, ainda que
Deus não se prenda a um lugar particular, para conceder suas graças, parece desejar receber nesse mesmo
lugar os louvores da alma, tendo-lhe ali outorgado os
favores. A segunda razão é sentir a alma maior necessidade de testemunhar o seu reconhecimento pelos benefícios recebidos quando se encontra naquele sítio.
A terceira razão consiste em despertar-se mais a devoção com a lembrança do que ali recebeu.
4. Por essas razões, o desejo de rever esses lugares
é sempre louvável; mas, ainda uma vez, não se deve
imaginar que Deus esteja obrigado, por um primeiro
benefício, a renovar os seus dons sempre no mesmo
lugar, sem poder fazê-lo em outros; aliás, a própria
alma é centro mais conveniente e mais apto para as
graças de Deus do que qualquer lugar exterior. Lemos
na Sagrada Escritura que Abraão erigiu um altar no
próprio sítio onde Deus lhe aparecera, e invocou ali
seu santo nome. Mais tarde, na sua volta do Egito, o
Patriarca se deteve no mesmo local para oferecer as
suas preces sobre o altar já edificado (Gn 12,8; 13,4).
Também Jacó marcou o lugar onde o Senhor a ele se
mostrara, no alto da escada misteriosa, colocando uma
pedra ungida com óleo (Ib. 28,13-18). Agar, em sinal
de veneração, deu nome ao lugar onde o anjo lhe
aparecera, e com grande estimação por esse mesmo
lugar disse: “Eu vi aqui as costas daquele que me vê
a mim” (Gri 16,13),
LIVRO III – CAPíTULO XLIII 427
5. A terceira espécie refere-se a alguns lugares particulares que o Senhor designou para ali ser invocado e
servido. Tais foram o Monte Sínaí onde Deus deu a
lei a Moisés (Ex 24,12); a montanha indicada a Abraão
para imolar o seu filho (Gn 22,2); e também o Monte
Horeb onde Deus quis manifestar-se a nosso Pai Elias
(lRs 19,9L
6. A causa por que Deus escolhe estes lugares, de
preferência a outros, para aí ser louvado, s6 ele a
conhece. Quanto a·nós, é suficiente saber que tudo
está ordenado para nosso proveito e para serem ouvidas as nossas preces feitas em qualquer lugar, com
sincera fé. No entanto, os santuários especialmente dedicados a seu divino serviço oferecem mais segurança
às nossas orações, tendo sido consagrados pela Igreja
a esse fim.
CAPíTULO XLIII
De outros meios de que muitas pessoas se servem para orar e que consistem em grande
variedade de cerimônias.
1. Os gozos inúteis e a propriedade de imperfeição
que muitas pessoas têm nas coisas de devoção já mencionadas são ainda um pouco toleráveis, por não haver
malícia no seu modo de agir. Mas é insuportável O
apego manifestado por algumas almas a respeito de
certas maneiras de cerimônias introduzidas por pessoas pouco ilustradas e destituídas de simplicidade na
fé. Deixemos agora de lado as práticas que consistem
no uso de palavras estranhas ou expressões sem significação, bem como outras coisas profanas que pessoas
supersticiosas, de consciência grosseira e suspeita, ordinariamente entremeiam em suas orações. Tudo isto é
evidentemente mau e pecaminoso porque, nessas cerimônias, algumas vezes existe pacto oculto com o demônio, provocando a ira de Deus, e não a sua miserícórdia; não preciso, portanto, falar aqui sobre isso.
428 SUBIDA DO MONTE CARMELO
2. Limito-me a tratar de certas cerimônias que, não
sendo manifestamente suspeitas, são adotadas em nossos dias por muita gente, com devoção indiscreta. Essas
pessoas prestam tanta impottância e crédito às minuciosídades que acompanham as suas preces e todos os
seus exercícios espirituais, que se o mínimo lhes falta
ou sai dos limites daqueles modos e maneiras, logo
imaginam tudo perdido, parecendo-lhes que Deus não
ouvirá suas orações. A sua confiança, em vez de se
apoiar na realidade viva da prece, baseia-se nas cerimônias supérfluas, não sem grande desacato e agravo
ao Senhor. Querem, por exemplo, a missa celebrada
com certo número de velas, nem mais nem menos;
oferecida por este ou aquele sacerdote, em determinado dia, a tal ou tal hora, nem antes nem depois. Tratando-se de outro ato religioso, deve-se executá-lo em
época precisa, juntar-lhe tal número de orações, realizá-las de certo modo, com cerimônias determinadas,
nada podendo ser mudado. Ainda é necessário que a
pessoa indicada para esse mister goze de certas prerrogativas ou determinadas qualidades; se, por acaso, vem
a faltar uma única circunstância no que está previamente marcado, nada se faz.
3. Mas o pior e intolerável é a pretensão dessas pessoas, querendo sentir os efeitos das orações feitas com
aquelas cerimônias, ou desejando saber se alcançarão
os fins nelas colímados. Proceder deste modo não é
menos do que tentar a Deus e injuriá-lo gravemente;
e o Senhor, sendo tão ofendido, permite algumas vezes
ao demônio enganar essas almas, por meio de sentimentos a apreensões muito alheias ao proveito espiritual. Elas bem merecem que assim lhes suceda, por
causa da propriedade e apego às suas orações, desejando que se faça a sua própria vontade, de preferência
ao beneplácito divino. E assim, porque não querem pôr
toda a sua confiança em Deus, jamais tirarão proveito
com as suas cerimônias.
LIVRO IH – CAPíTULO XLIV
CAPíTULO XLIV
Como se deve dirigir para Deus o gozo e a fortaleza da vontade nesses exercicios de
devoção.
429
1. Quanto mais as almas confiam nessas vãs cerimônias, tanto menos confiança põem em Deus, e não
alcançarão dele o que desejam. Há alguns que oram
mais pelas suas pretensões pessoais do que para honrar a Deus; e, embora persuadidos de estar a realízação de suas petições sempre subordinada à vontade
divina, o espírito de propriedade e o gozo vão que
os animam levam-nos a multiplicar as preces para
obter o efeito dos pedidos. Fariam melhor dando outro
fim às suas súplicas, ocupando-se em coisas mais imo
portantes como em purificar deveras a consciência, e
ocupar-se, de fato, no negócio de sua salvação eterna.
Todas as outras diligências, fora destas, devem ser relegadas a segundo plano. Obtendo de Deus o que é
mais essencial, obtém-se igualmente todo o resto, desde
que seja para o maior bem da alma, mais depressa e
de modo muito melhor do que se fosse empregada
toda a força para alcançar essas graças. Assim prometeu o Senhor dizendo pelo Evangelista: “Buscai, pois,
primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, e todas
estas coisas se vos acrescentarão” (Mt, 6,33).
2. Esta é aos olhos divinos a prece mais perfeita; e
para satisfazer as petições íntimas do coração, não
há melhor meio do que pôr a força de nossas orações
naquilo que mais agrada a Deus. Então, não somente
o Senhor nos dará o que lhe pedimos, isto é, as graças
necessárias à nossa salvação, mas ainda nos concederá
os bens que julgar mais convenientes e melhores às
nossas almas, ainda mesmo quando não lhos peçamos.
Davi no-lo faz compreender em um salmo: “Perto está
o Senhor de todos os que o invocam; de todos os que
o invocam em verdade” (SI 144,18). Ora, os que o
invocam em verdade são precisamente esses que pe-
430 SUBIDA 00 MONTE CARMEW
dem os dons mais elevados ou, em outras palavras, as
graças da salvação. Referindo-se a estas, o mesmo Davi
acrescenta: “Ele cumprirá a vontade dos que o temem,
e atenderá à sua oração, e salvá-los-á. O Senhor guardará a todos os que o amam” (SI 144,19-20). Esta expressão – Perto está o Senhor – significa a sua disposição em ouvir as súplicas e satisfazer naquilo mesmo que nem pensaram em pedir. Lemos a respeito de
Salomão, que tendo solicitado uma graça muito do
agrado do Senhor, isto é, a sabedoria para governar
seu povo seguindo as leis da eqüidade, ouviu esta resposta: “Pois que a sabedoria agradou mais ao teu coração, e não me pediste riquezas, nem bens, nem glória, nem a morte dos teus inimigos, e nem ainda muitos dias de vida, pois me pediste sabedoria e ciência,
para poderes governar o meu povo, sobre o qual eu
te constituí rei, a sabedoria e a ciência te são dadas
e, além disso, dar-te-ei riquezas e bens e glória, de
modo que nenhum rei, nem antes de ti, nem depois
de ti, te seja semelhante” (2Cr 1,11-12). Deus, fiel à
sua promessa, fez com que os inimigos de Salomão
lhe pagassem tributo, e todos os povos vizinhos vivessem em paz com ele. Semelhante fato lemos no Gênesis: Abraão pedira a Deus para multiplicar a posteridade de Isaac, seu legitimo filho. Essa prece foi ouvida pelo Senhor, que prometeu realizá-la, dando a
Isaac uma geração tão numerosa quanto as estrelas do
firmamento. E acrescentou: “E quanto ao filho da tua
escrava, eu o farei também pai de um grande povo,
por ser teu sangue” (Gn 21,13),
3. Deste modo, pois, as almas devem dirigir para
Deus as forças e o gozo da vontade nas suas orações,
não se apoiando em invenções de cerimônias que a
Igreja Católica desaprova e das quais não usa. Deixem
o sacerdote celebrar a santa missa do modo e maneira
conveniente, segundo a liturgia determinada pela Igreja.
Não queiram usar de novidades, como se tivessem
mais luz do que o Espírito Santo e a sua Igreja. Se
não são atendidas por Deus numa forma simples de
LIVRO III – CAPíTULO XLIV 431
oração, creiam que muito menos as ouvirá o Senhor
por meio de todas as suas múltiplas invenções. De tal
modo é a condição de Deus, que, se o sabem levar
bem e a seu modo, alcançarão dele quanto quiserem;
mas se as almas o invocam por interesse, de nada
adianta falar-lhe.
4. Quanto às outras cerimônias de várias orações e
devoções ou práticas de piedade, não se deve aplicar
a vontade em modos e ritos diferentes dos ensinados
por Cristo. Quando os discípulos suplicaram ao Senhor
que lhes ensinasse a rezar, ele que tão perfeitamente
conhecia a vontade do Pai eterno sem a menor dúvida,
lhes indicou todo o necessário para o mesmo Pai nos
ouvir. Para isto contentou-se em ensinar-lhes as sete
petições do Pater Noster, onde estão incluídas todas
as nossas necessidades espirituais e temporais. Não
acrescentou a essa instrução outras fórmulas ou cerimônias; longe disso, em outra circunstância, ensinoulhes o seguinte: “Quando orassem, não fizessem questão de muitas palavras, porque o Pai celeste bem sabia
tudo quanto convinha a seus filhos” (Mt 6,7-8). Só lhes
recomendou, com insistência, que perseverassem na
oração, isto é, nessa mesma oração do Pater Nosier.
E noutra passagem, diz: “‘É preciso orar sempre, e
não cessar de o fazer” (Lc 18,1). Mas não ensinou
grande variedade de petições, senão que repetissem
muitas vezes com fervor e cuidado aquelas da oração
dominical que encerram tudo o que é a vontade de
Deus, e conseqüentemente tudo o que nos convém.
Quando, no horto de Getsêmani, Nosso Senhor recorreu por três vezes ao Pai eterno, repetiu de cada vez
as mesmas palavras, como referem os evangelistas:
“Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não se faça nisto a minha vontade, mas sim a
tua” (Mt 26,39). Quanto às cerimônias que nos ensinou para a oração, são apenas de dois modos: seja
no segredo de nosso aposento, onde, afastados do tumulto e de qualquer olhar humano, podemos orar com
o coração mais puro e desprendido, conforme aquelas
432 SUBIDA DO MONTE CARMELO
palavras do Evangelho: “Mas tu, quando arares, entra
no teu aposento e, fechada a porta, ora a teu Pai
ocultamente” (Mt 6,6), retirando-nos a orar nos desertos solitários, como ele próprio fazia nas horas
melhores e mais silenciosas da noite. Desta forma, não
será preciso assinalar tempo limitado às nossas orações, nem dias marcados, preferindo uns aos outros,
para nossos exercícios devotos; não haverá também
razão para usar de modos singulares expressões estranhas, em nossas preces. Sigamos em tudo a orientação
da Igreja, corformando-nos ao que ela usa; porque
todas as orações se resumem nas mencionadas petíções do Pater Noster.
5. Não quero condenar algumas pessoas que escolhem
certos dias para as suas devoções, ou para jejuar e
fazer outras coisas semelhantes; pelo contrário, antes
aprovo essas práticas devotas. Merece repreensão somente o modo e as cerimônias com que as fazem, pondo limites e formalidades nessas devoções. Foi isto
que reprovou Judite aos habitantes de Betúlia, quando
os censurou por terem fixado a Deus o tempo em que
esperavam receber o efeito da sua misericórdia; e assim
lhes disse: “E quem sois vós para limitar o tempo
da misericórdia de Deus? Não é esse o meio de atrair
a sua misericórdia, mas, antes, de excitar a sua cólera”
(Jt 8,11-12)’
CAPITULO XLV
Trata do segundo gênero de bens espirituais
distintos em que a vontade pode comprazer-se
uãmente.
1. Há uma segunda espécie de bens distintos agradáveis, nos quais a vontade pode achar gozo inútil. São
os que provocam ou persuadem a servir o Senhor, e
por isso os chamamos provocativos: referimo-nos aos
pregadores. Podemos considerá-los sob duplo aspecto;
isto é, no que diz respeito aos mesmos pregadores, e
no que se relaciona com os ouvintes. A uns e outros
LIVRO lU – CAPíTULO XLV 433
há muito que advertir indicando-lhes o modo de orientar para Deus o gozo da vontade nos sermões.
2. Em primeiro lugar, se o pregador quer ser útil
ao povo e não se expor ao perigo de vaidosa complacência em si mesmo, é bom lembrar-lhe que a pregação é um exercício mais espiritual que vocal. Sem
nenhuma dúvida, a palavra exterior é o meio indispensável; todavia, a sua força e eficácia dependem inteiramente do espírito interior. Por sublime que seja a
retórica e a doutrina daquele que prega, por elevado
que seja o estilo com o qual apresenta os seus pensamentos, o fruto será proporcional, ordinariamente, ao
espírito que o anima. Embora a palavra de Deus seja
em si mesma eficaz, e Davi pôde dizer que “o Senhor
emite sua voz, voz poderosa” (SI 67,34), todavia,
o fogo também tem a virtude de queimar e, no entanto, não inflama um objeto ao qual falte a disposição necessária.
3. Ora, para assegurar os frutos da doutrina, ou da
palavra de Deus, duas disposições são requeridas: uma
no pregador e outra no ouvinte. Habitualmente, o resultado do sermão depende da disposição do que
prega. Diz-se com razão: tal mestre, tal discípulo. Lemos nos Atos dos Apóstolos que os sete filhos daquele
príncipe dos sacerdotes dos judeus tinham o costume
de esconjurar os demônios com a mesma fórmula de
que se servia S. Paulo; um desses malignos espíritos
se pôs em furor contra eles e gritou-lhes: “Eu conheço
a Jesus, e sei quem é Paulo, mas vós quem sois?” e
apoderando-se deles, arrancou-lhes as roupas e os deixou feridos (At 19,15). Assim aconteceu porque esses
homens não possuíam as disposições necessárias para
semelhante missão, e não porque Cristo proibisse que
os demônios fossem expulsos em seu nome. Uma vez,
os apóstolos, vendo um homem, que não pertencia ao
número dos discípulos, expulsar o demônio em nome
de Cristo, quiseram opor-se a ele; logo o Senhor os
repreendeu, dizendo: “Não o estorveis, porque não
existe ninguém que, tendo em meu nome feito um
434 SUBIDA DO MONTE CARMELO
milagre, possa no mesmo instante se pôr a falar mal
de mim” (Me 9,38). Deus tem ojeriza dos que, ensinando a sua lei, não a guardam, e pregando o bem,
não o praticam. A esse respeito, S. Paulo exclama: “Tu,
poís, que a outro ensinas, não te ensinas a ti mesmo?
Tu que pregas que se não deve furtar, furtas?” (Rm
2,21)’ E o Espíríto Santo, pela voz de Davi, diz ao
pecador: “Por que falas tu dos meus mandamentos
e tornas o meu testamento na tua boca? Posto que
tu tens aborrecido a disciplina e postergaste as mínhas
palavras” (SI 49,16-17), Faz-nos compreender, por aí,
que o Senhor recusará a tais homens o espírito necessário para produzir fruto nas almas.
4. Ordínaríarnente estamos vendo: quanto mais a vida
do pregador é santa e perfeita, mais a sua palavra é
fecunda, produzindo maior fruto nos ouvintes, mesmo
sendo vulgar o seu estilo, diminuta a sua retórica e
comum a sua doutrina, porque do espírito vivo se lhe
comunica o calor. E o outro, de vida imperfeita, pouco
proveito fará nas almas, não obstante a sublimidade
do estilo e a elevação da doutrina. Certamente o bom
estilo e modo de pregar, a doutrina elevada, são de
natureza a impressionar os ouvintes, produzindo ótimos resultados, quando tudo isto vem acompanhado
de bom espírito; mas, sem esse espírito interior, embora possam ter certo gozo, e a inteligência ficar satisfeita, a vontade receberá pouco ou mesmo nada desses
sermões. E assim costuma permanecer frouxa e remissa para agir, como estava antes, apesar das mais belas
palavras maravilhosamente ditas pelo orador. Não servem essas frases senão para encantar os ouvidos, como
um concerto musical ou o som harmonioso dos sinos.
Mas o espírito, como digo, não sai dos seus limites
mais do que antes, porque não tem a voz do pregador
virtude para ressuscitar o morto tirando-o de sua
sepultura.
5. Pouco importa ouvir uma música soar melhor que
outra, se me não move mais que a primeira a praticar
obras. Porque embora tenham dito maravilhas, logo
LIVRO UI – CAPfTUW XLV 435
se esquecem, pois não pegarão fogo à vontade. Porque
além de não produzirem de si mesmo muito fruto,
aquela presa que o sentido faz no gosto da tal doutrina, impede que passe ao espírito, ficando-se só na estima do modo e dos acidentes com que é dita, louvando o pregador nisto e naquilo, e seguindo-o por esse
motivo mais do que pela emenda que daí se tira.
S. Paulo dá muito bem a entender esta doutrina aos
coríntios, dizendo: “Eu, irmãos, quando vim ter convosco, não vim pregando a Cristo, com sublimidade de
doutrina e de sabedoria; e as minhas palavras e a
minha pregação não eram em retórica de humana sabedoria, mas na manifestação do espírito e da verdade” OCor 2,1-4).
6. Porque embora a intenção do Apóstolo e a minha
não seja condenar o bom estilo e a retórica e o bom
termo, pois muito importam ao pregador, como, aliás,
a todos os negócios; porque o bom termo e estilo, até
as coisas caídas e estragadas levanta e reedifica, assim
como o mau termo às boas estraga e perde … •
1. Como se vê, São João da Cruz deixou incompleto este tratado.
Todos os manuscritos existentes terminam com esta rrase,

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