A Semana Santa de Jesus antes das suas 24 horas da paixão- Maria Valtorta

Os Três Fiat
A Semana Santa de Jesus antes das suas 24 horas da paixão- Maria Valtorta
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588. Judas Iscariotes se dirige aos chefes do Sinédrio.
29 de março de 1947.

588.1Judas chega de noite à casa de campo de Caifás. Mas a lua trabalha
como cúmplice do assassino alumiando para ele a estrada. Ele deve estar
bem certo de que vai encontrar lá, naquela casa que está fora dos muros,
aqueles que ele procurava, porque senão eu penso que ele teria procurado
entrar na cidade e teria ido ao Templo. Mas ele vai subindo com segurança
por entre as oliveiras da pequena colina. Está mais seguro desta vez do que
na outra[91]. Porque agora énoite, e tanto as sombras como a hora o
protegem contra qualquer surpresa possível. As estradas do campo já estão
desertas, depois de terem sido percorridas o dia inteiro pelas multidões de
peregrinos que vão a Jerusalém pela Pásoa. Até os pobres leprosos estão em
suas cavernas dormindo seus sonos de infelizes, esquecidos por algumas
horas de sua triste sorte.
Eis Judas à porta de uma casa toda branca à luz da lua. Ele bate à porta.
Três batidas, uma batida, três batidas, duas batidas… Até mesmo o sinal
combinado ele sabe dar muito bem! E deve ser mesmo um sinal seguro,
pois a porta se entreabre sem que o porteiro prevenido fique espiando pelo
buraquinho aberto na porta.
Judas pula para dentro e ao servo porteiro, que o cumprimenta, ele
pergunta:
– A reunião já começou?
– Sim, Judas de Keriot. Eu poderia dizer que já estão todos.
– Leva-me a ela. Eu preciso falar de coisas importantes. Anda logo!
O homem fecha a porta com todos os ferrolhos e vai indo na frente pelo
corredor meio escuro, parando diante de uma porta pesada, e bate nela. O
barulho das vozes cessa na sala fechada, e no lugar dele começa o barulho
da fechadura e a chiadeira da porta que se abre, projetando um cone de luz
viva no corredor escuro.
– És tu? Entra! –diz aquele que abriu a porta e que eu não sei quem é.
E Judas entra na sala, enquanto aquele que a abriu a fecha de novo com
a chave.
588.2Há um movimento de espanto, ou pelo menos de agitação, ao verem
Judas entrando. Mas todos o saúdam em coro:
– A paz esteja contigo, Judas de Simão.
– A paz esteja convosco, membros do santo Sinédrio –responde Judas.
– Vem à frente. Que queres? –perguntam-lhe.
– Quero falar-vos… Falar-vos do Cristo. Não é mais possível
continuarmos assim. Eu não vos posso mais ajudar se não vos decidis a
tomar decisões extremas. O homem já suspeita.
– Tu te fizeste descobrir, ó estulto? –dizem, interrompendo-o.
– Não. Vós é que sois estultos, vós que, por causa de uma pressa
estúpida, tomais medidas erradas. Sabíeis bem que eu vos teria ajudado!
Vós não confiastes em mim.
– Tens uma memória fraca, Judas de Simão! Não te lembras de como
nos deixaste na última vez? Quem poderia pensar que tu eras fiel a nós,
quando disseste que daquele modo não podias traí-lo?
–diz, irônico, Elquias, viperino mais do que nunca.
– E achais que seja coisa fácil chegar a enganar um amigo, o único que
de verdade me ama, o Inocente? Credes que seja fácil chegarmos até o
delito?
Judas está agitado.
588.3Procuram acalmá-lo. Passam a tratá-lo com brandura e a adulá-lo. E
o seduzem, ou pelo menos procuram fazê-lo, dizendo-lhe que o que ele faz
não é um delito, “mas uma obra santa em favor da Pátria, contra a qual as
represálias dos dominadores poderão ser evitadas, e tendo em vista que eles
já estão dando sinais de intolerância por causa das contínuas
agitações,divisões de partidos e agrupamentos em uma província romana, e
para o bem da Humanidade, se realmente ele está convencido da natureza
divina do Messias e de sua missão espiritual.”
– Se é verdade o que Ele diz — longe de nós crer nele — não serás tu
um colaborador da Redenção? O teu nome ficará associado ao dele através
dos séculos, e a Pátria te incluirá entre os seus heróis e te honrará com os
seus mais altos cargos. Um trono está preparado para ti entre nós. Tu
subirás, Judas. Darás leis a Israel. Oh! Não nos esqueceremos daquilo que
fizeste para o bem do sagrado Templo, do sagrado Sacerdócio, para a defesa
da Lei santíssima, para o bem de toda a Nação! Basta que nos ajudes e
depois nós te juramos, e eu te juro em nome do poderoso meu pai e de
Caifás, que leva o efod, tu serás o homem mais importante de Israel. Acima
dos tetrarcas, acima do meu próprio pai, que é um pontífice já deposto.
Como um rei, como um profeta é que serás servido e ouvido. Porque se
depois Jesus de Nazaré não fosse mais do que um falso Messias, mesmo
que na realidade não fosse passível de morte, visto que as suas ações não
são as de um ladrão, mas de um louco, eis porque fazemos lembrar das
palavras inspiradas do pontífice Caifás — tu sabes que quem usa o efod e o
racional fala por sugestão divina e profetiza o bem e o que se deverá fazer
pelo bem — Caifás, estás lembrado? Caifás disse[92]: “É bom que um
homem morra pelo povo e que não pereça toda a Nação.” Foi uma palavra
de profecia.
– E na verdade foi assim. O Altíssimo falou pela boca do Sumo
Sacerdote. Que ele seja obedecido! –dizem em coro, já com gestos teatrais e
parecendo uns autômatos que devem fazer aqueles determinados gestos,
aqueles torpes fantoches que são os membros do grande conselho do
Sinédrio.
588.4Judas está sugestionado, seduzido… Mas uma pequena raiz de bom
senso, para não dizer de bondade, subsiste ainda nele e o impede de dizer as
palavras fatais.
Eles o estão rodeando com deferência, com um amor fingido, e
insistem:
– Não crês em nós? Olha: nós somos os chefes das vinte a quatro
famílias sacerdotais, os Anciãos do povo, os escribas, os maiores fariseus
de Israel, os rabis sábios, os magistrados do Templo. A flor de Israel está
aqui ao redor de ti pronta para aclamar-te e, a uma voz, te está dizendo:
“Faze isto que é uma coisa santa.”
– E Gamaliel, onde está? E José e Nicodemos onde estão? Onde está
Eleazar, o amigo de José, e onde está João de Gaas? Eu não os estou vendo.
– Gamaliel está fazendo uma grande penitência, João está ao lado da
mulher que está grávida e sofrendo nesta tarde. E não sabemos por que
Eleazar não veio. Mas uma doença pode sobrevir a qualquer um de repente,
não te parece? Quanto a José e a Nicodemos, nós não os avisamos a
respeito desta reunião secreta e, por amor a ti, para respeitar a tua honra…
Porque no caso em que, por falta de sorte, o negócio fracassasse, o teu
nome não fosse levado ao Mestre… Nós defendemos o teu nome. Nós te
amamos, Judas, como a um novo Macabeu[93], salvador da Pátria.
– O Macabeu combateu o bom combate. E eu… cometo uma traição.
– Não fiques observando as particularidades do ato, mas a justiça do
seu fim. 588.5Fala tu, ó Sadoque, ó escriba de ouro. De tua boca fluem
preciosas palavras. Se Gamaliel é douto, tu és um sábio, porque sobre os
teus lábios está a sabedoria de Deus. Fala tu a este homem que ainda está
titubeando.
Aquela raposa, que é Sadoque, vai para frente e, com ele, o decrépito
Cananias: uma raposa esquelética e moribunda ao lado de um astuto chacal,
robusto e feroz.
– Escuta, ó homem de Deus! –começa pomposamente Sadoque,
tomando uma postura estudada, inspirada e oratória, com o braço direito
estendido ostensivamente para frente, o esquerdo ocupado em segurar todo
aquele monte de dobras que formam a sua veste de escriba.
E depois, levanta também o braço esquerdo, deixando que aquele
monumento de vestes se desfaça e saia da ordem, e assim, com o rosto e os
braços levantados para o forro da sala, ele troveja:
– Eu te digo! Eu digo diante da Altíssima Presença de Deus!
– Maranata[94] –dizem todos, curvando-se, como se um sopro do alto os
envergasse para a frente, e depois voltando à posição vertical, com os
braços cruzados sobre o peito.
– Eu te digo: Está escrito nas páginas de nossa História e do nosso
destino! Está escrito nos sinais e nas figuras que nos foram deixados, há
séculos! Está escrito no ritual que na noite fatal não há parada para os
egípcios. Está escrito na figura de Isaque! Está escrito na figura de Abel. E
que o que está escrito se verifique.
– Maranata –dizem os outros em um coro baixo e lúgubre,
impressionante, com aqueles gestos de antes, os rostos extravagantemente
atingidos pela luz dos dois lampadários acesos nas extremidades da sala, de
uma mica palidamente violácea, e dos quais sobe uma chama
fantasmagórica.
E essa reunião, com quase todos vestidos de branco, com os coloridos
pálidos e oliváceos de sua raça, tornados ainda mais pálidos e oliváceos por
causa da luz difusa, realmente mais parece uma reunião de fantasmas.
– A palavra de Deus desceu sobre os lábios dos profetas para ensinar
este decreto. Ele deve morrer. Está dito!
– Está dito. Maranata!
– Ele deve morrer, está marcada a sua sorte!
– Ele deve morrer. Maranata!
– Até nos menores particulares está descrito qual é o seu destino fatal, e
a fatalidade não se infringe!
– Maranata!
– Até já está marcado qual é o preço simbólico que será pago àquele
que se faz instrumento de Deus para que se consuma a promessa.
– Está marcado! Maranata!
– Como Redentor ou como falso profeta, Ele deve morrer!
– Deve morrer! Maranata!
– A hora chegou. Javé o quer! Eu ouvi sua voz! E ela está gritando:
“Que se cumpra!”
– O Altíssimo falou! Que se cumpra! Que se cumpra! Maranata!
588.6– Que te fortaleça o Céu como fortaleceu Jael e Judite, que eram
mulheres e souberam ser heroínas. Como fortaleceu Jefté que, sendo pai,
soube sacrificar sua filha à Pátria, como fortaleceu Davi contra Golia[95]s e
realizou o gesto que tornará eterno Israel na memória dos povos!
– Que o Céu te dê forças. Maranata!
– Que sejas o vencedor!
– Que sejas o vencedor! Maranata!
Levanta-se a voz rouca e senil de Cananias:
– Aquele que titubeia diante da ordem sagrada está condenado à
desonra e à morte!
– Está condenado. Maranata!
– Se não quiseres ouvir a voz do Senhor teu Deus e não puseres em
prática o que Ele manda, e o que ele por nossa boca te manda, que venham
sobre ti todas as maldições!
– Todas as maldições! Maranata!
– Que te castigue o Senhor com todas as maldições mosaicas[96] e te
deixe perdido entre os gentios.
– Que Ele te castigue e deixe perdido. Maranata!
Um silêncio mortal vem depois desta cena impressionante… Tudo se
imobiliza em uma imobilidade pavorosa.
588.7Finalmente ouve-se a voz de Judas, e eu quase fico sentindo
dificuldade em reconhecê-lo de tão diferente que ele está:
– Sim. Eu o farei. Eu devo fazê-lo. E o farei. Pois a última parte das
maldições mosaicas é para mim e delas preciso escapar, pois já tardei muito
a fazê-lo. E já estou ficando louco, sem ter trégua nem repouso, e com o
coração cheio de medo, os olhos perturbados e minha alma consumida pela
tristeza. Com medo de ser descoberto e fulminado por Ele no meu jogo
dúplice — porque eu não sei, não sei até que ponto Ele está vendo o meu
pensamento — vejo a minha vida suspensa por um fio, e de manhã e de
tarde peço que termine essa hora por causa do espanto que tomou conta do
meu coração pela coisa horrorosa que devo fazer. Oh! Apressai a chegada
dessa hora. Tirai-me dessas minhas angústias. Que tudo se faça. E logo!
Agora! E que eu fique livre! Vamos!
A voz de Judas ficou firme e forte, pouco a pouco, à medida que ele ia
falando. Seus gestos, que antes eram automáticos e inseguros, como se ele
fosse um sonâmbulo, tornam-se livres, voluntários. Ele se põe de pé, em
toda a sua estatura, satanicamente belo, e grita:
– Que caiam os laços de um terror louco! Eu estou livre de uma
sujeição apavorante. O Cristo! Eu não te temo mais e te entrego aos teus
inimigos! Vamos!
É o grito de um demônio vitorioso, que resolutamente se encaminha
para a porta.
588.8Mas eles o fazem parar:
– Devagar! Responde-nos: Onde está Jesus de Nazaré?
– Na casa de Lázaro, em Betânia.
– Nós não podemos entrar naquela casa que tem muitos servos fiéis. É a
casa de um favorito de Roma. Com certeza, iríamos ao encontro de
aborrecimentos.
– Lá pela aurora iremos à cidade. Ponde guardas pelo caminho de
Betfagé, provocai um tumulto e prendei-o.
– Como sabes que Ele vai por aquela rua? Ele poderia ir por outra…
– Não. Ele disse aos seus seguidores que por essa é que Ele entrará na
cidade, pela porta de Efraim, e que o fiquem esperando perto de En Rogel.
Se vós o prenderdes antes…
– Não podemos. Deveríamos entrar na cidade com Ele entre os guardas,
e todas as ruas conduzem às portas, e todas as ruas da cidade estão cheias
de gente, da manhã até à noite. Haveria um tumulto. E isso não deve
acontecer.
– Mas Ele subirá ao Templo. Chamai-o para fazer-lhe umas perguntas
em uma sala. Chamai-o em nome do Sumo Sacerdote. Ele irá, porque tem
mais respeito a vós do que à sua vida. Uma vez que Ele esteja sozinho
convosco… Não vos faltarão os meios de levá-lo para um lugar seguro e
condená-lo, quando chegar a hora.
– Mas haveria tumulto igualmente. Tu deverias estar atento ao seguinte:
a multidão é fanática por Ele. E não somente o povo, mas também os
grandes e as esperanças de Israel. Gamaliel está perdendo os seus
discípulos. E assim Jônatas ben Uziel e outros entre nós, e todos estão nos
deixando, seduzidos por Ele. Até os gentios o veneram ou o temem, o que
já é venerar, e estão prontos para se revoltarem contra nós se o tratarmos
mal. Além disso, alguns dos ladrões que nós havíamos pago para bancarem
uns falsos discípulos e suscitarem rixas, foram detidos e pediram clemência
pela delação, e o Pretor sabe… Todo mundo vai atrás dele, enquanto nós
não fazemos nada. Mas é necessário agir com sutileza para que as turbas
não percebam.
– Sim. Isso é que é preciso fazer! Até Anás assim recomenda. Ele diz:
“Que isso não aconteça durante a festa, e não haja tumulto no meio do povo
fanático.” Assim ele ordenou, dando ordens também para que ele seja
tratado com respeito no Templo e fora de lá, e não seja molestado onde
possamos levá-lo a um engano.
588.9– E então? Que é que quereis fazer? Eu estou bem disposto esta
noite, mas vós ainda hesitais… –diz Judas.
– Eis! Tu és aquele que devias conduzir-nos a Ele, em uma hora em que
Ele estiver sozinho. Tu conheces os seus hábitos. Tu nos escreveste que Ele
te conserva perto dele mais do que aos outros. Portanto, tu deves saber o
que é que Ele quer fazer. Nós estaremos sempre prontos. Quando julgares
apropriados o lugar e a hora, vem e nós iremos.
– Está combinado. E quanto eu ganharei com isso?
Judas já está falando friamente, como se estivesse tratando de um
negócio qualquer.
– Ganharás o tanto que foi dito pelos profetas[97], a fim de sermos fiéis
à palavra inspirada: trinta denários…
– Trinta denários para matar um homem, e um homem como aquele? O
preço de um cordeiro comum nestes dias de festa?! Estais doidos. Não é
que eu tenha necessidade de dinheiro. Mas é muito pouco para pagar a dor
que eu sinto por estar traindo Aquele que sempre me amou.
– Mas nós já te dissemos o que te iremos fazer. Glória, honras! Aquilo
que esperavas dele e que não tiveste. Nós curaremos a tua desilusão. Mas
quanto ao preço, ele é fixado pelos profetas! Oh! É apenas uma
formalidade. É um símbolo e nada mais. O resto virá depois…
– E o dinheiro, quando?
– Na hora em que nos disseres: “Podeis vir.” Antes, não. Ninguém paga
antes de ter a mercadoria nas mãos. Não te parece justo assim?
– Justo é. Mas pelo menos, triplicai a importância…
– Não. É o que foi dito pelos profetas. Assim é que se deve fazer. Oh!
Nós saberemos obedecer aos profetas! Eh! Eh! Eh! Não omitiremos nem
um jota de tudo o que eles escreveram sobre Ele. É assim. Eh! Eh! Eh! Nós
somos fiéis à palavra inspirada. Eh! Eh! Eh!
E dá suas risadas aquele asqueroso esqueleto que é Cananias. E muitos
lhe fazem coro com suas risadas lúgubres, baixas, insinceras, umas
verdadeiras gargalhadas de demônios que só sabem escarnecer. Porque o
riso é próprio dos espíritos serenos e amorosos, mas o escárnio é próprio
dos corações perturbados e saturados de ódio.
588.10– Tudo já foi dito. Podes ir. Nós vamos esperar a aurora para
entrarmos de novo na cidade por diferentes caminhos. Adeus. A paz esteja
contigo, ó ovelha perdida, para que voltes ao rebanho de Abraão. A paz
esteja contigo! E o reconhecimento de todo Israel! Conta conosco! Um teu
desejo para nós é lei. Deus esteja contigo como esteve com todos os seus
servos mais fiéis! Todas as bênçãos sobre ti!
Eles o acompanham com abraços e protestos de amor até à saída… E o
ficam olhando se afastar pelo corredor meio escuro… Ouvem o barulho dos
ferrolhos do portão, que se abre e se fecha.
588.11Entram novamente na sala cheios de júbilo.
Só duas ou três vozes é que se levantam, e são as dos menos
endemoninhados:
– E agora? Que vamos fazer com Judas de Simão? Bem que sabíamos
que não lhe poderemos dar aquilo que lhe prometemos, a não ser os pobres
trinta denários!… Que dirá ele quando vir que foi traído por nós? Não lhe
teremos dado um prejuízo maior? Não irá ele dizer ao povo o que fizemos?
Que ele seja um homem de pensamento inconstante nós o sabemos.
– Vós sois uns ingênuos e tolos para terdes esses pensamentos e
ficardes tão preocupados. Já está estabelecido o que faremos com Judas. Foi
estabelecido na outra vez. Não vos lembrais? E nós não mudamos de
parecer. Depois que tudo tiver acabado com Cristo, Judas morrerá. Está
dito.
– E se ele falasse antes?
– Falasse a quem? Aos discípulos e ao povo, para ser apedrejado? Ele
não falará. O horror de sua ação é para ele uma mordaça…
– Mas ele poderia arrepender-se no futuro, ter remorsos, até ficar
doido… Porque o seu remorso, se tivesse que lhe sobrevir, não poderia
fazer dele outra coisa senão um doido…
– Ele não terá tempo para isso. Nós providenciaremos antes. Cada coisa
tem seu tempo. Primeiro, o Nazareno, e depois aquele que o traiu –diz lenta
e terrivelmente Elquias.
– Sim. E tomai cuidado! Nem uma só palavra aos ausentes. Eles já
conheceram demais o que nós pensamos. Eu não confio em José nem em
Nicodemos. E pouco nos outros.
– Tens dúvidas de Gamaliel?
– Ele se afastou de nós há muitos meses. Sem uma licença direta do
Pontífice ele não tomará parte em nossas reuniões. Diz ele que está
escrevendo sua obra com a ajuda do filho. Mas eu me refiro a Eleazar e a
João.
– Oh! Eles nunca nos contradisseram –diz um sinedrita que eu já vi
outras vezes com José de Arimateia, mas de cujo nome não me lembro.
– Pelo contrário! Eles nos contradisseram pouco demais. Eh! Eh! Eh! E
será preciso vigiá-los! Muitas serpentes têm ido entocar-se no Sinédrio,
acho eu… Eh! Eh! Eh! Mas elas serão tiradas de seus ninhos… –diz
Cananias andando todo encurvado e trêmulo, apoiado em seu bastão,
procurando um lugar cômodo em uma das largas e baixas cadeiras cobertas
com pesados tapetes ao longo das paredes da sala, e lá ele se estende
satisfeito, e logo pega no sono, com a boca aberta, e feio em sua má velhice.
Todos o observam. E Doras, filho de Doras, diz:
– Ele está satisfeito por ter visto este dia. Meu pai sonhou com este dia,
mas não o viu. Contudo eu levarei no coração o seu espírito, para que ele
esteja presente no dia de sua vingança contra o Nazareno e tenha sua
alegria…
588.12– Lembrai-vos de que deveremos, em grupos, e grupos numerosos,
estar constantemente no Templo.
– Nós estaremos.
– Deveremos ordenar que Judas de Simão seja introduzido a qualquer
hora pelo Sumo Sacerdote.
– Faremos isso.
– E agora preparemos os nossos corações para a tarefa final.
– Está pronto! Já está pronto!
– Com astúcia.
– Com astúcia.
– Com capricho.
– Com capricho.
– Para acalmar qualquer suspeita.
– Para seduzir qualquer coração.
– Qualquer coisa que se diga ou se faça, nenhuma reação. Nós nos
vingaremos de tudo de uma só vez.
– Assim faremos. E será uma vingança feroz.
– Completa!
– Tremenda!
E eles se assentam, procurando um repouso à espera do alvorecer do
dia.
588.1330-03-47 (Domingo de Ramos)
Diz Jesus:
– Aqui colocarás a visão: “De Betânia a Jerusalém” (de 3 de março de
1945). E agora: vê[98]!
[91] na outra, isto é, da vez anterior, em 535.6/13.
[92] disse, em 549.15.
[93] Macabeu é Judas Macabeu, cujos gestos estão narrados em: 1 Macabeus 3-9; 2 Macabeus 8-15.
[94] Maranata, expressão já encontrada em 438.1 (última linha) e em 475.6 (na qual Maria Valtorta atribui a esta o significado de
Assim seja), poderia corresponder a uma invocação ramaica que significa “Senhor, vem!”, como em: 1 Coríntios 16,22; e será
encontrada também em 639.2.5.
[95] fortaleceu Davi contra Golias, como se lê em 1 Samuel 17,32-51 no contexto de todo o capítulo 17. O índice temático no
final do volume orienta às notas sobre David e sobre os outros personagens aqui mencionados.
[96] maldições mosaicas, que estão em: Levítico 26,14-46; Deuteronômio 28,15-68.
[97] que foi dito pelos profetas, como em: Zacarias 11,12-13.
[98] vê! introduz a visão de 30 de março de 1947, que encontraremos no próximo capítulo 590.
589. De Betânia a Jerusalém, predispondo
os apóstolos à Paixão iminente.
3 de março de 1945.
589.1Jesus vai caminhando por entre os pomares e os olivais, todos em
flor. Até as folhas prateadas das oliveiras parecem flores, tão cobertas pelo
orvalho que cintila ao ser atingido pelo primeiro raio da aurora e sacudido
por um leve vento perfumado. Cada ramo é como um trabalho de ourives,
cuja beleza os olhos contemplam admirados. As amendoeiras, já todas
cobertas de verde, destacam-se das massas branco-rosadas das outras
árvores frutíferas e, por baixo das videiras, mostram, ainda que de longe, os
esboços das primeiras folhas muito tenras, tão luzidias e sedosas que até
parecem uma escama muito fina de esmeraldas ou um farrapo de seda
preciosa. Lá no alto está um céu de turquesa escura, uniforme, sereno e
solene. Por todos os lados há cantos de passarinhos e perfumes de flores.
Um ar fresco nos restaura e alegra. De fato, é a alegria de abril que sorri
para todos os lados.
589.2Jesus está no meio dos apóstolos, os doze, e lhes fala.
– Eu mandei adiante as mulheres, pois Eu quero falar a vós sozinhos.
Nos primeiros tempos em que Eu estava convosco, Eu vos disse, àqueles
que estavam comigo: “Não perturbeis a Mãe contando-lhe sobre más ações
feitas contra o seu Filho.” Pareciam ações muito graves aquelas… Agora,
vós três, que sois testemunhas das ações que foram o começo de uma série
com a qual será levado à morte o Filho do homem — tu, João, tu, Simão, e
tu, Judas de Keriot — bem podeis estar vendo como as primeiras eram
como uns grãos de areia que estavam caindo do alto, em comparação com a
grande pedra, com as grandes pedras que agora já estão sendo usadas. Mas,
naquele tempo, o que havia em vós, em Mim e em minha Mãe era uma falta
de preparação para conhecer a maldade humana. Tanto no bem como no
mal. É isto. O homem não chega a ser bom ou mau, de repente. Mas sobe
ou desce pouco a pouco. O mesmo acontece com a dor. Agora, vós que sois
bons, crescestes no bem e podeis verificar, sem vos escandalizardes como
teria acontecido naquele tempo, a que ponto de perversidade pode descer o
homem que se sataniza, assim como Eu e minha Mãe o vemos e podemos
suportar, sem com isso morrermos, apesar de toda a dor que o homem nos
causa. Temos agora a nossa alma robustecida. Todos nós. No Bem, no Mal
ou na Dor. Contudo, ainda não chegamos ao cume… Ainda não chegamos
ao cume… Oh! Se soubésseis qual é e como é alto o cume do Bem, do Mal
e da Dor! Mas Eu vos repito as palavras daquele tempo. Não repitais para a
Mãe o que o Filho do homem está para dizer-vos. Ela sofreria demais.
Aquele que deve ser morto bebe a piedosa mistura que atordoa, a fim de
poder esperar, sem ficar tremendo a cada instante, a hora do suplício. O
vosso silêncio será como a bebida piedosa para Ela, a Mãe do Redentor!
589.3Agora Eu quero, a fim de que nada fique escuro para vós, explicar-vos o
significado das profecias[99]. E vos peço que fiqueis Comigo muito, muito.
Durante o dia serei de todos. De noite vos peço que permaneçais Comigo,
pois Eu quero ficar convosco. Eu sinto necessidade de não ficar sozinho…
Jesus está muito triste. Os apóstolos o estão vendo e se sentem
angustiados. Concentram-se ao redor dele. Até Judas vai ficar perto do
Mestre, como se fosse o mais afetuoso dos discípulos. Jesus os acaricia e
continua a falar:
– Eu quero, nesta hora que ainda me é dada, aperfeiçoar o
conhecimento de Cristo em vós. No começo, com João, Simão e Judas, Eu
tornei conhecida a Verdade das profecias a respeito do meu nascimento. As
profecias me anunciaram como melhor não as poderia pintar nem o mais
exímio dos pintores, desde o meu alvorecer até o fim dos meus dias. Pois o
alvorecer e o fim de cada dia são as duas fases às quais deram mais
destaque os profetas. Agora, o Cristo que desceu do Céu, o Justo que as
nuvens deixaram chover sobre a terra, o Rebento sublime, está para ser
morto. Está como um cedro a ser espedaçado pelo raio. Falemos agora de
sua morte. Não fiqueis suspirando nem balançando a cabeça. Não fiqueis
murmurando em vosso coração, não maldigais os homens. Isso de nada
adianta.
589.4Nós estamos subindo para Jerusalém. A Páscoa já está próxima.
“Este será para vós o primeiro dos meses do ano.”
Este mês será para o mundo o princípio de um novo tempo. Que não
cessará nunca mais. Inutilmente, de vez em quando, o homem procurará
inventar um tempo novo, tendo o nome de um ídolo deles. Serão
fulminados e castigados. Não existe mais do que um Deus no Céu e um
Messias sobre a terra: o Filho de Deus, Jesus de Nazaré. Ele, visto que de
Si Ele tudo dá, tudo pode querer, e põe o seu selo real, não sobre aquilo que
é carne, mas sobre o que é tempo e espírito.
589.5“No décimo dia deste mês, cada um tome um cordeiro por família e
por casa. E se não bastar o número das pessoas da casa para consumar o
cordeiro, que ele chame o vizinho com os seus, até o número que seja capaz
de consumir todo o cordeiro.” Porque o sacrifício e a vítima devem ser
completos e consumados. Nem uma migalha deve sobrar deles. E não
sobrará. São muitos aqueles que estão para alimentar-se com o cordeiro. É
um número sem limites para um banquete também ilimitado no tempo, e
não é preciso fazer outro fogo para consumir os restos, porque restos não
há. Aquelas partes que tiverem sido oferecidas e forem rejeitadas pelo ódio
serão consumidas pelo próprio fogo da vítima, isto é, por seu amor.
Eu vos amo, ó homens. E vós, meus doze amigos, que Eu mesmo
escolhi, vós nos quais estão as doze tribos de Israel, e vós, as treze veias da
Humanidade. Tudo Eu reuni em vós, e tudo em vós Eu vejo reunido…
Tudo.
– Mas nas veias do corpo de Adão está também a de Caim. Nenhum de
nós levantou a mão contra seu companheiro. Abel, onde está, então? –
pergunta Iscariotes.
– Tu o disseste. Nas veias do corpo de Adão está também a de Caim. E
Abel sou Eu, o doce Abel pastor de rebanhos, agradável ao Senhor porque
oferecia as suas primícias e o que era sem imperfeição, e entre todas as
ofertas oferecia antes a si mesmo. Eu vos amo, ó homens. Ainda que não
me ameis, Eu vos amo. O amor é que aumenta e completa a obra dos
sacrificadores.
589.6“Que o cordeiro seja sem mancha, macho e de um ano.” Não há
tempo para o Cordeiro de Deus. Ele existe. E existe igualmente no último
dia como existia no primeiro desta terra. Aquele que é como o Pai não
conhece em sua natureza divina o que é o envelhecimento. E sua Pessoa
conhece apenas uma velhice, apenas um cansaço: o da desilusão de ter
vindo em vão para muitos.
Quando souberdes como foi que Eu fui morto — e os olhos que virem
seu Senhor transformado em um leproso coberto de chagas, agora estão
brilhando com seu pranto ao meu lado, e já não veem mais esta bela colina,
porque o pranto os cega com sua líquida viseira — dizei, pois: “Não é disso
que Ele morreu, mas por ter sido desconhecido pelos seus mais queridos e
rejeitado por grande parte da humanidade.”
Mas se o Filho de Deus não tem tempo, e por isso Ele é diferente do
cordeiro ritual, contudo nisso é igual a ele porque é sem mancha, é do sexo
masculino e consagrado ao Senhor. Sim. Inutilmente é que os verdugos, isto
é, aqueles que me matarão com suas armas, ou por sua vontade, ou por
traição, quererão se desculpar, dizendo: “Ele era culpado.” Ninguém, se for
sincero, poderá acusar-me de pecado. Será que vós o podeis?
Estamos diante da morte. Eu já estou. E há outros que também estão.
Quem são eles? Não queres saber quem são, Pedro? Todos. A morte vem
chegando pouco a pouco e arrebata quem menos a espera. Mas também
aqueles que têm ainda muita vida pela frente, hora por hora estão diante da
morte, pois o tempo é como um relâmpago em comparação com a
eternidade, e porque na hora da morte até a mais longa das vidas se reduz a
nada; e as ações de décadas e mais décadas que já ficaram para trás, desde
aqueles da primeira hora, voltam agora em grande número para dizer: “Eis:
ontem mesmo estavas fazendo isso.” Ontem! É sempre ontem quando se
morre! E sempre é pó tanto a honra e o ouro, pelos quais tanto sofreu a
criatura! E perde todo o sabor o fruto atrás do qual correu-se como loucos.
A mulher? A bolsa? O poder? A ciência? Que foi que sobrou? Nada!
Somente a consciência e o julgamento de Deus, diante do qual está a pobre
consciência, pobre e desamparada pelas proteções humanas e pelas
riquezas, e carregada somente com as obras que houver praticado.
589.7“Apanhem o seu sangue e ponham parte dele sobre os umbrais e a
arquitrave. E o anjo, em sua passagem, não ferirá as casas nas quais estiver
o sinal do sangue.” Apanhai o meu Sangue. Ponde-o não sobre as pedras
mortas, mas sobre o coração morto. É uma nova circuncisão. E Eu me
circuncido pelo mundo todo. Eu não ofereço sacrifício com as partes
inúteis, mas suprimo a minha magnífica, sadia e pura virilidade, faço dela
um completo sacrifício; e dos membros mutilados, das veias abertas, tomo o
meu sangue para traçar com ele sobre a humanidade anéis de salvação,
anéis de eternos esponsais com Deus, que está nos Céus, com o Pai que me
espera, e digo: “Eis aí! Agora não podes mais rejeitá-los, porque rejeitarias
o teu sangue.”
“E Moisés disse: ‘… E depois mergulhai um pequeno maço de hissopo
no sangue e aspergi com ele os umbrais’.” Então, será que não basta o
sangue? Não basta. Ao meu Sangue deve estar unido o vosso
arrependimento. Sem arrependimento, um arrependimento amargo, mas
salutar, inutilmente Eu terei morrido por vós.
Esta é a primeira palavra que o Livro fala do Cordeiro Redentor. Mas o
Livro está espargido com ela. Assim como a cada novo surgir do Sol, mais
perfeita vai-se tornando a florescência destes ramos, assim, pouco a pouco,
à medida que cada ano sucede aos que já passaram e se aproxima o tempo
da Redenção, pode-se já ver quão espessa vai-se tornando a florescência.
589.8E E agora, com Zacarias, Eu digo a vós e a Jerusalém: “Eis que vem
o rei cheio de mansidão, cavalgando uma jumenta acompanhada pelo
jumentinho. Ele é pobre.” Mas Ele arruinará os poderosos que oprimem o
homem. Ele é manso e, no entanto, o seu braço levantado para abençoar
vencerá o demônio e a morte. “Ele anunciará a paz, pois Ele é o Rei da
Paz.” Ele, quando estiver pregado, estenderá o seu domínio de um até o
outro mar. “Ele que não grita, que não despedaça, que não apaga a chama
de quem tem mais fumaça do que luz, daquele que é mais fraqueza do que
força, daquele que merece a desaprovação, fará justiça segundo a verdade.”
O teu Messias, ó cidade de Sião, o teu Messias, ó povo do Senhor, o teu
Messias, ó povo da Terra.
“Sem ficar triste nem turbulento.” E vós estais vendo como em Mim
não há aquela tristeza cheia de desgostos do vencido, nem aquela rancorosa
do perverso, mas somente a seriedade de quem está vendo até que ponto
pode chegar quem etá possuído por Satanás, que está no homem; e vedes
que, mesmo podendo fazer virar cinza só com um ato de minha vontade,
Eu, durante estes três anos, vim estendendo as mãos em um gesto de amor a
todos, sem parar, e agora estas minhas mãos terão que se estender para
serem feridas! “Sem ficar triste nem turbulento Eu chegarei a estabelecer o
meu Reino.” É o Reino de Cristo, no qual está a salvação do mundo.
O Pai, o Senhor Eterno me diz: “Eu te chamei, te tomei pela mão, fiz de
Ti a aliança entre os povos e Deus, e te fiz luz das nações!” E Luz Eu tenho
sido. Luz para abrir os olhos de cegos, palavra para dar fala aos surdos,
chave para abrir os cárceres subterrâneos daqueles que estavam nas trevas
do erro.
589.9E agora, Eu que sou tudo isso, vou morrer. Entro na escuridão da
morte. Da morte, entendeis?… Eis que as primeiras coisas anunciadas estão
se cumprindo, digo Eu também com o Profeta. As outras, Eu vo-las direi
antes que o demônio nos separe.
Eis Sião lá no fundo. Ide pegar a jumenta e o jumentinho. Dizei ao
homem: “O Rabi Jesus precisa deles.” E dizei à minha Mãe que Eu estou
chegando. Ela está sobre aquele outeiro com as Marias. Está me esperando.
É o meu triunfo humano… Que seja também o triunfo dela. Sempre unidos.
Oh! Unidos!
E quem é que tem um coração de hiena, a qual, com um golpe de sua
pata cheia de garras, arranca o coração do coração materno, isto é, a Mim,
que sou seu Filho? Será um homem? Não. Todo homem nasce de uma
mulher. E por uma reflexão instintiva e moral ele não pode tornar-se feroz
para com uma mãe, porque pensa na “sua.” Portanto, não é um homem.
Quem será, então? Um demônio. Mas será que um demônio ofende a
Vencedora? Para ofendê-la precisa tocar nela. Mas Satanás não suporta a
luz virginal da Rosa de Deus. E então? Quem vós direis que seja? Não
dizeis nada? Então, Eu direi. O demônio mais astuto se fundiu com o
homem mais corrompido e, como o veneno contido nos dentes da áspide,
fica fechado nele que pode aproximar-se da Mulher e assim,
traiçoeiramente, mordê-la.
Maldito seja o monstro híbrido que é Satanás e que é o homem! Eu o
amaldiçoo? Não. Esta palavra não fica bem para o Redentor. E, então, Eu
digo à alma desse monstro híbrido o que Eu disse[100] em Jerusalém à
monstruosa cidade de Deus e de Satanás: “Oh! Se nesta hora, que ainda te é
dada, tu soubesses ver o teu Salvador!” Não há amor maior do que o meu!
E não há maior poder. Até o Pai consente se Eu disser: “Eu quero”, nem Eu
sei dizer palavras que não sejam de piedade para com aqueles que caíram e
que me estendem seus braços, lá do seu abismo.
Ó alma do maior dos pecadores, o teu Salvador, perto já das soleiras da
morte, se inclina sobre o teu abismo e te convida a que lhe dês a mão. É
verdade que não impedirás a minha morte… Mas tu… mas tu… te
salvarias, tu a quem Eu ainda amo, e a alma do teu Amigo não tremeria de
horror ao pensar que por obra do amigo conhece o horror de morrer e com
uma morte assim…
Jesus se cala… Está oprimido…
589.10Os apóstolos cochicham uns com os outros, e perguntam:
– Mas de quem Ele está falando? Quem será?
E Judas, despudoradamente mentiroso, diz:
– Certamente será um dos falsos fariseus… José ou Nicodemos, ou
então Cusa ou Manaém… Todos esses estão com as cabeças quentes e
pensando em seus negócios… Eu sei que o Herodes… E sei que o
Sinédrio… Ele confiou demais neles! Vede que nem ontem eles estiveram
presentes. Eles não têm coragem de enfrentá-lo…
Jesus já não ouve. Ele foi adiante e encontrou-se com a Mãe, que está
com as Marias, com Marta e Susana. Só falta Joana de Cusa no grupo das
mulheres piedosas.
589.11Quando tiverdes a obra completa, aqui colocareis as outras partes
que Eu darei e que direi.
[99] profecias. A seguir, citações de: Exôdo 12,1-14.21-22; Isaías 42,1-9; Zacarias 9,9-10. Quatro parágrafos abaixo, após a
primeira citação entre aspas, Maria Valtorta acrescenta a lápis no caderno autógrafo: (Profecias da Páscoa mosaica).
[100] disse, em 590.8, numa visão que precede como data de redação, mas que estará em 590.4/9.

590. O pranto sobre Jerusalém e a entrada
triunfal
na Cidade Santa. Morte de Anália.
30 de março de 1947.

590.1Jesus passa um braço por sobre os ombros de sua Mãe, que se
levantou quando João e Tiago de Alfeu a alcançaram, para dizer-lhe. “O teu
Filho está chegando”, e depois voltaram para trás para se reunirem com os
companheiros, que vão andando lentamente, conversando, enquanto Tomé e
André foram correndo a Betfagé a fim de procurar a jumenta com o
jumentinho e levá-los a Jesus.
Enquanto isso, Jesus fica falando com as mulheres:
– Eis-nos aqui perto da cidade. Eu vos aconselho a irdes. E que vades
com segurança. Entrai antes de Mim na cidade. Perto de En Rogel estão
todos os pastores e os discípulos de mais confiança. Eles receberam a
ordem para servir-vos de escolta e dar-vos proteção.
– É que… Nós já falamos com Azer de Nazaré e com Abel de Belém, e
também com Salomão. Eles tinham vindo até aqui para ver a tua chegada. A
multidão prepara uma grande festa. E nós queríamos ver. Estás vendo como
se estão sacudindo as copas das oliveiras? Não é o vento que as está
agitando desse modo. Mas é o povo que está apanhando ramos para
espalhá-los pelo caminho e cobrir-te dos raios do sol. E aquilo lá? Olha
como estão despojando as palmeiras de seus leques. Parecem ser uns cachos
pendurados, mas são homens que subiram pelos caules das palmeiras e
estão colhendo o mais que podem. E nos declives os meninos estão
curvados colhendo flores. E as mulheres certamente estão nos hortos e
jardins, apanhando corolas e ervas cheirosas para encherem de flores o
caminho. Nós queríamos ver… e imitar o gesto de Maria de Lázaro, que
recolheu todas as flores pisadas por teus pés quando entraste no jardim de
Lázaro
–diz afetuosamente por todas Maria de Cléofas.
Jesus acaricia sobre a face sua velha parenta, que mais parece uma
menina cheia de vontade de ver o espetáculo, e lhe diz:
– No meio da grande multidão não veríeis nada. Ide na frente. Ide à
casa de Lázaro, aquela que está sob a guarda de Matias. Eu passarei por lá e
vós me vereis, lá do alto.
– Meu Filho… e Tu vais sozinho? Não posso estar perto de Ti?
–diz Maria, levantando o seu rosto cheio de tristeza e fitando seus olhos
azuis como o céu sobre seu doce Filho.
– Eu gostaria de pedir-te que fiques escondida. Como a pomba na fenda
do rochedo[101]. Mais do que da tua presença, eu preciso é da tua oração,
minha Mãe querida.
– Se assim é, meu Filho, nós rezaremos, todas nós, por Ti.
– Sim. Depois de tê-lo visto passar, vireis conosco para o meu palácio
em Sião. E eu mandarei alguns servos ao Templo, que irão sempre atrás do
Mestre, a fim de que eles nos tragam as ordens dele e suas notícias –assim
decide Maria de Lázaro, sempre alerta para compreender o que é melhor
fazer e fazê-lo sem demora.
– Tens razão, minha irmã. Ainda que eu sofra por não poder
acompanhá-lo, compreendo que a ordem é justa. E, afinal, Lázaro nos disse
que não contradigamos ao Mestre em nada. E que lhe obedeçamos até nas
menores coisas. E assim faremos.
– Então, ide. Estais vendo? As ruas vão ficando movimentadas. O povo
já está quase alcançando os apóstolos. Ide. A paz esteja convosco. Eu vos
farei vir nas horas que Eu julgar oportuno. Minha Mãe, adeus. Fica em paz.
Deus está conosco.
Beija-a e se despede dela. E as obedientes discípulas lá se vão com
cuidado.
590.2Os dez apóstolos alcançam Jesus:
– Tu as mandaste adiante?
– Sim. De alguma casa poderão ver a minha entrada.
– De qual casa? –pergunta Judas de Keriot.
– Ora! Já são tantas as casas amigas! –diz Filipe.
– Por que não vão para a de Anália –insiste Iscariotes.
Jesus responde negativamente e vai-se encaminhando para Betfagé, que
fica pouco distante.
Ele já vai chegando perto quando vêm voltando os dois que foram
mandados para buscar a jumenta e o jumentinho. E eles gritam:
– Achamos tudo o que disseste e te trouxemos os animais. Mas o dono
deles quis escová-los e adorná-los com os melhores arreios a fim de prestarte uma honra. E os discípulos, unidos aos que passaram a noite nas estradas
de Betânia a fim de te prestarem honras, querem ter a honra de conduzi-los
a Ti, e nós consentimos. Pareceu-nos que o amor deles merecia um prêmio.
– Fizestes bem. Então, vamos para frente.
– São muitos os discípulos? –pergunta Bartolomeu.
– Oh! São uma multidão. Não se consegue nem entrar pelas ruas de
Betfagé. Por isso, eu disse a Isaque que leve o jumento, passando por
Cleonte, o queijeiro –responde Tomé.
– Fizeste bem. Vamos até o cume da colina. E lá esperaremos um pouco
à sombra daquelas árvores.
Eles vão para o lugar que Jesus lhes está mostrando.
– Mas assim nos afastamos do caminho. Tu estás à altura de
Betfagé, deixando-a já para trás! –exclama Iscariotes.
– E se assim Eu quero fazer quem é que me pode proibir? Será que Eu
já sou um prisioneiro e não me seja mais permitido ir para onde quero? E
haverá pressa para que Eu o seja e se teme que Eu possa escapar da
captura? E se Eu julgasse justo afastar-me para lugares mais seguros, haverá
quem me possa impedir?
Jesus dardeja com os seus olhos sobre o traidor, que não abre a boca e
dá de ombros, como se dissesse: “Faze o que te parecer.”
De fato, eles passam por detrás da pequena cidade, eu diria por um
subúrbio da cidadezinha, porque do lado oeste estão pouco longe dela, que
já faz parte das encostas do Monte das Oliveiras que coroa Jerusalém do
lado oriental. Lá embaixo, entre os declives e a cidade, as águas do Cedron
brilham ao sol de abril.
Jesus se assenta no meio daquele silêncio verde e se concentra em seus
pensamentos. Depois ele se levanta e vai até a borda do outeiro.
590.3Diz Jesus:
– Aqui colocarás a visão de 31 de julho de 1944: “Jesus que chora sobre
Jerusalém”, a partir da frase que Eu te disse como começo da visão.
Depois Ele continua a mostrar-me as fases de sua entrada triunfal.
30 de julho de 1944.
590.4Não sei como farei para descrever, porque eu me sinto tão mal do
coração que até para ficar sentada tenho dificuldade. Mas é assim mesmo.
Eu devo escrever o que vejo. O Evangelho de hoje me ilumina o caminho:
hoje é o 9º Domingo depois de Pentecostes.
De uma colina perto de Jerusalém, Jesus olha para a cidade estendida a
seus pés. Esta não é uma colina muito alta. No máximo como pode ser a
esplanada de São Miniato do Monte, em Florença. Mas é o bastante para
que o olho domine sobre a extensão do terreno onde estão as casas e as ruas
que sobem e descem pelas pequenas elevações do terreno onde está
Jerusalém. Mas esta colina é certamente muito mais alta, se tomarmos por
base o nível mais baixo da cidade; não tanto como o Calvário, mas por estar
mais perto do muro do que ele. Ela nasce propriamente quase fora dos
muros e se ergue com um salto rápido, ao lado dele, enquanto que, do outro
lado, desce devagar para o campo todo verde que se estende para o leste.
Pelo menos me parece ser o lado do oriente, se eu estiver interpretando bem
pela luz solar.
Jesus e os seus estão debaixo de um conjunto de árvores, sentados à
sombra delas. Estão descansando do muito que caminharam. Depois Jesus
se levanta, deixa aquele espaço cheio de árvores onde estavam sentados e se
dirige para onde desejava ir: para um lado do outeiro. Sua alta estatura se
destaca nítida no meio do vazio que o circunda. E Ele fica parecendo ser
ainda mais alto, estando assim de pé sozinho. Ele tem as mãos cruzadas
sobre o peito por cima do manto azul, e está olhando sério, muito sério.
Os apóstolos o estão observando. Mas o deixam tranquilo, não se
movem nem falam. Devem estar pensando que Ele tenha se isolado para
rezar.
Mas Jesus não está rezando. Depois de ter ficado olhando de lá para a
cidade em todos os seus bairros, em suas elevações, em suas
particularidades, de vez em quando lança demorados olhares sobre este ou
aquele ponto e outras vezes com menor duração. E Ele se põe a chorar sem
sacudir-se nem fazer barulho. Suas lágrimas enchem as órbitas, depois
escorrem, e vão descendo por sobre as faces, e caem, por fim. São grandes
lágrimas, silenciosas e muito tristes. São lágrimas como as de quem sabe
que deve chorar sozinho, sem esperar o consolo nem a compreensão de
ninguém. Por uma dor que não pode ser anulada e que deve ser sofrida
incondicionalmente.
590.5O irmão de João, por sua posição, é o primeiro que vê aquele pranto
e fala dele aos outros. Eles olham um para o outro, surpresos.
– Nenhum de nós lhe fez mal –diz um deles.
E um outro diz:
– Não foi ninguém da multidão que o insultou. Pois não havia no meio
dela nenhum inimigo dele.
– E, então, por que Ele está chorando? –pergunta o mais velho de todos.
Pedro e João se levantam, ao mesmo tempo, e se aproximam do Mestre.
Pensam que a única coisa que podem fazer seria fazê-lo sentir que o amam,
e perguntar-lhe o que houve.
– Mestre, Tu estás chorando? –diz João, pousando sua cabeça loura
sobre o ombro de Jesus, que é mais alto do que ele da base do pescoço para
cima.
E Pedro, pondo-lhe a mão na cintura e apertando-o, como se o
abraçasse, puxa-o para si e lhe diz:
– Que é que te faz sofrer, Jesus? Dize-o a nós que te amamos.
Jesus apoia a face sobre a cabeça loura de João e abrindo os braços
passa, por sua vez, o braço sobre o ombro do João. Ficam assim abraçados
todos os três, em uma postura de muito amor. Mas o pranto continua a
gotejar.
João o percebe descer por entre seus cabelos e torna a perguntar:
– Por que estás chorando, Mestre meu? Será que nós é que te fazemos
sofrer?
Os outros apóstolos se reuniram ao grupo amoroso e com ansiedade
esperam uma resposta.
– Não –diz Jesus–. Não sois vós. Vós sois meus amigos, e a amizade,
quando é sincera, é um bálsamo e um sorriso, mas nunca um pranto. 590.6Eu
gostaria que vós permanecêsseis sempre meus amigos. E principalmente
agora, quando vamos entrar na corrupção que fermenta, que corrompe a
quem não tem a vontade decidida de permanecer honesto.
– Para onde vamos, Mestre? Não é para Jerusalém? A multidão já te
saudou com alegria. Queres desiludi-la? Será que vamos a Samaria ver
algum milagre? E justamente agora que a Páscoa está perto?
As perguntas são feitas por muitos ao mesmo tempo.
Jesus levanta as mãos para impor silêncio e depois, com a mão direita,
mostra a cidade. É um gesto largo como o do semeador que joga as
sementes para frente de si. Ele diz:
– Ali está a corrupção. Nós estamos entrando em Jerusalém. Estamos
entrando. E somente o Altíssimo é que sabe como Eu quereria santificá-la,
trazendo-lhe a Santidade que vem dos Céus. Santificá-la de novo, a esta que
já deveria ser a Cidade Santa. Mas não poderei fazer nada por ela. Está
corrompida, e corrompida irá ficar. E os rios da santidade que jorram do
Templo vivo, e que ainda jorrarão por alguns dias até deixá-lo vazio de
vida, não serão suficientes para redimi-la. Virá ao Santo a Samaria e o
mundo pagão. Sobre os templos mentirosos surgirão os templos do
verdadeiro Deus. Os corações dos gentios adorarão o Cristo. Mas este povo,
esta cidade será sempre inimiga dele, e o seu ódio a levará ao maior dos
pecados. 590.7
Isto deve acontecer. Mas ai daqueles que vão ser instrumentos
desse delito. Ai deles!…
Jesus olha fixamente para Judas, que está quase à sua frente.
– Isto a nós não acontecerá nunca. Nós somos os teus apóstolos e
cremos em Ti, e estamos dispostos a morrer por Ti.
Judas mente despudoradamente e não abaixa o olhar, ainda que sinta
que o olhar de Jesus continua sobre ele… Os outros protestam todos juntos.
Jesus responde a todos, mas evita responder a Judas diretamente.
– Queira o céu que vós sejais assim. Mas ainda há muita fraqueza em
vós, e a tentação poderia tornar-vos semelhantes àqueles que me odeiam.
Rezai muito e velai muito sobre vós. Satanás sabe que está para ser vencido
e quer vingar-se afastando-vos de Mim. Satanás está ao redor de todos nós.
Ao redor de Mim, para impedir-me de fazer a vontade do Pai e de cumprir a
minha missão. E de vós para fazer de vós servos seus. Vigiai. Do lado de
dentro daqueles muros, Satanás pegará aquele que não souber ser forte.
Aquele para o qual terá sido uma maldição ter sido escolhido, porque ele
fez dessa escolha um plano humano. Eu vos escolhi para o Reino dos Céus,
e não para o do mundo. Lembrai-vos disso. 590.8E tu, cidade que queres a tua
ruína e sobre a qual Eu choro, fica sabendo que o Cristo ora pela tua
redenção. Oh! Se pelo menos nesta hora que te resta soubesses vir a quem
seria a tua paz! Pelo menos que compreendesses nesta hora o Amor que está
passando no meio de ti e te despojasse do ódio que te torna cega e louca,
cruel para contigo mesma e para com o teu bem! Mas o dia virá em que te
lembrarás desta hora! Já será tarde demais, então, para chorares e te
arrependeres. O Amor terá passado e terá desaparecido de tuas estradas, e
só ficará o ódio, que foi o preferido por ti. E o ódio se porá contra ti e
contra os teus filhos. Porque se tem aquilo que se quis, e ódio se paga com
ódio. E não será mais o ódio dos fortes contra o desarmado. Mas ódio
contra ódio e, por isso, guerra e morte. Cercada por trincheiras e homens
armados, já terás definhado, mesmo antes de seres destruída; e verás caindo
os teus filhos pelas armas e pela fome, e os que sobreviverem serão levados
como prisioneiros e escarnecidos e, então, tu pedirás misericórdia, mas não
a encontrarás mais, porque te recusaste a reconhecer a tua Salvação. Eu
choro, meus amigos, porque tenho um coração de homem e por isso as
ruínas da Pátria me fazem chorar. Mas é justo que isso se cumpra, pois a
corrupção campeia do lado de dentro destes muros e passa acima de todos
os limites, atraindo o castigo de Deus. Ai dos cidadãos que são causa do
mal da Pátria! Ai dos reitores que são a causa principal disso. Ai daqueles
que deveriam ser santos para levarem os outros a serem honestos, pois, ao
contrário disso, eles estão profanando a casa do seu ministério e a si
mesmos! Vinde. Minha ação nada mais valerá. Mas façamos que a Luz
brilhe ainda uma vez no meio das Trevas!
E Jesus vai descendo acompanhado pelos seus. Vai andando depressa
pelo caminho com um rosto sério e, eu diria, quase fechado. Ele nem fala
mais. Entra em uma casinha aos pés da colina e eu não vejo nada mais.
590.9Diz Jesus:
– A cena narrada[102] por Lucas parece desconexa, quase sem lógica. Eu
me compadeço das desventuras de uma cidade culpada e não sei
compadecer-me dos costumes desta cidade? Não. Não os conheço e não
posso me compadecer deles, pois que são esses próprios costumes que
geram as desventuras. E ao vê-las torna-se ainda mais aguda a minha dor. A
minha ira contra os profanadores do Templo é uma lógica consequência da
minha meditação sobre as próximas desventuras de Jerusalém.
São sempre as profanações do culto de Deus, da Lei de Deus, que
provocam os castigos do Céu. Fazendo da Casa de Deus uma espelunca de
ladrões, aqueles sacerdotes indignos e aqueles crentes indignos, pois o são
somente de nome, atraíam sobre todo o povo maldição e morte. É inútil dar
este ou aquele nome ao mal que faz um povo sofrer. Procurai o nome justo,
que é este: “Punição por viverem como uns brutos”. Deus se retira e o Mal
avança. Eis o fruto de uma vida nacional indigna do nome de cristã.
Como naqueles tempos, também agora, neste fim de século, não tenho
faltado com prodígios que fazem estremecer e reclamar… Mas, hoje como
ontem, Eu não atraí sobre Mim e sobre meus instrumentos nada mais do
que escárnio, indiferença e ódio. Cada um em particular e as nações
recordem-se de que choram inutilmente quando, tempos atrás, não quiseram
conhecer sua salvação. Inutilmente me invocam quando, no tempo em que
Eu estava com eles, me perseguiram com uma guerra sacrílega que,
partindo das consciências individuais devotadas ao Mal, espalhou-se por
toda a Nação. As Pátrias não se salvam somente com as almas, mas também
com uma forma de vida que atraia as proteções do Céu.
Repousa, pequeno João. E faze por onde para ser sempre fiel à tua
escolha. Vai em paz.
Que cansaço. Não aguento mais…
[30 de março de 1947.] 590.10Jesus quase não consegue chegar a tempo para entrar na casa e dar
a bênção aos seus moradores, quando se ouve um alegre chocalhar de
guizos e vozes de festa. E logo depois, na abertura da saída, aparece o rosto
descarnado e pálido de Isaque, e o pastor fiel entra e se prostra diante do
seu Senhor Jesus.
No vão da porta escancarada se comprimem rostos e mais rostos, e
atrás deles se veem outros… É um esbarrar-se, um atropelar-se, uma
vontade de abrir passagem… Ouve-se um ou outro grito de mulher, algum
choro de menino no meio da confusão, e gritos de saudação, aclamações
festivas:
– Feliz é este dia que te traz de novo a nós. A paz a Ti, Senhor! É bom
que voltes para premiar a nossa fidelidade.
Jesus se põe de pé e faz o gesto de quem vai falar. Todos se calam, e se
ouve muito clara a voz de Jesus.
– Paz a vós! Não fiqueis vos amontoando. Agora iremos subir juntos
para o Templo. Eu vim para estar convosco. Paz! Paz! Não vos machuqueis.
Abri caminho, meus queridos! Deixai-me sair e acompanhai-me, para
entrarmos juntos na Cidade Santa.
590.11O povo, bem ou mal, obedece. E se põe um pouco para os lados, o
tanto necessário para que Jesus possa passar e montar sobre o jumentinho.
Pois Jesus monta o potrinho, que até agora nunca foi montado, como sua
cavalgadura, e alguns peregrinos ricos que se encontram apertados no meio
da multidão põem sobre o dorso do animal os seus suntuosos mantos, e um
deles põe um joelho no chão, enquanto o outro faz de degrau para o Senhor,
que vai ficar assentado sobre o dorso do potrinho da jumenta. E a viagem
começa, enquanto Pedro vai caminhando ao lado do Mestre e Isaque vai do
outro lado, segurando as rédeas do animal ainda não domado, mas que vai
indo tranquilamente para frente, como se estivesse acostumado com aquele
trabalho, sem se enfezar nem empacar, sem espantar-se com as flores que
são jogadas sobre Jesus, mas que muitas vezes batem nos olhos do animal
ou sobre seu focinho, e ele não se incomoda com os ramos de oliveira nem
com as folhas das palmeiras que são agitadas na frente dele e ao seu redor,
ou são jogadas no chão para formarem um tapete com flores; nem se
importa com os gritos, cada vez mais fortes, dos que dizem: “Hosana ao
Filho de Davi!”, gritos que sobem ao Céu sereno, enquanto a multidão vai
crescendo sempre mais com novos acompanhantes que vão chegando.
Passar por Betfagé, por aquelas trilhas estreitas e sinuosas, não é coisa
fácil, e as mães precisam tomar nos braços as crianças, e os homens
precisam proteger as mulheres contra os choques violentos demais, e alguns
dos pais puseram a cavalo sobre seus ombros os seus filhinhos,
transportando-os assim bem no alto, acima da multidão enquanto as
vozinhas dos meninos parecem uns balidos de cordeiros ou um estridular de
andorinhas, e suas mãozinhas jogam flores e folhas de oliveira que as mães
lhes dão, e até beijos ao manso Jesus…
Ao sair do beco da pequena vila, o cortejo se põe em ordem e vai-se
alongando, com muitos voluntários à sua frente, como batedores, que fazem
ficar livre a estrada. E outros vão atrás deles, espalhando ramos no chão,
enquanto alguns outros tiveram a ideia de estender seus mantos sobre o
chão para servir de tapete; e, logo em seguida, mais outros, já uns quatro,
depois dez, cem, mil, fazem a mesma coisa. A estrada agora virou uma
faixa de muitas cores, formada pelas vestes estendidas no chão. E depois de
Jesus ter passado sobre elas, os mantos vão sendo recolhidos e levados lá
para a frente com outros e mais outros, sempre junto com as flores e os
ramos, enquanto os leques das palmeiras são agitados e balançados, e os
gritos mais fortes se elevam ao redor do Rei de Israel e em seu nome, ao
Filho de Davi e ao seu Reino!
590.12Os soldados da guarda, que estavam à porta, saem para ver o que é
que está acontecendo. Mas logo eles veem que não se trata de nenhuma
sedição. E, então, com suas lanças, vão postar-se aos lados do cortejo e
ficam observando, espantados uns e irônicos outros, aquela estranha
homenagem a um Rei, que vem cavalgando um potrinho de uma jumenta,
belo como um Deus, humilde como o mais pobre dos homens, manso,
abençoando… rodeado pelas mulheres, pelos meninos e pelos homens
desarmados, que gritam: “Paz! Paz!” E os soldados acham estranho que este
Rei, antes de entrar na cidade, pare um momento à altura dos sepulcros de
Hinon e de Siloan (acho que estou dizendo bem os nomes desses lugares,
onde eu vi milagres com os leprosos outras vezes); e pondo-se em pé,
pisando no único estribo que a sela tem, abre os braços e grita na direção
daqueles declives horrendos (onde rostos e corpos amedrontados se
mostram, olhando para Jesus e lançando seu grito lamentoso de leprosos.
“Nós somos infectados!”, a fim de repelir os imprudentes, que para
conseguir ver bem Jesus, poderiam subir até mesmo naquelas encostas
corrompidas e infectadas):
– Quem tem fé em Mim invoque o meu Nome e assim tenha saúde!
E os abençoa, retomando seu caminho e dando esta ordem a Judas de
Keriot:
– Comprarás alimentos para os leprosos e, com Simão, os levarás a eles
antes da tarde.
590.13Quando o cortejo vai entrando por baixo do arco da porta de Siloan,
e depois, como uma torrente, se revira para dentro da cidade passando pela
vila de Ofel — na qual cada terraço se transformou em uma pequena praça
cheia de pessoas que proclamam hosanas, jogando flores e derramando
perfumes lá do alto sobre a rua, procurando que eles caiam sobre o Mestre,
e o ar está saturado pela fragrância das flores, que vão morrendo sob os pés
da multidão enquanto exalam suas essências, que se espalham pelo ar, antes
de caírem no meio da poeira da rua — os gritos da multidão parecem
aumentar e vão ficando muito fortes, como se cada um estivesse urrando ou
usando de uma buzina, porque as numerosas arquivoltas, das quais
Jerusalém está cheia, os amplificam em contínuas ressonâncias.
Ouço alguém gritar, e creio que queira dizer aquilo que dizem[103] os
evangelistas: “Salém, Salém, Melquit” (ou malquit: eu procuro reproduzir o
som das palavras, mas é difícil, porque eles têm sons aspirados que nós não
temos). Um grito contínuo, semelhante ao urro de um mar tempestuoso no
qual não cessou ainda o fragor dos vagalhões que continua a esbofetear as
praias e os escolhos, e um novo vagalhão aproveita para formar um novo e
maior fragor, sem nunca haver uma trégua. Com este barulho eu estou
ensurdecida!
Perfumes, odores, gritos, o agitar de ramos e de vestes, as cores, os
urros. É uma visão que estonteia.
590.14Estou vendo como a multidão se mistura de novo continuamente,
aparecendo e desaparecendo rostos conhecidos: todos os discípulos de todos
os lugares da Palestina, todos os acompanhantes. Por um instante, eu vejo
Jairo, Jaia, o jovenzinho de Pela (ao que me parece), que era cego como sua
mãe, e que Jesus curou; vejo Joaquim de Bozra e aquele camponês da
planície de Saron com os seus irmãos, vejo o velho e solitário Matias
daquele lugar lá perto do Jordão (na margem oriental), junto ao qual Jesus
foi refugiar-se enquanto todos os lugares estavam inundados; vejo Zaqueu
com os seus amigos convertidos; vejo o velho João de Nobe com quase
todos os cidadãos; vejo o marido da Sara de Juta… Mas quem pode guardar
a lembrança dos rostos e dos nomes das pessoas vistas mais vezes, e
também uma vez só?… Eis aí agora o rosto do pastorzinho que foi
apanhado em Enon. E perto dele, por um momento, eu vejo o pai e a mãe de
Benjamim de Cafarnaum com o seu filho, que por pouco caía debaixo das
patas do jumentinho por querer passar depressa para a frente e ir receber
uma carícia de Jesus.
590.15E — infelizmente! — vejo também rostos de fariseus e escribas,
lívidos de ira por verem este triunfo, que desfazem prepotentes o círculo de
amor que se forma ao redor de Jesus, e lhe urram:
– Manda que esses doidos calem a boca! Chama-os à razão! Só se
cantam hosanas a Deus. Dize-lhes que se calem!
E Jesus lhes responde docemente:
– Ainda que Eu lhes dissesse que se calassem, e eles me obedecessem,
as pedras gritariam os prodígios do Verbo de Deus.
Porque na verdade, o povo — além de gritar: “Hosana! Hosana ao
Filho de Davi! Bendito o que vem em Nome do Senhor. Hosana a Ele e ao
seu Reino! Deus está conosco! O Emanuel chegou. Já veio o Reino do
Cristo do Senhor! Hosana! Hosana, da Terra até o alto dos Céus. Paz! Paz,
meu Rei. Paz e bênção a Ti, Rei Santo! Paz e glória nos céus e na terra!
Glória a Deus pelo seu Cristo! Paz aos homens que o sabem acolher. Paz na
Terra aos homens de boa vontade e glória nos Céus Altíssimos, porque a
hora do Senhor chegou” (e quem dá este último grito é o grupo compacto
dos pastores, que repetem o grito do Natal) — além desses gritos contínuos,
as pessoas da Palestina contam aos peregrinos da Diáspora os milagres que
elas viram. E a quem não sabe o que aconteceu, por ser algum estrangeiro
talvez de passagem pela cidade, que lhe pergunte: “Quem é esse homem? E
que foi que aconteceu?”, eles explicam: “É Jesus, o Mestre de Nazaré da
Galileia! É o Profeta! O Messias do Senhor! O Prometido! O Santo!”
De uma casa, e faz pouco tempo que passaram diante da porta dela,
pois vão andando muito devagar, sai um grupo de jovens robustos trazendo
vasos de cobre cheios de carvões acesos e incenso, que se vai queimando e
lançando nuvens de uma fumaça cheirosa. E essa cerimônia é bem aceita e
repetida, e muitos outros jovens saem correndo para frente ou já estão
voltando, passando pelas casas e pedindo fogo e resinas cheirosas para
queimarem em homenagem a Cristo.
590.16A casa de Anália aparece. O terraço todo engrinaldado pela videira
com suas folhas novas, que tremulam ao sopro de um vento suave de abril,
tem, do lado da estrada, uma fila de jovenzinhas vestidas de branco, com
véus também brancos, e no centro delas está Anália com cestos cheios de
rosas despetaladas e de lírios, que elas já estão começando a jogar para o ar.
– As virgens de Israel te estão saudando, ó Senhor –diz João, que havia
conseguido atravessar a multidão e agora está ao lado de Jesus, chamando a
sua atenção para aquela grinalda de pureza que se estende para a frente,
sorrindo lá do parapeito, espalhando sobre a rua pétalas vermelhas como
sangue e lírios do vale brancos como pérolas.
Jesus segura as rédeas, por um instante, e faz parar o poldro da jumenta.
Levanta o rosto e a mão para abençoar aquela virgindade tão enamorada por
Ele, a ponto de renunciar a qualquer outro amor terreno.
Anália se assoma ao parapeito e grita:
– Eu vi o teu triunfo, ó meu Senhor! Toma a minha vida pela tua
glorificação universal!
E com um grito muito alto, enquanto Jesus vai passando pelo lado de
baixo de sua casa, ela o saúda:
– Jesus!
Ouve-se um outro grito, diferente, mais forte do que o clamor das
turbas. Mas as pessoas, mesmo tendo-o ouvido, não param. É um rio de
entusiasmo, um rio de delírio tão grande que nem pode parar. E enquanto as
últimas ondas do rio estão ainda fora da porta, as primeiras ondas já vão
indo pelas subidas que conduzem ao Templo.
590.17– Tua Mãe! –grita Pedro, mostrando uma casa quase no canto de
uma rua que sobe para o Mória e pela qual se encaminha o cortejo. Jesus
levanta o rosto, a sorrir para sua Mãe, que está lá em cima entre as mulheres
fiéis.
O encontro com uma grande caravana faz parar o cortejo poucos metros
depois que a casa foi deixada para trás. E enquanto Jesus para com os
outros, acariciando os meninos que as mães lhe apresentam, chega correndo
um homem, que abre caminho gritando:
– Deixai-me passar! Uma mulher morreu. É uma moça. A mãe invoca o
Mestre. Deixai-me passar! Ele já a salvou uma vez!
O povo abre caminho e o homem corre até perto de Jesus, e lhe diz:
– Mestre, a filha de Elisa morreu. Ela te saudou com aquele grito e
depois se virou para trás, dizendo: “Eu vou feliz”, e expirou. O coração dela
se partiu com a grande alegria de ver-te triunfante. A mãe dela me viu no
terraço ao lado da casa dela e me mandou chamar-te. Vem, Mestre!
– Morreu! Anália morreu! Mas se ela estava sã, cheia de saúde, ainda
ontem?
Os apóstolos se reúnem agitados e os pastores também. Todos a viram
ontem em perfeita saúde… Faz pouco tempo que a viram rosada,
sorridente… Não entendem essa desventura… Fazem perguntas, querem
saber os particulares…
– Não sei. Todos vós ouvistes as suas palavras. Ela estava falando alto e
firme. Depois eu a vi dobrar-se para trás, mais branca do que suas vestes, e
ouvi a mãe gritar… E não sei mais nada.
590.18– Não vos agiteis. Ela não morreu. Caiu uma flor. E os anjos do céu
a colheram para levá-la ao seio de Abraão. Brevemente o livro da terra se
abrirá feliz lá no Paraíso, ignorando para sempre o horror do mundo.
Homem, dize a Elisa que não chore a sorte de sua filha. Dize-lhe que ela
recebeu uma grande graça de Deus e que, dentro de seis dias, ela
compreenderá qual foi a graça que Deus concedeu à sua filha. Não choreis.
Que ninguém chore. O triunfo dela é ainda maior do que o meu, porque a
uma virgem fazem cortejo os anjos, para levá-la à paz dos justos. E é um
triunfo eterno que subirá de grau sem nunca conhecer descida. Em verdade
Eu vos digo que por vós todos, mas não por Anália, tendes razão de chorar.
Vamos.
E repete aos apóstolos e aos que o rodeiam:
– Caiu uma flor. Ela descansou em paz e os anjos a acolheram. Feliz
daquela que é pura de carne e de coração, porque logo verá a Deus.
– Mas como? De que ela morreu, Senhor? –pergunta Pedro, que não
está convencido.
– De amor. De êxtase. De um gozo infinito. Feliz morte!
Os que vão muito adiante não sabem, e os que vão muito atrás também
não sabem. É por isso que os hosanas continuam, mesmo que aqui, perto de
Jesus, se tenha formado um círculo de um pensativo silêncio.
E é João quem o quebra:
– Oh! Eu gostaria de ter a mesma sorte antes das horas futuras!
– Eu também –diz Isaque–. Eu gostaria de ver o rosto da moça morta
por amor a Ti…
– Eu vos peço que façais um sacrifício do vosso desejo. Eu preciso de
vós, que estejais perto de Mim…
– Não te deixaremos, Senhor. Mas àquela mãe não se lhe dá um
conforto? –pergunta Natanael.
– Eu tomarei providências quanto a isso…
590.19Chegaram aos portões do muro do Templo. Jesus apeia do
jumentinho e um de Betfagé toma conta do animal.
É preciso considerar que Jesus não parou na primeira porta do Templo,
foi beirando o muro, indo parar somente quando chegou ao lado norte dele,
perto da Fortaleza Antônia. É de lá que Ele desce e entra no Templo, como
para mostrar que não se esconde do poder dominante, sentindo-se Inocente
em cada uma de suas ações.
No primeiro pátio do Templo ouve-se a costumeira algazarra dos
cambistas e dos vendedores de pombas, de pardais e de cordeiros, com a
diferença de que hoje os vendedores são deixados sozinhos, porque todos
correram para ver Jesus. E Jesus já vai entrando, com sua solene veste
purpúrea, e corre o olhar por sobre aquele mercado e sobre um grupo de
fariseus e escribas que estão debaixo de um pórtico, e o observam.
Seu rosto fulgura de indignação. Ele pula no centro do pátio. Foi um
salto imprevisto, que mais parecia um voo. O voo de uma chama, pois de
chama parece ser a sua veste exposta ao sol que inunda o pátio. E Ele
troveja com voz forte:
– Fora da casa de meu Pai! Aqui não é lugar de usura e de comércio.
Está escrito[104]: “A minha casa será chamada casa de oração.” Por que é,
então, que vós a transformastes em uma espelunca de ladrões, esta casa na
qual é invocado o Nome do Senhor? Fora! Limpai a minha casa. Que não
vos aconteça que Eu, em vez de usar cordas, tenha que golpear-vos com os
raios da ira celeste. Fora! Fora daqui os ladrões, os vendilhões, os
impudicos, os homicidas, os sacrílegos, os idólatras da pior das idolatrias,
que é a do próprio eu soberbo, dos corruptores e dos mentirosos. Fora!
Fora! Ou, então, o Deus Altíssimo, Eu vo-lo digo, varrerá para sempre este
lugar e fará suas vinganças sobre o povo todo.
Ele não repete as chicotadas da outra vez[105], mas, visto que os
feirantes e os cambistas estão tardando em obedecer, Ele vai à banca mais
vizinha e a vira de pernas para o ar, jogando no chão as balanças e as
moedas.
Os vendedores e os cambistas se apressam em cumprir a ordem de
Jesus, depois de terem recebido esse primeiro exemplo. E Jesus vai gritando
atrás deles:
– E quantas vezes Eu terei que dizer que este lugar não deve ser lugar
de imundície, mas de oração?
E olha para os do Templo que, obedientes às ordens pontificais, não
fazem nenhum gesto de represália.
590.20Depois de limpar o pátio, Jesus vai aos pórticos, onde estão
refugiados os cegos, os paralíticos, os estropiados e outros doentes, que o
invocam em alta voz.
– Que quereis que Eu vos faça?
– A vista, Senhor! Os membros! Que meu filho fale! Que minha mulher
fique sã. Nós cremos em Ti, Filho de Deus!
– Que Deus vos ouça. Levantai-vos e cantai hosanas ao Senhor!
Ele não cura um por um os doentes, pois são muitos. Mas faz um gesto
largo com a mão, e a graça e a salvação descem dessa mão sobre os
infelizes, que dali saem sãos, com gritos de júbilo, e vão misturar-se àqueles
dos muitos meninos que foram agarrar-se a Ele, repetindo:
– Glória, glória ao Filho de Deus! Hosana ao Filho de Davi! Hosana a
Jesus de Nazaré, ao Rei dos Reis e Senhor dos Senhores!
Alguns dos fariseus, com uma fingida deferência, lhe gritam:
– Mestre, não os estás ouvindo? Estes meninos estão dizendo o que não
deve ser dito. Repreende-os. Que eles se calem!
– E por quê? O rei Profeta, o rei da minha estirpe, por acaso não terá
dito[106]: “Da boca das crianças e dos lactentes fizeste brotar o louvor
perfeito para a confusão dos teus inimigos”? Não lestes estas palavras do
Salmista? Deixai que os pequenos digam meus louvores, pois esses lhes são
sugeridos pelos seus anjos, que veem constantemente ao meu Pai, e sabem
os segredos dele e os sugerem a estes inocentes. Agora deixai que todos vão
adorar o Senhor.
E passando diante das pessoas, atravessa o Átrio dos israelitas para
rezar…
Depois, saindo por uma porta, beirando a piscina Probática, sai da
cidade e volta para as colinas do Monte da Oliveiras.
590.21Os apóstolos estão entusiasmados… O triunfo os faz ficar seguros,
completamente esquecidos de todos os terrores que as palavras do Mestre
haviam suscitado… Eles falam de tudo… Estão ansiosos para saber notícias
de Anália. Com dificuldade, Jesus consegue fazer que eles não vão até lá,
garantindo-lhes que Ele tomará as providências que sabe… Surdos, surdos,
surdos a toda voz que traz um aviso divino… Eles são homens, homens aos
quais um grito de hosana faz esquecer tudo o mais…
Jesus fala aos servos de Maria de Magdala, que o encontraram no
Templo, e depois os despensa…
– E agora, aonde vamos? –pergunta Filipe.
– À casa de Marcos de Jonas? –diz João.
– Não. Ao campo dos Galileus. Talvez tenham vindo os meus irmãos e
Eu gostaria de saudá-los –diz Jesus.
– Poderias fazer isso amanhã –observa-lhe Tadeu.
– Boa coisa é fazer enquanto se pode fazer. Vamos aos Galileus. Eles
ficarão contentes por ver-nos. Vós tereis notícias de vossas famílias. Eu
verei as crianças…
– E nesta noite? Onde iremos dormir? Na cidade? Em que lugar? Onde
está tua Mãe? Ou, então, na casa da Joana? –pergunta Judas Iscariotes.
– Não sei. Certamente não vai ser na cidade. Talvez ainda sob alguma
tenda galileia…
– Mas por quê?
– Porque Eu sou o Galileu e amo a minha pátria. Vamos.
Eles se põem de novo a caminho subindo para o campo dos galileus,
que fica sobre o Monte da Oliveiras, perto de Betânia, e lá é um completo
branquejar de tendas ao alegre sol de abril.
590.22Diz Jesus:
– Minha paciente secretária, põe aqui a visão: “Na tarde do Domingo
de Ramos” (4 de março de 1945); e a minha paz esteja contigo.
[101] a pomba na fenda do rochedo, como em: Cântico dos cânticos 2,14.
[102] narrada, em: Lucas 19,41-46.
[103] dizem, em: Mateus 21,9; Marcos 11,9-10; Lucas 19,37-38; João 12,12-13.
[104] Está escrito, em: Isaías 56,7; Geremias 7,11.
[105] da outra vez, no primeiro ano de vida pública, em 53.4.
[106] dito, em: Salmo 8,3.

591. A tarde no Getsêmani. Os apóstolos
são chamados à realidade depois da ebriedade do
triunfo.
4 de março de 1945.

591.1Jesus está com os seus naquela paz do Horto das Oliveiras. O
entardecer já chegou. É um entardecer morno de lua cheia. Estão sentados
sobre as cadeiras naturais, que são algumas saliências por baixo das
oliveiras, justamente as primeiras que se deixam ver sobre a pracinha
natural que forma uma clareira, logo no começo. O Cedron rumoreja contra
os seus seixos e parece estar conversando sozinho. Ouve-se um ou outro
canto de rouxinol. Algum sopro da brisa. E nada mais.
Jesus fala.
– Depois do triunfo desta manhã, bem diferente está o vosso espírito.
Que é que eu devo dizer? Que ficou tranquilo? Oh! Sim! Segundo a
humanidade ficou tranquilo. Entrastes na cidade tremendo por causa de
minhas palavras. Parecia que cada um estava com medo, por si próprio, dos
valentões que estão do outro lado dos muros, prontos a assaltá-lo e fazê-lo
prisioneiro.
591.2Em cada homem há um outro homem que se revela nas horas de
perigo. Nele há também o herói, que nas horas de maior perigo aflora
daquele homem manso que todos sempre olhavam e julgavam não valer
nada, o herói que, na hora da luta, diz: “Eis-me aqui!” e que diz ao inimigo,
ao prepotente: “Vem cá! Vem medir-te comigo.” Há o santo que, enquanto
todos fogem atemorizados diante da ferocidade dos que querem fazer
vítimas, lhes diz: “Levai-me como refém e como vítima. Eu pagarei por
todos.” E há o cínico, que da infelicidade dos outros quer tirar proveito para
si próprio e ainda ri sobre os corpos mortos das vítimas. Há o traidor, que
tem uma coragem que lhe é própria: a de fazer o mal. O traidor é uma
amálgama do cínico com o velhaco, que é também uma das categorias que
gostam de se manifestar nas horas dolorosas. Porque cinicamente ele tira
proveito de uma desventura e velhacamente passa para o partido mais forte,
e ousa, contanto que daí leve vantagem, enfrentar o desprezo dos inimigos e
as maldições dos abandonados. E, enfim, há o tipo mais comum, o do
velhaco, que na hora séria só é capaz de ficar se queixando por ter-se dado a
conhecer como sendo de um partido e seguidor de um homem, que agora
estão atingidos pela maldição e têm que fugir… Esse velhaco não é tão
delinquente como o cínico, nem tão repugnante como o traidor. Mas ele
mostra a imperfeição de sua natureza espiritual. Vós… sois esses tais. Não
digais que não. Eu leio em vossas consciências.
591.3Esta manhã, vós assim pensáveis falando um ao outro: Que é que
nos acontecerá? Teremos que ser levados para a morte nós também. E a
parte mais baixa gemia: “E em muito alto grau.” Sim. Ter-vos-ei enganado
alguma vez? Desde as minhas primeiras palavras, Eu vos falei de
perseguição e de morte. E quando um de vós, por um excesso de admiração,
quis me ver e quis apresentar-me como um rei, um dos pobres reis desta
terra, sempre pobre, mesmo sendo rei e restaurador do Reino de Israel, Eu
logo corrigi aquele erro, e disse: “Eu sou Rei do espírito. Eu ofereço
privações, sacrifício, dores. Não tenho outra coisa. Aqui na terra nada mais
tenho a oferecer. Mas depois da minha e da vossa morte, na minha fé, Eu
vos darei um Reino eterno: o Reino dos Céus.” Será que o que Eu vos disse
foi diferente? Não. Vós dizeis que não.
E vós, então, me dizíeis também: “É só isso que queremos. Contigo,
como Tu, por Ti queremos viver e ser tratados, e padecer.” Sim. Vós
faláveis assim. E éreis bem sinceros. Mas era porque somente raciocináveis
como crianças, como umas crianças distraídas. Pensáveis que para vós o
seguir-me era fácil, e estáveis tão impregnados pela sensualidade que nem
podíeis admitir que fosse verdade aquilo que Eu dizia. Vós pensáveis assim:
“Ele é o Filho de Deus. E diz isso para provar o nosso amor. Mas Ele não
poderá ser atacado pelo homem. Ele, que opera milagres, fará mais um em
seu favor!” E cada um acrescentava: “Eu não posso crer que Ele vai ser
traído, preso e morto.” Tão forte era aquela vossa fé humana no meu poder
que chegáveis a não ter fé nas minhas palavras, a Fé verdadeira, espiritual,
santa a e santificante.
“Ele, que faz tantos milagres, irá fazer também um em favor de Si
próprio!”, dizíeis. Não um só, mas muitos desses milagres Eu ainda farei.
Contudo, dois deles serão tais, como a mente humana nem pode pensar.
Serão tais, como somente os que acreditam no Senhor poderão admitir.
Todos os outros, nos séculos dos séculos, dirão: “É impossível!” E até
depois da morte Eu serei objeto de contradição para muitos.
591.4Em uma amena manhã de primavera, Eu anunciei do alto de um
monte as diversas bem-aventuranças. Há ainda mais uma: “Bem-aventurado
aquele que sabe crer sem ver.” Eu já disse, andando pela Palestina: “Felizes
daqueles que ouvem a palavra de Deus e a observam.” E ainda: “Felizes
daqueles que fazem a vontade de Deus”, e outras e mais outras Eu disse,
porque na casa de meu Pai são numerosas as alegrias que estão esperando
os santos. Mas também esta outra existe. Oh! Felizes daqueles que creem
sem ter visto com os olhos corporais! Muitos santos haverá que, estando na
terra, já estarão vendo Deus, o Deus escondido no Mistério de amor.
Mas vós, depois dos três anos que estais comigo, ainda não chegastes a
ter essa fé. E só credes naquilo que vedes. Por isso, desde hoje de manhã,
depois do triunfo, dizei: “É aquilo que nós dizíamos: Ele triunfa. E nós com
Ele.” E como passarinhos que mudam as penas que foram arrancadas por
algum malvado, vós vos pondes a voar, cheios de alegria, seguros, livres
daquele aperto que minhas palavras vos haviam posto no coração. Ficastes
mais aliviados, então, até no espírito? Não. Nisso estais ainda menos
aliviados. Porque estais ainda mais despreparados para a hora que está
chegando. Vós bebestes os hosanas como um vinho forte e agradável. E
ficastes ébrios com ele. Será que um ébrio pode ser um forte? Basta a
mãozinha de um menino para fazê-lo cambalear e cair. Assim sois vós. E
bastará a aparição dos valentões para fazer-vos fugir como tímidas gazelas
ao verem aparecer sobre uma das rochas do monte o focinho aguçado do
chacal e, velozes como o vento, elas se dispersam pelas solidões do deserto.
591.5Oh! Tomai cuidado para que não morrais de uma sede horrível sobre
aquela areia ardente, que é o mundo sem Deus! Não digais, não digais, ó
meus amigos, o que diz[107] Isaías, aludindo a esse vosso estado de espírito
falso e perigoso. Não digais: “Este homem só sabe falar de conjuras, mas
não é preciso ter medo, não é preciso ficar espantado. Não devemos temer
aquilo que Ele nos profetiza. Israel o ama. E isso nós vimos.” Quantas
vezes o tenro pé nu de um pequenino pisa nas ervas floridas do prado,
colhendo flores para levá-las à mamãe, e crê encontrar somente caules e
flores; e, ao contrário, pousa o calcanhar sobre a cabeça de uma serpente e
leva uma mordida, e morre! As flores escondiam a serpente. Também esta
manhã… Até nesta manhã! Eu sou o Condenado coroado de rosas. As
rosas!… Quanto duram as rosas? Que é que sobra delas depois que sua
corola se despetalou? Somente os espinhos.
Eu — Isaías o disse — serei para vós, e convosco digo que serei para o
mundo, santificação, mas também uma pedra de tropeço, pedra de
escândalo, um laço e uma ruína para Israel e para a Terra. Santificarei
aqueles que tiverem boa vontade e farei cair e ser reduzidos a pedaços
aqueles que tiverem má vontade. Os anjos não dizem palavras de mentira
nem palavras de pouca duração. Eles vêm de Deus, que é Verdade e é
Eterno, e o que dizem é verdade e palavra imutável. Eles disseram: “Paz aos
homens de boa vontade.” Foi quando nascia, ó Terra, o teu Redentor. Mas
para se obter a paz que vem de Deus, isto é, a santificação e a glória, é
preciso ter “boa vontade.” É inútil o meu nascimento, inútil a minha morte
para aqueles que não têm essa boa vontade. O meu vagido e o meu estertor,
o meu primeiro passo e o último, a ferida da circuncisão e a da consumação
terão sido em vão se em vós, se nos homens, não houver a boa vontade de
se redimirem e se santificarem. Eu vo-lo digo: muitíssimos tropeçarão em
Mim, que estou posto como uma coluna de sustentação e não como
armadilha para o homem, e cairão porque estão ébrios de soberba, de
luxúria, de avareza, e serão pegos na rede de seus pecados, presos e
entregues a Satanás. Ponde estas palavras em vossos corações e selai-as
para os futuros discípulos.
591.6Vamos. A Pedra se levanta[108]. Demos mais um passo para frente.
Para subirmos ao monte. Ele deve estar esplendente, lá no cume,
porque ele é Sol, é Luz e é o Oriente. E o Sol já esplende sobre os cumes.
Deve ser sobre o Monte, por que o Templo verdadeiro deve ser visto por
todo o mundo. E por Mim mesmo Eu o edifico com a Pedra viva da minha
Carne imolada. Eu colo as partes dela com a cal feita de suor e sangue. E
ficarei sobre o meu trono, coberto com uma púrpura viva, coroado com uma
coroa nova, e aqueles que estão longe virão a Mim, trabalharão no meu
Templo, ao redor dele. Eu sou a base e o cume. Mas tudo ao redor se
tornará sempre maior, e o tamanho da casa aumentará. Eu mesmo é que
lapidarei as minhas pedras e formarei os meus operários. Pelo Pai, pelo
Amor e pelo homem, e pelo ódio, Eu fui trabalhado a cinzel, assim Eu
também os trabalharei. E, então, depois que em um só dia terá sido tirada a
iniquidade da Terra, sobre a pedra do Sacerdote para sempre se voltarão os
sete olhos a fim de verem a Deus, e desembocarão as sete fontes para
vencerem o fogo de Satanás.
Satanás… Judas, vamos. E lembra-te de que o tempo urge e que na
noite de quinta-feira[109] o Cordeiro deve ser entregue.
[107] diz, em: Isaías 8,12-16 inclusive para as citações que vêm a seguir.
[108] A Pedra se levanta… é uma paráfrase de: Zacarias 3,9.
[109] quinta-feira é de compreensão imediata para o leitor de hoje, que se adapta à linguagem da obra valtortiana. Nos títulos dos
próximos capítulos, como acontece muitas vezes no texto da obra, são mencionados os dias da semana

592. Segunda-feira santa. Conforto à mãe de
Anália e encontro com o legionário Vital.
A figueira estéril e a parábola dos vinhateiros pérfidos.
As perguntas sobre a autoridade de Jesus e o batismo de João.
31 de março de 1947.

592.1Jesus sai depressa da tenda de um galileu, lá sobre o pequeno
planalto do Olival, onde muitos galileus se reúnem por ocasião das
solenidades. O campo está todo ainda dormindo sob a claridade da lua, que
vai se pondo lentamente, cobrindo com sua luz de prata as tendas, as
árvores e os declives. E lá embaixo a cidade está dormindo…
Jesus passa com segurança e sem fazer barulho por entre uma tenda e
outra e, depois de sair do campo, desce rapidamente por uns caminhos
escarpados, indo para o Getsêmani, o atravessa e sai dele deixando para trás
a pequena ponte sobre o Cedron, que é como uma fita de prata que canta
para a lua, e chega à porta guardada pelos legionários. Talvez seja uma
medida de precaução tomada pelo Procônsul, essa escolta noturna diante
das portas fechadas. Os soldados, que são quatro, estão conversando
sentados sobre grandes pedras que estão servindo de cadeiras, encostadas ao
muro forte, e se aquecem ao lado de um pequeno fogo de estrepes secos que
projetam uma luz avermelhada sobre as couraças brilhantes e sobre os
capacetes severos, sob os quais emergem uns rostos tão diferentes, em sua
fisionomia itálica tão diferente da dos hebreus.
– Quem vem lá? –diz o primeiro que vê aparecer a alta figura de Jesus
por detrás da esquina de um casebre que está perto da porta, e o soldado
sobraça a hasta que termina em uma lança pontiaguda.
Ele estava apoiado no muro, perto dali, e se põe na posição
regulamentar sendo imitado pelos outros. E sem dar tempo a Jesus de
responder, ele lhe diz:
– Agora não se entra. Não sabes que na segunda vigília termina a
entrada?
– Eu sou Jesus de Nazaré. Estou com minha Mãe na cidade. E estou
indo a Ela.
– Oh! É o homem que ressuscitou o morto em Betânia! Por Júpiter!
Finalmente, eu o irei ver.
E vai para perto de Jesus olhando para Ele com curiosidade, e andando
ao redor dele para certificar-se de que não é alguma coisa irreal, estranha,
mas um homem mesmo, como os outros. E ele diz:
– Oh! Numes! Ele é belo como Apolo, mas em tudo mais é como nós.
E não traz nem bastão nem chapéu, e nenhum sinal do seu poder.
Ele está perplexo. Jesus olha para ele pacientemente. Sorrindo-lhe com
doçura. Os outros, que são menos curiosos — talvez já tenham visto Jesus
em outras ocasiões — dizem:
– Teria sido bom que Ele tivesse estado aqui na metade da primeira
vigília, quando foi levada para o sepulcro a bela menina que morreu esta
manhã. Nós o teríamos visto ressuscitá-la…
Jesus docemente repete:
– Posso ir até minha Mãe?
Os quatro soldados voltam a si. O mais velho deles fala:
– Na verdade a ordem seria de não deixar passar. Mas Tu passarias do
mesmo modo. Aquele que força até as portas do Hades pode muito bem
forçar as portas de uma cidade fechada. Além disso, Tu não és homem
suscitador de sublevações. Portanto, para Ti a proibição não vale. Toma
cuidado para não seres visto pelas rondas do lado de dentro. Abre, Marcos
Grato. E Tu, passa sem fazer barulho. Nós somos soldados e temos que
obedecer…
– Não temais. A vossa bondade não merecerá castigo para vós.
Um legionário abre com cuidado uma passagem que há no enorme
portão, e diz:
– Passa depressa. Daqui a pouco termina a vigília e nós vamos ser
substituídos pelos que devem vir depois de nós.
– A paz esteja convosco.
– Mas nós somos homens de guerra…
– Até na guerra a paz que Eu dou permanece, porque é a paz da alma.
E Jesus mergulha na escuridão do buraco que se abriu através dos
muros. Ele passa silencioso pela frente do corpo de guarda e o buraco
aberto deixa sair a luz trêmula de uma candeia de azeite. É uma lâmpada
comum, suspensa do forro por um gancho, e com a luz dela podem ver-se
os corpos dos soldados que estão dormindo sobre umas esteiras no chão,
todos enrolados em seus mantos e com as armas aos seus lados.
592.2Jesus já está na cidade… e eu o perdi de vista, enquanto fiquei
observando dois daqueles soldados que estão entrando e que observam se
Ele se afastou, antes de entrar e despertar os que estão dormindo, pois é a
troca do turno.
– Não o estamos vendo mais… Que terá Ele querido dizer com aquelas
palavras? Eu gostaria de sabê-lo –diz o mais novo.
– Tu devias ter-lhe feito a pergunta. Ele não nos despreza. É o único
hebreu que não nos despreza, que não nos maltrata de modo algum –
responde o outro que já tem mais idade.
– Não tive coragem. Logo eu, um camponês de Benevento, ir falar a
alguém que dizem ser Deus?
– Um Deus montado num jumento? Ah! Ah! Se Ele fosse um bêbado
como Baco, poderia ser. Mas bêbado Ele não é. Creio que Ele não bebe.
Não vedes como é pálido e magro?
– Contudo os hebreus…
– Eles, sim, que bebem, ainda que não mostrem que o fazem! E
bêbados, por terem tomado dos fortes vinhos destas terras e de sua sícera,
chegaram a ver um deus em um homem. Podes crer em mim. Os deuses são
invenções. O Olimpo está vazio deles e a terra não os tem.
– Se eles te ouvissem!…
– Serás ainda tão criança, que não possas ser um candidato e não saibas
ainda que o próprio César não crê nos deuses, e que neles também não
creem os pontífices, nem os áugures, nem os adivinhos, nem os sacerdotes,
nem as vestais, nem ninguém?
– E, então, por que…
– Por que os ritos? Porque agradam ao povo e são úteis aos sacerdotes e
servem a César, para que ele se faça obedecer como se fosse um deus,
levado pela mão dos deuses do Olimpo. Mas os primeiros a não crerem são
justamente aqueles que nós veneramos como ministros dos deuses. Eu sou
pirrônico. Já percorri todo o Orbe. Já fiz muitas experiências. Os meus
cabelos já estão ficando brancos nas sobrancelhas e meu pensamento já
amadureceu. Tenho como um código pessoal estas três sentenças: amar
Roma, única deusa e única certeza, amá-la até o sacrifício da própria vida.
Não acreditar em nada, pois tudo aquilo que nos circunda é ilusão, com
exceção da Pátria sagrada e imortal. Até de nós devemos duvidar, porque é
incerto até se nós estamos vivos. Os sentidos e a razão não bastam para darnos a certeza de chegarmos a conhecer a Verdade, e viver e morrer têm o
mesmo valor, porque não sabemos o que é viver e não sabemos o que é
morrer –diz ele, afetando ter um ceticismo filosófico de uma criatura
superior…
O outro o fica olhando, na incerteza. Depois diz:
– Pois eu, ao contrário, creio. E gostaria de saber… Saber por meio
daquele homem que passou por aqui há pouco. Ele certamente sabe a
Verdade. Há uma coisa estranha que sai dele. É como uma luz que entra
dentro da gente!
– Esculápio te salve! Tu estás doente! Há pouco subiste do vale para a
cidade. E as febres aparecem facilmente nos que fazem esta viagem sem se
terem ainda aclimatado com esta região. Tu estás delirando. Vem cá. Não há
nada como vinho quente com aromas para fazer que saia de nós, com o
suor, o veneno da febre do Jordão…
E o manda para o corpo da guarda. Mas o outro se livra dele, dizendo:
– Eu não estou doente. Não quero vinho quente drogado. Eu quero
velar lá fora dos muros –(e mostra o lado interno do bastião)– e ficar
esperando o homem que se chama Jesus.
– Se ficar esperando não te desagrada… Eu vou despertar aqueles para
a substituição. Adeus!…
Ele entra, fazendo muito barulho, no corpo da guarda, despertando os
companheiros e gritando:
– Já chegou a hora. Vamos, ó grandes preguiçosos. Já estou cansado!…
Boceja rumorosamente e pragueja porque deixaram que o fogo
apagasse, e porque beberam todo o vinho quente, “tão necessário para
enxugar o orvalho da Palestina…”
O outro, o jovem legionário, encostado a uma muralha que a lua toca
com sua luz do poente, espera que Jesus volte do lugar aonde foi. E as
estrelas velam pela esperança dele…
592.3Enquanto isso, Jesus já chegou à casa de Lázaro sobre a colina de
Sião e está batendo à porta.
Levi a abre:
– És tu, Mestre? As patroas estão dormindo. Por que não mandaste um
servo, se precisavas de alguma coisa?
– Não o teriam deixado passar.
– Ah! É verdade. Mas como foi que Tu passaste?
– Eu sou Jesus de Nazaré. E os legionários me deixaram passar. Mas
não o contes a ninguém, Levi.
– Não contarei… Eles são melhores do que muitos de nós!
– Leva-me onde minha Mãe está passando a noite, mas não despertes
nenhum outro da casa!
– Como Tu quiseres, Senhor. A ordem de Lázaro a todos os seus
auxiliares em casa é a de obedecer-te em tudo, sem discussão e demora. Foi
pouco depois da aurora que um servo chegou trazendo esta ordem, e muitos
outros servos a foram levar a todas as casas. Obedecer e calar-se. E nós o
faremos. Tu nos deste de novo o patrão…
O homem vai troteando na frente pelos corredores vastos como galerias
do esplêndido palácio de Lázaro sobre a colina de Sião. E a luz que ele leva
nas mãos ilumina de modo fantástico os móveis e tapeçarias que
ornamentam largos corredores. O homem para diante de uma porta fechada:
– Ali está a tua Mãe.
– Podes ir.
– E a lâmpada? Não a queres? Eu posso voltar no escuro. Conheço bem
a casa. Nasci aqui.
– Então, deixa-a. E não tires a chave da porta. Eu saio logo.
– Tu sabes onde encontrar-me. Eu fecharei por precaução. Mas estarei
pronto para ir abrir-te a porta quando vieres.
592.4Jesus fica sozinho. Ele bate levemente, uma batida tão leve que
somente alguém que esteja bem acordado pode ouvir. Há um rumor dentro
do quarto, como o de uma cadeira que é mudada de lugar e um ligeiro
rumor de passos, e uma voz que fala baixo:
– Quem bate?
– Eu, minha Mãe. Abre para Mim.
A porta é aberta logo. A luz da lua é a única luz que ilumina o quarto
silencioso e estende seus raios sobre o leito, que esta noite ainda não foi
usado. Uma cadeira está perto da janela, que está toda aberta sobre o
mistério da noite.
– Ainda não estavas dormindo? Já é tarde!
– Eu estava rezando… Vem, meu Filho. Senta-te aqui onde eu estava –e
mostra-lhe a cadeira perto da janela.
– Eu não posso parar aqui. Eu vim te buscar para irmos à casa da Elisa
em Ofel. Anália morreu. Não o sabíeis ainda?
– Não. Ninguém… Quando foi, Jesus?
– Depois da minha passagem.
– Depois da tua passagem[110]! Então, foste para ela o Anjo libertador?!
Para ela esta Terra era como uma prisão! Feliz dela! Eu quereria estar no
lugar dela! Morreu… de morte natural? Quero dizer: não foi por alguma
desventura?
– Morreu de alegria, por amor. Ela ficou sabendo que Eu já estava na
saída do Templo. Vem comigo, minha Mãe. Nós não tememos profanar-nos
por consolarmos uma mãe que teve em seus braços a filha que morreu de
uma alegria sobrenatural… A nossa primeira virgem! Aquela que foi a
Nazaré[111], foi a ti para encontrar-me e pedir-me essa alegria… Dias
longínquos e serenos.
– Anteontem ela cantava como um toutinegra apaixonada, e me beijava,
dizendo: “Eu sou feliz!”, e estava ansiosa por ouvir tudo de Ti. Como foi
que Deus te formou. Como foi que Ele me escolheu. E minhas primeiras
palpitações de virgem consagrada… Agora eu compreendo… 592.5Estou
pronta, meu Filho.
Maria, enquanto estava falando, foi recolhendo suas tranças, que
estavam caídas pelas costas e que a faziam ficar parecendo uma menina;
pôs o véu e o manto.
Eles saem fazendo o menor barulho possível. Levi já está perto do
portão. E ele explica:
– Eu achei melhor fazer assim… Por minha mulher… As mulheres são
curiosas. Ela me teria feito mil perguntas… Assim é melhor…
Ele abre, depois começa a fechar.
Jesus diz:
– Ainda esta noite Eu trarei de volta minha Mãe.
– E eu ficarei velando aqui perto. Não tenhas medo.
– A paz esteja contigo.
Eles vão pelas estradas silenciosas, que estão vazias, e das quais a lua
vai-se retirando lentamente, pois por enquanto ela parece estar parada lá,
por cima das casas altas da colina de Sião. O mais iluminado é o bairro de
Ofel, com suas casinhas mais humildes e mais baixas.
592.6Aquela é a casa de Anália. Está fechada, escura e silenciosa. Umas
flores já murchas estão sobre os degraus da porta. Talvez sejam aquelas
jogadas pela virgem antes de morrer. Ou então, as que caíram do seu leito
fúnebre…
Jesus bate na porta. Bate de novo.
Ouve-se o rumor de uma janela lá no alto. E uma voz pergunta:
– Quem bate?
– Maria e Jesus de Nazaré –responde Maria.
– Oh! Já vou!…
Uma breve espera e depois se ouve o barulho dos ferrolhos
funcionando. A porta se abre e mostra o rosto desfeito de Elisa, que com
dificuldade consegue manter-se à porta. E quando Maria, na entrada, lhe
abre os braços, deixa-se cair neles com os soluços de quem já chorou tanto
e que nem tem mais voz para falar. Jesus fecha a porta e fica esperando com
paciência que sua Mãe acalme aquela ânsia.
Perto da porta há um quarto. Entram nele e Jesus vai levando a lâmpada
que Elisa havia posto no chão antes de abrir a porta. O pranto da mãe
parece que não vai ter fim. Ela fala, por entre os soluços roucos, a Maria. A
mãe fala à Mãe. Jesus, em pé junto à parede, está calado.
592.7Elisa não é capaz de achar motivo para aquela morte e daquele
modo… E em seu sofrimento faz cair a culpa dela em Samuel, o noivo que
a enganou:
– Ele lhe partiu o coração, aquele maldito! E ela não dizia nada. Mas
com certeza sofria, quem sabe quanto! E na alegria, no grito, seu coração se
partiu. Que ele seja maldito para sempre.
– Não, querida. Não. Não maldigas. Não é assim. Deus a amou tanto
que a quis ver em paz. Mas mesmo que ela tivesse morrido por causa de
Samuel — não o foi, mas suponhamos isso por um momento — pensa bem
que morte alegre ela teve, e que a má ação lhe causou uma morte feliz.
– Eu não a tenho mais! Ela morreu! Ela morreu! Tu não sabes o que é
perder uma filha! Eu já provei esta dor por duas vezes. Porque eu já a
chorava como morta quando o teu Filho a curou. Mas agora… Ele não
voltou! Não teve piedade!… E eu a perdi! Já está no túmulo a minha filha!
Sabes o que vem a ser ficar vendo assim um filho agonizar? Saber que ele
vai morrer? Depois vê-lo morto, quando se esperava que ele ficasse são e
forte? Tu não sabes. Nem podes falar… Ela era bela como uma rosa que se
estava abrindo aos primeiros raios do sol, enquanto se arrumava esta
manhã. Ela tinha querido ornar-se com a veste que eu lhe havia feito para as
núpcias. Ela também queria ornar-se como esposa. Depois preferiu desfazer
a grinalda já feita e despetalar as flores para jogá-las em teu Filho, e estava
cantando! Cantando! Sua voz enchia a casa. Estava linda como a primavera.
A alegria tornava seus olhos brilhantes como estrelas e purpúreos como a
polpa da romã, os lábios abertos sobre a brancura dos dentes, e tinha as
faces rosadas e frescas como as rosas novas que o orvalho vem ornar. E
tornou-se branca como o lírio que acabou de abrir-se. E se agarrou ao meu
peito como um caule despedaçado… E não disse mais nem uma palavra!
Não deu mais nem um suspiro! Não tinha mais cor. Nenhum olhar. Plácida,
bela como um anjo de Deus, mas já sem vida. 592.8Tu não sabes, tu que te
alegras com os triunfos do teu Filho e sabes que Ele está são e forte, não
sabes o que é a minha dor! Por que Ele não retornou? Em quê ela lhe havia
desagradado, e eu com ela, para não ter piedade da minha oração?
– Elisa! Elisa! Não fales assim… Tua dor te faz cega e surda… Elisa, tu
não sabes qual é o meu sofrimento. E não sabes que mais profundo se
tornará o meu sofrimento. Tu a viste plácida e bela, quando ela enrijeceu em
paz. E entre os teus braços. Eu… Eu venho contemplando a minha Criatura
há mais de seis lustros, e acima das carnes limpas e puras, que eu
contemplo e acaricio, vejo as chagas do Homem das dores, que vai tornar-se
o meu Filho. Sabes, tu que dizes que eu não sei o que é ver meu Filho ir
duas vezes para a morte e na segunda ficar em paz, será que sabes o que é
para uma mãe ter diante dos olhos uma visão assim por tantos anos? O meu
Filho! Ei-lo aqui. Já está vestido de vermelho como se tivesse saído de um
banho de sangue. Já está perto, é daqui a pouco. Ainda não terá escurecido
o rosto de tua filha no sepulcro e eu já o estarei vendo vestido com a
púrpura de seu sangue inocente. Daquele sangue que eu lhe dei. E se tu
tomaste sobre o coração a tua filha, então sabes qual será a minha dor ao
ver morrer o meu Filho como um malfeitor sobre o lenho da cruz? Olha
para Ele! É o Salvador de todos. No espírito e na carne. Porque a carne dos
salvados por Ele será incorruptível e feliz em seu Reino. E olha para mim!
Olha para esta Mãe que a cada hora o acompanha e conduz — oh! Eu não o
deteria em nenhum passo! — o próprio Filho ao Sacrifício! Eu te posso
compreender, pobre mãe. Mas tu, compreendas o meu coração! Não odeies
o meu Filho. Anália não teria suportado ver a agonia do seu Senhor. E seu
Senhor a fez feliz em uma hora de gozo intenso.
592.9Elisa parou de chorar ao ouvir esta revelação. Ela olha para Maria,
que está com o seu rosto de mártir lavado por lágrimas silenciosas, olha
para Jesus, que está olhando para ela com piedade… e, gemendo, se joga
aos pés de Cristo, dizendo:
– Mas minha filha morreu! Ela morreu, Senhor! Como um lírio, um
lírio despedaçado. Disseram os poetas[112] que Tu és Aquele que se
compraz por estar entre lírios. Oh! Na verdade, Tu, nascido do lírio que é
Maria, desces frequentemente aos canteiros floridos e das rosas purpúreas
fazes cândidos lírios, e os colhes, tirando-os do mundo. Por quê? Por quê,
Senhor? Não é justo que uma mãe goze da rosa que dela nasceu? Por que
matar o que era purpúreo no frio candor da morte do lírio?
– Os lírios! Eles serão o símbolo daqueles que me haverão de amar
como minha Mãe amou a Deus. É o cândido canteiro do Rei Divino.
– Mas nós mães choraremos. Nós mães temos direitos sobre os nossos
filhos. Por que tirá-los da vida?
– Não é isso que Eu quero dizer, mulher. Ainda ficarão as filhas,
consagradas ao Rei, como as virgens nos palácios de Salomão. Lembra-te
do Cântico… E como esposas, serão as bem-amadas na terra e no Céu.
– Mas a minha filha morreu. Morreu!
E recomeça um choro dilacerante.
– Eu sou a ressurreição e a Vida. Quem crê em Mim, ainda que morra,
viverá. Em Verdade Eu te digo que não morrerá para sempre. A tua filha
está viva. Vive para sempre porque acreditou na Vida. Ela conheceu a
alegria de viver em Mim antes de conhecer a dor de ver-me sendo
arrebatado da vida. A tua dor te faz ficar cega e surda. Bem que minha Mãe
o diz. Mas brevemente tu dirás aquilo que te mandei dizer esta manhã:
“Realmente a sua morte foi uma graça de Deus.” Acredita, mulher. Este
lugar aguarda o horror. E chegará o dia em que as mães atingidas como
você dirão: “Louvor a Deus que poupou estes dias aos nossos filhos.” E as
mães que não foram feridas, gritarão ao Céu: “Por que, ó Deus, por que não
mataste os nossos filhos antes desta hora?” Acredita nisso, mulher. Acredita
nas minhas palavras. Não levantes entre ti e Anália uma verdadeira clausura
que as pode separar: a diferença na fé. Estás vendo? Eu podia não ter vindo.
Tu sabes quanto Eu sou odiado. Que não te iluda o triunfo de uma hora!…
Cada canto pode estar escondendo uma cilada para Mim. Eu vim sozinho,
de noite, para consolar-te e dizer-te estas palavras. Eu me compadeço da dor
de uma mãe. Mas pela paz de tua alma Eu venho dizer-te estas palavras:
Fica em paz! Em paz!
– Dá-me essa paz, Senhor! Eu não posso. Não posso, neste sofrimento,
dar-me paz. Mas Tu, que dás a vida aos mortos e a saúde aos que estão
morrendo, dá a paz ao coração dilacerado de uma mãe.
– Assim seja, mulher. Que tenhas a paz.
Ele lhe impõe as mãos, abençoando-a e orando em silêncio sobre ela.
Maria, por sua vez, ajoelhou-se perto de Elisa rodeando-a com o seu braço.
592.10– Adeus, Elisa. Eu já me vou…
– Não nos veremos mais, Senhor? Eu não sairei de casa por muitos
dias, e Tu irás embora depois das festas pascais. Tu… és ainda um pouco da
minha filha… porque Anália… porque Anália vivia em Ti e por Ti.
Ela chora. Já está mais calma. Mas como chora!
Jesus olha para ela. E a acaricia sobre a cabeça encanecida. E lhe diz:
– Tu me verás ainda.
– Quando?
– Daqui a oito noites, a começar por esta.
– E me confortarás ainda? E me abençoarás e me darás forças?
– O meu coração te abençoará com a plenitude do meu amor para com
aqueles que me amam. Vamos, minha Mãe.
– Meu Filho, se Tu me permites, eu gostaria de ficar ainda com esta
mãe. A dor é um vagalhão que volta, depois de ter-se afastado Aquele que
dá paz… Eu estarei de volta à hora de prima. Não tenho medo de andar
sozinha. Tu sabes disso, e sabes que eu passaria por todo um exército
inimigo contanto que pudesse dar consolo a algum meu irmão da parte de
Deus.
– Seja como quiseres. Eu me vou. Deus esteja convosco.
Jesus sai sem fazer barulho, fechando atrás de si a porta do quarto e a
da casa.
592.11Ele volta para perto dos muros, dirige-se para a Porta de Efraim,
também chamada Estercorária ou do Estrume, pois muitas vezes eu ouvi
chamar estas duas portas, próximas uma da outra, por esses três nomes,
talvez porque uma delas se abre para a estrada de Jericó, que está no fundo,
e a outra, porque está perto do vale de Hinon, onde são queimadas as
imundícies da cidade, e são tão parecidas que eu as confundo.
O céu começa a embranquecer do lado do oriente, mesmo estando
ainda cheio de estrelas. As estradas continuam envolvidas em uma
penumbra, mais incômoda do que a escuridão da noite, que a lua temperava
com a sua brancura.
Mas o soldado romano tem bons olhos e, tendo visto Jesus que se
aproxima da porta, vai ao encontro dele.
– Salve! Eu fiquei te esperando.
E ele para, hesitante.
– Fala sem medo. Que queres de Mim?
– Quero saber. Tu disseste: “A paz que Eu dou permanece até na
guerra, porque é a paz da alma.” Eu gostaria de saber que paz é essa e o que
é que vem a ser a alma. Como pode o homem que está na guerra estar em
paz? Quando se abre o templo de Jano, fecha-se o da Paz. Não podem as
duas coisas estar no mundo ao mesmo tempo.
Ele está falando encostado no murinho esverdeado de uma pequena
horta, em uma ruazinha estreita como uma trilha entre os campos, entre
casas pobres, umidade, ar tétrico, sombrio. Fora o leve brilho que se nota no
capacete brunido do soldado, não se enxerga nada dos dois que estão
falando. A sombra apaga os rostos e os corpos, reduzindo tudo a uma
completa escuridão.
A voz de Jesus ressoa clara e luminosa, pela alegria que Ele tem por
lançar uma semente de luz na mente do pagão:
– No mundo, em verdade, não pode haver paz e guerra ao mesmo
tempo. Porque uma exclui a outra. Mas no homem de guerra pode haver
paz, mesmo quando ele combate na guerra para a qual foi mandado. Pode
ser a minha paz. Porque a minha paz vem do Céu, e o fragor da guerra não a
lesa, nem a ferocidade das matanças. Ela, como uma coisa divina, invade
outra coisa divina que o homem tem em si, e que é chamada alma.
– Coisa divina? Em mim? Divino é César. Eu sou um filho de
camponeses. Agora eu sou um legionário, sem nenhum grau. Se eu for um
destemido poderei talvez chegar a ser um centurião. Mas divino, não.
– Há uma parte em ti que é divina. É a alma. Ela vem de Deus. Do
verdadeiro Deus. Por isso ela é divina, uma pedra preciosa viva no homem
e é de coisas divinas que ela se alimenta: a fé, a paz, a verdade. A guerra
não a perturba. A perseguição não a lesa. A morte não a mata. Só o mal,
fazer aquilo que é mal é o que a fere ou mata, e até a priva da paz que Eu
dou. Porque o mal separa o homem de Deus.
592.12– E que é o mal?
– Estar no paganismo e adorar os ídolos, quando a bondade do
verdadeiro Deus permitiu conhecer que existe o verdadeiro Deus. Não amar
o pai, a mãe, os irmãos e o próximo. Roubar, matar, ser rebeldes, viver na
luxúria, ser falsos. Isto é o mal.
– Ah! Então, eu não posso ter a tua paz! Como soldado e comandado,
eu sou obrigado a matar. Então, para nós não há salvação?
– Procura ser justo na guerra como na paz. Cumpre o teu dever sem
ferocidade e sem avidez. Enquanto combates e conquistas, pensa que o
inimigo é semelhante a ti e que todas as cidades têm mães e meninas como
a tua mãe e as tuas irmãs, e procura ser corajoso sem seres um bruto.
Assim, não sairás da justiça e da paz, e a minha paz ficará em ti.
– E depois?
– E depois? Que queres dizer?
– Depois da morte. Que acontece com o bem que eu tiver feito e com a
alma que Tu dizes que não morre, se não se fizer o mal?
– Ela vive. Vive adornada com o bem que tiver feito, em uma paz cheia
de alegria, maior do que aquela que se goza na Terra!
– Então na Palestina só existe um homem que fez o bem! Agora
compreendi!
– E quem é ele?
– Lázaro de Betânia. A alma dele não morreu!
– Na verdade, ele é justo. Mas muitos são iguais a ele e morrem sem
ressuscitarem, mas a alma deles vive no Deus verdadeiro. Porque a alma
tem uma outra morada, no Reino de Deus. E quem crer em Mim entrará
naquele Reino.
– Até eu, que sou romano?
– Também tu, se creres na verdade.
– Que é a Verdade?
– Eu sou a Verdade, e o Caminho para ir à Verdade, e sou a Vida e dou
a Vida, porque quem acolhe a Verdade, acolhe a Vida.
592.13O jovem soldado fica pensando… e se cala… Depois, ele levanta o
rosto. Um rosto ainda puro de jovem, e tem um sorriso puro e sereno. E diz:
– Eu procurarei lembrar-me disso e aprender mais ainda. Isto me
agrada…
– Como te chamas?
– Vital. Sou de Benevento. Dos campos da cidade.
– Eu me lembrarei do teu nome. Faze que o teu espírito seja
verdadeiramente vital, nutrindo-o com a Verdade. A porta já está sendo
aberta. Vou sair da cidade.
– Ave!
Jesus vai logo para a porta e se apressa pelo caminho que vai para o
Cedron e o Getsêmani, e de lá para o campo dos Galileus.
592.14Por entre as oliveiras do monte, vem chegando Judas Iscariotes, que
vem subindo, também ele, para o campo, onde já estão despertando. Judas
leva quase um susto ao achar-se diante de Jesus. Jesus olha fixamente nele,
sem nada dizer.
– Eu fui levar alimento para os leprosos. Mas… encontrei só dois em
Hinon e cinco em Siloan. Os outros ficaram curados. Ainda estão lá, mas
curados; por isso me pediram que avisasse o sacerdote. Eu havia descido ao
alvorecer do dia para ficar livre depois. A coisa vai dar o que falar. Um
número tão grande de leprosos curados ao mesmo tempo, depois que tu os
abençoaste na presença de tanta gente!
Jesus não fala. Ele o deixa falar… Jesus não lhe diz: “Fizeste bem”,
nem nenhum outra palavra que se refira à ação de Judas, nem ao milagre,
mas, parando de repente, e olhando fixamente para o apóstolo, lhe pergunta:
– E então? Que mudança houve ao ter te deixado em liberdade e com o
dinheiro?
– Que queres dizer?
– O seguinte: Eu te pergunto se ficaste santificado depois que Eu te dei
liberdade e dinheiro… Ah! Judas! Lembra-te disso! Lembra-te sempre: tu
foste aquele que Eu amei mais do que qualquer outro, recebendo de ti
menos amor do que o que Eu recebi de todos os outros. O que Eu recebi de
ti foi um ódio maior, porque é ódio de alguém que tratei como amigo, ódio
mais feroz do que o ódio do fariseu mais feroz. E lembra-te também disto:
de que Eu nem agora te odeio, mas, no tanto que toca ao Filho do homem,
Eu te perdoo. Agora, vai. Não há mais nada a dizer entre Mim e ti. Tudo já
está feito…
Judas quereria dizer alguma coisa, mas Jesus, com um gesto decisório,
lhe faz sinal para que vá para frente… E Judas, inclinando a cabeça como
um vencido, vai para frente…
592.15No limite do Campo dos Galileus, os apóstolos e os dois servos de
Lázaro já estão prontos.
– Onde estiveste, Mestre? E tu, Judas? Vós estáveis juntos?
Jesus, antes que Judas respondesse, diz:
– Eu tinha algo a dizer a uns corações. Judas foi aos leprosos… Mas
foram curados todos, menos sete.
– Oh! Por que foste? Eu queria ir também –diz Zelotes.
– Para ficar livre agora e poder vir conosco. Vamos. Entraremos na
cidade pela Porta do Rebanho. Vamos logo –diz ainda Jesus.
592.16Põe-se a caminho por primeiro, passando pelos olivais que se
acham à beira da estrada pelo campo, a quase meio caminho entre Betânia e
Jerusalém, pela pequena ponte que atravessa o Cedron, perto de Porta do
Rebanho.
Há algumas casas de camponeses espalhadas pelas ladeiras, e, lá
embaixo, perto das águas da torrente, está uma figueira toda cheia de folhas,
inclinada por cima do rio. Jesus se dirige a ela e procura ver se por entre as
folhas largas e grossas não haverá algum figo maduro. Mas a figueira só
tem folhas, muitas, mas inúteis, e não tem nenhum fruto nos ramos, e lhe
diz:
– Tu és como muitos corações em Israel. Não tens doçuras para o Filho
do homem nem piedade. Que de ti não nasça mais nenhum figo e ninguém
de ti coma no futuro.
Os apóstolos olham um para o outro. A ira de Jesus contra a planta
estéril, talvez até uma planta selvagem, os espanta. Mas eles não dizem
nada. Somente mais tarde, depois de terem atravessado o Cedron, é que
Pedro lhe pergunta:
– Onde foi que comeste?
– Em lugar nenhum.
– Oh! Então estás com fome. Lá vem um pastor com uma cabra
pastando. Eu vou até lá e pedirei leite para Ti. Eu volto logo.
E ele vai com grandes passos e volta, tomando cuidado com uma velha
tigela cheia de leite.
Jesus bebe e, com uma carícia, entrega a tigela ao pastorzinho, que veio
de lá acompanhando Pedro…
592.17Entram na cidade e sobem ao Templo e, tendo adorado o Senhor,
Jesus volta para o pátio onde os rabis estão dando suas lições.
As pessoas se aglomeram ao redor dele e uma mãe que veio de Cintium
lhe apresenta o seu filho, que uma doença fez ficar cego, como me parece.
Ele tem os olhos brancos como quem tem uma grande catarata sobre a
pupila, ou uma albugem. Jesus o cura, tocando-lhe de leve as órbitas com os
seus dedos. E, logo em seguida, começa a falar:
– Um homem comprou um terreno e plantou nele um vinhedo,
construiu uma casa para os colonos, uma torre para os vigias, adegas e
lagares onde prensar as uvas, e o entregou a alguns colonos nos quais ele
tinha confiança. Depois, viajou para longe. Quando chegou o tempo em que
os vinhedos já podiam estar dando frutos, tendo as videiras já crescido, o
dono da vinha mandou os seus servos aos colonos a fim de receberem os
lucros da colheita. Mas os colonos cercaram aqueles servos e uma parte
deles foi recebida com pauladas, outros foram feridos com pedradas que os
machucaram muito e outros foram mortos. Os que ainda puderam voltar
vivos à casa do patrão lhe contaram o que havia sucedido. O patrão fez
neles os curativos e os consolou. E depois mandou outros servos, em
número bem maior. E os colonos trataram a estes como haviam tratado aos
primeiros. Então, o dono da vinha disse: “Mandar-lhes-ei o meu filho.
Certamente eles haverão de honrar ao meu herdeiro.” Mas os colonos, ao
vê-lo, e tendo ficado sabendo que ele era o herdeiro, combinaram entre si
uns com os outros, dizendo: “Vinde. Reunamo-nos, e seremos muitos.
Vamos arrastá-lo lá para fora, para um lugar afastado, e o matemos. E a
herança dele ficará para nós.” E, recebendo-o com uma delicadeza fingida,
o rodearam como se fosse para festejá-lo, e, depois de o beijarem, o
amarraram e lhe deram uma forte surra, levando-o depois, no meio de mil
motejos, ao lugar do suplício, e lá o mataram. Agora, dizei-me vós. Aquele
pai e patrão que um dia percebe que seu filho não voltou, e descobre que
aqueles seus servos-colonos, aqueles aos quais ele havia dado uma terra
fértil para que a cultivassem em seu nome, recebendo por isso o tanto que
fosse justo e dando o tanto que era justo ao seu patrão, descobre que eles é
que foram os assassinos de seu filhos, que é que fará?
E Jesus dardeja suas íris de safira, acesas como um sol, sobre os que
haviam chegado, mas especialmente sobre os grupos dos judeus mais
influentes, os fariseus e os escribas espalhados pelo meio da multidão.
Ninguém diz nada.
– Falai, vós, então. Pelo menos vós, que sois os rabis de Israel. Dizei
uma palavra de justiça, que prepare o povo para a justiça. Eu poderia dizer
uma palavra não boa, de acordo com o vosso pensamento. Dizei-a, então,
vós, para que o povo não seja levado ao erro.
Constrangidos, os escribas respondem assim:
– Ele punirá aqueles celerados, fazendo-os perecer de um modo atroz, e
dará a vinha a outros colonos que honestamente a cultivem, dando-lhe o
produto da terra recebida por eles em consignação.
– Vós falastes bem. Assim está escrito[113] na Sagrada Escritura: “A
pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular. Esta é a obra
feita pelo Senhor, e é uma coisa maravilhosa aos nossos olhos.” Porque
assim está escrito, e vós sabeis disso e julgais justo que sejam punidos
atrozmente aqueles colonos que mataram o filho herdeiro do dono da vinha
e que ela seja consignada a outros colonos que a cultivem honestamente. É
por isso que Eu vos digo: “Ser-vos-á tirado o Reino de Deus e será dado a
outros que nele produzam frutos. E quem cair contra[114] esta pedra se
esfacelará, e aquele sobre quem a pedra cair, será esmagado.”
592.18Os chefes dos sacerdotes, os fariseus e os escribas, com um ato
verdadeiramente… heroico, não reagem. A que ponto chega o desejo de
atingir um objetivo! Por muito menos, em outras ocasiões, opuseram-se a
Ele. E hoje, que o Senhor Jesus lhes diz abertamente que lhes vai ser tirado
o poder, eles não disparam impropérios contra Ele, não cometem atos
violentos, não ameaçam, como falsos cordeirinhos pacientes que, por baixo
de uma veste fingida de mansidão, estão escondendo um imutável coração
de lobo.
Eles se limitam a aproximar-se dele, que agora recomeçou a caminhar
para frente e para trás, indo e voltando, escutando isto ou aquilo dos muitos
peregrinos que se dirigiram para o amplo pátio, e dentre os quais muitos lhe
pedem algum conselho para casos de consciência, ou para circunstâncias
familiares ou sociais, esperando também poder dizer-lhe alguma coisa
depois de o terem ouvido fazendo julgamento sobre algum caso complicado
de herança, que produziu divisão e rancor entre os diversos herdeiros. Isto
por causa de um dos filhos do pai que o teve com uma das servas da casa,
mas que foi adotado, e os filhos legítimos não o querem com eles, nem
como coerdeiro na repartição das casas e dos terrenos, não querendo ter
nada em comum com o bastardo, e não sabem resolver, porque o pai os fez
jurar, antes de sua morte, que, assim como ele tinha feito, ao repartir o pão,
tanto com o ilegítimo como com os legítimos, em medida igual, assim eles
deviam igualmente repartir a herança com ele em medida igual.
Jesus diz àquele que o interroga em nome dos outros três irmãos:
– Sacrificai todos um pedaço de terreno, vendendo-o de tal modo que o
valor do dinheiro atinja um quinto da importância total, e dai ao filho
ilegítimo, dizendo-lhe: “Aqui está a tua parte. Não ficas prejudicado no que
é teu nem se contrariou ao desejo de nosso pai. Vai, e Deus esteja contigo.”
Sejais generosos em dar, até mesmo mais do que o valor estipulado. Fazei
isso com testemunhas que sejam justas, e ninguém poderá na terra, nem
depois desta Terra, levantar vozes de reprovação e de escândalo. E tereis a
paz entre vós e em vós, não tendo o remorso de terdes desobedecido ao
vosso pai, e não tendo entre vós aquele que, mesmo sendo inocente, é para
vós causa de perturbação, ais do que um ladrão que tivesse sido posto entre
vós.
O homem diz:
– O bastardo, em verdade, roubou a paz da nossa família, a saúde de
nossa mãe que morreu de dor, e um lugar que não é dele.
– Mas não é ele o culpado, homem! Mas, sim, o homem que o gerou.
Ele não pediu para nascer e carregar a marca de bastardo. Foi a libidinagem
de vosso pai que o gerou para entregá-lo à dor e fazer-vos sofrer. Sede, pois,
justos para com o inocente, que já está pagando duramente por uma culpa
que não é dele. Nem desejais o mal para o espírito de vosso pai. Deus já o
julgou. Não são necessários os raios de vossas maldições. Honrai a vosso
pai sempre, ainda que ele seja culpado, não por si mesmo, mas porque
representou na terra o vosso Deus, tendo-vos criado por decreto de Deus e
sendo o senhor de vossa casa. Os pais estão imediatamente depois de Deus.
Lembra-te do Decálogo. E não peques. Vai em paz.
592.19Os sacerdotes e escribas se aproximam de Jesus, mas agora para
interrogá-lo:
– Nós te ouvimos. Falaste conforme a justiça. Foi um conselho que,
mais justo, nem Salomão seria capaz de dar. Mas agora, dize a nós, Tu que
operas prodígios e dás sentenças, que só o sábio rei poderia dar, com que
autoridade é que fazes estas coisas? De onde te vem um tal poder?
Jesus olha fixamente para eles. Ele não está nem agressivo nem com ar
de desprezo, mas muito imponente. Ele diz:
– Eu também tenho uma pergunta a fazer-vos e, se me responderdes, Eu
vos direi com que autoridade é que Eu, um homem sem autoridade, sem
encargos e pobre — porque isto é o que quereis dizer — com que
autoridade é que eu faço estas coisas. Pois bem. Dizei-me: o batismo de
João, de onde é que vinha? Era do Céu ou do homem, a autoridade com que
João o ministrava? Respondei-me. Com que autoridade é que João o
administrava como um rito purificador, a fim de preparar-vos para a vinda
do Messias, se João era ainda mais pobre e inculto do que Eu, sem exercer
nenhum cargo, tendo vivido no deserto desde a sua meninice?
Os escribas e os sacerdotes se consultam uns aos outros. Os que
estavam lá presentes se apertam, de olhos atentos e ouvidos bem abertos,
prontos tanto para protestar como para aclamar, se os escribas quiserem
desqualificar o Batista e ofender o Mestre ou se parecem ter ficado
derrotados pela pergunta do Rabi de Nazaré, divinamente sábio. E as
pessoas se comprimem ao redor dele. É impressionante o silêncio absoluto
desta multidão que está à espera da resposta. É tão profundo que se podem
ouvir a respiração e os cochichos dos sacerdotes e escribas, que falam uns
aos outros, quase sem usar de palavras, e estão de olhos no povo. Enquanto
isso, as pessoas do povo, cujos sentimentos eles bem conhecem, estão
prontas para explodir.
E finalmente eles se decidem a responder. Eles se viram para o Cristo,
que está encostado a uma coluna com os braços cruzados sobre o peito, e os
está perscrutando sem perdê-los de vista, e aí eles dizem:
– Mestre, nós não sabemos com que autoridade João fazia aquilo nem
de onde é que vinha o seu batismo. Ninguém pensou em perguntar ao
Batista enquanto ele estava vivo, nem ele espontaneamente o disse.
– Pois nem Eu vos direi com que autoridade faço estas coisas.
E lhes vira as costas, chamando para perto de Si os doze e abrindo ala
por entre a multidão que o aclama, e sai do Templo.
592.20Quando já estão lá fora, e tendo já passado pela Piscina Probática e
saído por aquele lado, Bartolomeu lhe diz:
– Tornaram-se muito prudentes os teus adversários. Talvez eles estejam
convertendo-se ao Senhor que te enviou e reconhecendo-te como o Messias
santo.
– É verdade. Eles não discutiram nem sobre o teu pedido nem sobre a
tua resposta –diz Mateus.
– Assim seja. Seria belo Jerusalém converter-se ao Senhor seu Deus –
diz ainda Bartolomeu.
– Não vos deixeis iludir. Esta porção de Jerusalém não se converterá
nunca. Eles não responderam de outro modo porque têm medo da multidão.
Eu estava lendo os pensamentos deles, mesmo quando Eu ouvia suas
palavras submissas.
– E o que eles estavam dizendo? –pergunta Pedro.
– Diziam isto. Eu desejo que vós o saibais, para conhecê-los a fundo e
possais dar aos vindouros uma exata descrição dos homens do meu tempo.
Eles não me responderam, não por se terem convertido ao Senhor. Mas
porque entre si eles diziam assim: “Se nós respondermos que o batismo de
João vinha do Céu, o Rabi nos responderá: ‘E, então, por que não crestes
naquilo que vinha do Céu e indicava a preparação para o tempo do
Messias?’ E se dissermos que vem dos homens, então será a multidão que
se revoltará, dizendo: ‘E, então, por que é que não crestes naquilo que João,
o nosso profeta, falou sobre Jesus de Nazaré?’ Por isso, é melhor dizermos
que nós não sabemos.” Sobre isso é que eles estavam conversando, não por
sua conversão a Deus, mas por um cálculo infame e para não terem que
confessar, com suas bocas, que Eu sou o Cristo, e faço estas coisas que faço
porque sou o Cordeiro de Deus do qual falou o Precursor. E também Eu não
quis dizer com que autoridade é que faço estas coisas que faço. Já muitas
vezes Eu o disse, dentro daqueles muros e por toda a Palestina, e os meus
prodígios falam ainda mais do que as minhas palavras. Agora não o direi
mais com as minhas palavras. Deixarei que falem os profetas e meu Pai, e
os sinais do Céu. Porque chegou o tempo no todos os sinais serão dados.
Aqueles que foram ditos pelos profetas e assinalados pelos símbolos de
nossa história, e aqueles de que Eu falei: o sinal de Jonas; vós vos lembrais
daquele dia em Quedes[115]? É o sinal que Gamaliel está esperando. Tu,
Estêvão, tu, Hermes, e tu, Barnabé, que deixastes os vossos companheiros,
hoje, para seguir-me, certamente muitas vezes ouvistes o rabi falar daquele
sinal. Pois bem. Logo será dado o sinal.
E Jesus se afasta, subindo para o meio dos olivais do monte,
acompanhado pelos seus e por muitos discípulos (dos setenta e dois), além
de outros, como José Barnabé, que o vem acompanhando para ouvi-lo falar
ainda.
592.21Diz Jesus:
– Aqui colocarás a segunda parte da segunda-feira, isto é, as pregações
feitas aos meus apóstolos (visão de 6-3-45).
[110] passagem se diz em referência a: Êxodo 12,12-13.
[111] foi a Nazaré, em 156.5/6, como a própria Analia recordou em 583.17.
[112] disseram os poetas, talvez se referindo a: Cântico dos cânticos 2,1-2.16; 6,2-3. Um pouco mais abaixo, Jesus faz uma
provável referência a: Cântico dos cânticos 6,8-9; 8,4.
[113] está escrito, em: Salmo 118,22-23.
[114] contra é uma palavra contornada com fortes sinais de lápis vermelho e azul, no manuscrito original. A explicação será feita
em 594.8.
[115] daquele dia em Qedes, em 342.6/7; o sinal que Gamaliel está esperando, prometido em 41.9 e lembrado aqui e em: 85.4 –
114.8/9 – 160.4 – 354.4 – 364.8 – 478.10 – 487.10/11 – 548.14/15 – 549.9 (no qual Gamaliel descreve, no último parágrafo, o
próprio estado de alma) – 560.5 – 570.5 – 602.5.7 – 604.10 – 609.28.30 (onde recita uma linda oração) – 644.5 – 645.5.10 – 647.2/5.

593. Segunda-feira à noite no Getsêmani com os apóstolos.
6 de março de 1945.

593.1Já entardeceu e Jesus ainda está no olival. E está lá com os seus
apóstolos. E continua a falar.
– Mais um dia já passou. Agora vem a noite e depois vem amanhã. Em
seguida vem um outro amanhã e depois a Ceia pascal.
– Onde a faremos, meu Senhor? Neste ano estarão também as
mulheres? –pergunta Filipe.
– Mas nós não tomamos nenhuma providência, e a cidade está cheia
além da medida. Parece que neste ano todos os de Israel, até o prosélito
mais distante, acorrerão, a fim de participarem do rito
–diz Bartolomeu.
Jesus olha para ele e, como se estivesse recitando um salmo, diz[116]:
– Reuni-vos, apressai-vos, acorrei de todos os lugares para a minha
vítima, que Eu imolo por vós, para a grande Vítima imolada sobre os
montes de Israel, a fim de comerdes sua Carne e beberdes o seu Sangue.
593.2– Mas qual é a vítima? Qual é? Tu ficas parecendo alguém que ficou
tomado por uma ideia fixa. Tu só falas de morte… e nos fazes sofrer –diz
Bartolomeu com veemência.
Jesus ainda fica olhando para ele, deixando de olhar para Simão que
está inclinado sobre Tiago de Alfeu e sobre Pedro, confabulando com eles,
e diz:
– Como? Tu ainda me perguntas? Tu não és mais um daqueles
pequeninos que, para serem ensinados, precisam receber a luz septiforme.
Tu já eras bem versado na Escritura antes que Eu te chamasse, por meio de
Filipe, naquela doce manhã de primavera. Da minha primavera. E tu ainda
me perguntas qual é a vítima imolada sobre os montes, à qual todos virão
para se alimentarem? E me chamas de louco com uma ideia fixa, porque Eu
só falo de morte? Oh! Bartolomeu! Como o grito que dão as escoltas, aqui
estou Eu na vossa escuridão, que nunca se abriu à luz, eu lancei uma vez,
duas vezes, três vezes o grito anunciador. Mas vós nunca o quisestes
entender. Vós sofrestes por um momento e depois… Como crianças,
esquecestes logo as palavras sobre morte, voltastes festivos ao vosso
trabalho, certos de vós mesmos e cheios da esperança de que as minhas e as
vossas palavras persuadissem sempre mais o mundo a seguir e amar seu
Redentor.
Não. 539.3Só depois que esta terra tiver pecado contra Mim — e lembraivos que são palavras do Senhor ao seu profeta — só depois é que o povo, e
não somente este, único, mas o grande povo de Adão, começará a gemer:
“Vamos ao Senhor. Ele, que nos feriu, nos curará.” E o mundo dos
redimidos dirá: “Daqui a dois dias, isto é, daqui a dois tempos da
eternidade, durante os quais seremos deixados à mercê do Inimigo, que com
todas as armas nos terá espancado e matado como nós espancamos o Santo
e o matamos — e o espancamos e matamos, porque sempre haverá a raça de
Caim que matará com a blasfêmia e as más obras o Filho de Deus, o
Redentor, disparando flechas mortais não sobre sua eterna e gloriosa
Pessoa, mas sobre as almas deles por Ele resgatadas, matando-as e matando
por isso a Ele, através de suas almas — só depois desses dois tempos é que
virá o terceiro dia, e ressuscitaremos em sua presença já no Reino de Cristo
sobre a terra e viveremos diante Dele no triunfo do espírito. Nós o
conheceremos, aprenderemos a conhecer o Senhor para estarmos prontos a
sustentar, mediante esse conhecimento verdadeiro de Deus, a batalha
extrema em que Lúcifer desafiará o Homem antes que seja dado pelo anjo o
toque da sétima trompa, pela qual se entoará o coro bem-aventurado dos
Santos de Deus, tendo eles atingido o número perfeito para sempre — nem
o menor dos pequeninos, nem o mais velho dos anciãos poderá jamais
aumentar o seu número — o coro cantará: ‘Terminou o pobre reino da terra.
O mundo passou com todos os seus habitantes para a resenha do Juiz
vitorioso. E os eleitos estão agora nas mãos do Senhor nosso e do seu
Cristo, e Ele é o nosso Rei para sempre. Louvor ao Senhor Deus
Onipotente, que era, que é e que será, porque Ele assumiu o seu grande
poder e entrou na posse do seu Reino’.”
Oh! Quem de vós será capaz de lembrar-se das palavras desta profecia
que já ressoava nas palavras de Daniel, ainda com um som velado, mas que
agora vibra intensamente pela voz do Sábio diante de um mundo atônito e
diante de vós, mais atônitos ainda do que o mundo?!
“A vinda do Rei — o mundo continuará gemendo com suas feridas e
fechado no sepulcro, meio vivo e meio morto, fechado pelo seu vício
septiforme e por suas infinitas heresias, o agonizante espírito de um mundo
fechado, fazendo seus últimos esforços dentro do organismo que morreu de
lepra por causa de todos os seus erros — a vinda do Rei está preparada
como a vinda da aurora, e virá a nós como as chuvas da primavera e do
outono.” A aurora é precedida e preparada pela noite. Esta é a noite. Esta de
agora. E que é que devo fazer-te, Efraim? Que devo fazer-te, ó Judá ?…
593.4Simão, Bartolomeu, Judas e primos, vós, mais doutos quanto ao
Livro, reconheceis estas palavras? Não são de nenhum espírito louco, mas
elas provêm de alguém que possui a Sabedoria. Como um rei que abre com
segurança os seus cofres, porque ele sabe onde é que está a pedra preciosa
que procura, pois ele a pôs lá dentro, assim Eu cito os profetas. Eu sou a
palavra. Durante séculos Eu falei através de lábios humanos. E por séculos
Eu falarei através de lábios humanos. Mas tudo o que foi dito de
sobrenatural é palavra minha. O homem, ainda que fosse o mais douto e
santo, não poderia subir, como uma águia com alma, além dos limites deste
mundocego, para colher e dizer os mistérios eternos.
O futuro só é “presente” na Mente Divina. A estultice está naqueles
que, não soerguidos pela nossa Vontade, pretendem fazer profecias e
revelações. Deus logo os desmente e golpeia, porque só Um é que pode
dizer: “Eu sou”, e dizer “Eu vejo”, ou dizer: “Eu sei.” Mas quando uma
Vontade que não se pode medir, que não se pode julgar, que é aceita de
cabeça inclinada por quem diz: “Eis-me aqui”, sem discussão, e diz
também: “Vem, sobe, ouve, vê, repete”, então ela, mergulhada no eterno
presente do seu Deus, a alma chamada pelo Senhor para ser “voz”, vê e
treme, vê e chora, vê e jubila. Então, a alma chamada pelo Senhor para ser
“palavra”, ouve e, chegando ao êxtase ou ao suor agônico, diz as tremendas
palavras do Deus Eterno. Porque cada palavra de Deus é tremenda, por
provir daquele cujo veredito é imutável, cuja Justiça é inexorável; e sendo
dirigida aos homens, dentre os quais muito poucos merecem amor e bênção,
e não serem fulminados e condenados. Pois bem, esta palavra, que é dita e
desprezada, não é a causa de tremenda culpa e punição para aqueles que,
tendo-as ouvido, as rejeitam? Assim é.
593.5E que é que Eu ainda devia fazer-vos, ó Efraim, ó Judá, ó mundo,
que Eu não tenha feito? Eu vim por te amar, ó minha terra, e a minha
palavra foi para ti uma espada que te mata, porque tu a abominaste. Oh!
Mundo que matas o teu Salvador pensando que estás fazendo uma coisa
justa, pois estás satanizado a tal ponto que nem compreendes mais qual é o
sacrifício que Deus exige, sacrifício do próprio pecado e não o de um
animal imolado e consumido com a alma imunda! Ora, afinal, que foi que
eu te disse nestes três anos? Que foi que Eu preguei? Eu disse: “Procurai
conhecer a Deus em suas leis e em sua natureza.” E Eu me esgotei, como
um vaso de argila porosa quando é colocado ao sol, ao espargir sobre vós o
conhecimento vital da Lei e de Deus. E tu continuaste a oferecer
holocaustos, mas sem primeiro fazer a única coisa necessária: a imolação
ao Deus verdadeiro da tua má vontade!
Agora o Deus Eterno te diz, ó cidade do pecado, ó povo infiel — e na
hora do Juízo, contra ti será usado o chicote, que não será usado em Roma e
Atenas, que são uns obtusos e não conhecem a palavra e a sabedoria, mas
que — como crianças mal cuidadas pela sua nutriz, deixadas como uns
animais em suas capacidades, quando passarem para os braços santos da
minha Igreja, a minha única e sublime Esposa da qual me serão dados à luz
inumeráveis filhos dignos de Cristo, tornar-se-ão adultas e capazes, e me
darão palácios reais e milícias, templos e santos que povoarão o Céu como
umas estrelas — então, o Deus Eterno te diz: “Não me agradais mais e não
aceitarei nenhuma oferta de vossas mãos. Vossas ofertas serão semelhantes
ao esterco, e Eu as recusarei jogando-as sobre vossas faces e elas ficarão
grudadas a vós mesmos. Todas as vossas solenidades, que são só
exterioridade, causam-me repugnância. Eu cancelo o pacto com a estirpe de
Aarão e o faço com os filhos de Levi, porque aí está, este é o meu Levi, e
com ele Eu fiz um pacto de vida e de paz para sempre, e ele me foi fiel
pelos séculos dos séculos até ao sacrifício. Ele teve o santo temor do Pai, e
tremeu pela sua irritação de ofendido, ao som de meu Nome ofendido. A lei
da verdade esteve sobre a sua boca, e sobre seus lábios não houve
iniquidade, ele caminhou comigo na paz e na equidade, e a muitos afastou
do pecado. O tempo chegou no qual em todos os lugares, e não somente
sobre o único altar de Sião, sendo vós indignos de oferecê-lo, será
sacrificada e oferecida ao meu Nome a vítima pura, imaculada, aceitável ao
Senhor.”
593.6Estais reconhecendo estas eternas palavras?
– Nós as estamos reconhecendo, ó Senhor nosso. E, podes crer, ficamos
abatidos como quem tomou um choque. Mas não é possível desviar o
destino?
– Chamas a isso destino, Bartolomeu?
– Eu não saberia dar outro nome…
– Reparação. Este é o nome. Não se ofende ao Senhor sem que a
ofensa seja reparada. E Deus Criador foi ofendido pelo Primeiro que foi
criado. Desde então, a ofensa foi sempre aumentando. E não valeu a grande
água do Dilúvio nem o fogo que choveu sobre Sodoma e Gomorra para
tornar santo o homem. Nem a água nem o fogo. A Terra é uma Sodoma sem
limites, onde Lúcifer passeia livre como um rei. Que venha agora uma
trindade para lavá-la: o fogo do Amor, a água da dor e o Sangue da Vítima.
Aí está, ó Terra, o meu dom. Eu vim para to dar. E agora, iria Eu fugir ao
cumprimento? Já é a Páscoa. Não se pode fugir.
– Por que não vais à casa de Lázaro? Isso não seria fugir. Pois por ele
não serias agredido.
– Simão diz bem. Eu te peço, Senhor, faze o que ele disse! –grita Judas
Iscariotes, jogando-se aos pés de Jesus.
A resposta ao seu ato foi um grande pranto de João e, ainda que bem
compostos em sua dor, choram os primos, Tiago e André.
593.7– Tu me crês o “Senhor”? Olha para Mim!
E Jesus atravessa com seus olhos o rosto angustiado de Iscariotes.
Porque ele está realmente angustiado, e não fingindo. Talvez seja esta a
última luta de sua alma com Satanás, e ele não a sabe vencer.
Jesus o observa, e acompanha a luta dele, como um médico poderia
estudar a crise de um doente. Depois Ele se levanta tão de repente e com
tanta veemência, que Judas, apoiado em seus joelhos, é empurrado e cai
sentado no chão. Jesus chega até a afastar-se, com o rosto desfigurado, e
diz:
– Quereis capturar também Lázaro? Dupla presa, e dupla alegria por
isso. Mas, não. Lázaro se reserva para o Cristo futuro, para o Cristo
triunfante. Somente um será jogado para além desta vida e não voltará. Eu
voltarei. Mas ele não voltará. Contudo, Lázaro fica. Tu, tu que sabes tantas
coisas, sabes também esta. Mas aqueles que esperam ter ganho duplo,
capturando a águia junto com o filhote dela, e os apanharem no ninho e sem
esforço, podem ficar certos de que a águia tem seus olhares sobre todos e
que, por amor ao seu pequenino, andará para longe do ninho, para que só
ela seja capturada, salvando-o. Eu vou ser morto pelo ódio e, no entanto,
continuo a amar. 593.8
Ide. Eu fico orando. Nunca, como nesta hora em que
estou vivendo, tive tanta necessidade de elevar minha alma ao Céu.
– Deixa-me ficar contigo, Senhor –suplica-lhe João.
– Não. Vós todos precisais de repouso. Vai.
– E Tu ficas sozinho? E se te fizerem mal? Parece que já estás sofrendo
tanto… eu fico –diz Pedro.
– Tu irás com os outros. Deixai que Eu me esqueça dos homens por
uma hora! Deixai-me em contato com os anjos de meu Pai. Eles farão as
vezes de minha Mãe, que se tortura no pranto e na oração, que eu não quero
agravar com a minha desolação e dor. Ide.
– Não nos dás a paz? –pergunta-lhe o seu primo Judas.
– Tens razão. A paz do Senhor pouse sobre aqueles que não são
opróbrio a seus olhos. Adeus.
E Jesus, subindo para uma elevação do terreno, desaparece pelo meio
de frondosas oliveiras.
593.9– É verdade. O que Ele diz está mesmo na Escritura! E isso que
ouvimos nos dá a entender por que e por quem foi dito –murmura
Bartolomeu.
– Eu o disse a Pedro, no outono do primeiro ano… –diz Simão.
– É verdade… Mas… Não! Se eu estiver vivo, não deixarei que o
capturem. Amanhã… –diz Pedro.
– Que é que farás amanhã? –pergunta Iscariotes.
– Que é que farei? Eu estou falando comigo mesmo. Agora é tempo de
conjuras. Nem ao ar eu confiarei o meu pensamento. E tu, que és poderoso,
pois assim o disseste tantas vezes, por que é que não procuras proteção para
Jesus?
– Eu o farei, Pedro. Não vos espanteis se eu estiver ausente a qualquer
hora. Eu trabalho para Ele. Mas não o digais a Ele.
– Fica tranquilo. E que sejas bendito. Algumas vezes desconfiei de ti,
mas disso te peço desculpas. Vejo que és melhor do que nós quando chega a
hora. Tu fazes… e eu só sei falar palavras vazias
–diz Pedro, humilde e sincero.
E Judas ri, como se estivesse alegre pelo elogio. Eles saem dali para
fora do Getsêmani e vão pelo caminho que os leva a Jerusalém.
[116] diz, pegando de Ezequiel 39,17. Um pouco mais abaixo se referirá a: Ezequiel 14,12-13; Daniel 7; Oseias 6,1-6; 8,11-14;
Malaquias 1,10-11; 2,3-6; e pré-anunciará o Apocalipse 11,15-17

594. Terça-feira santa. Lições da figueira seca.
O tributo a César e a ressurreição dos corpos.
1 de abril de 1947.

594.1Estão para entrar de novo na cidade, sempre pela mesma estradinha
afastada que eles tomaram na manhã anterior, como se Jesus não quisesse
ser rodeado pelo povo enquanto estivesse esperando, antes de estar no
Templo, do qual Ele logo vai-se aproximando ao entrar na cidade pela porta
do Rebanho, que está perto da Probática. Mas hoje muitos dos setenta e dois
já o estão esperando do lado de lá do Cedron, antes da ponte e assim que o
veem aparecer por entre as oliveiras verde-cinzentas, com suas vestes
purpúreas, vão ao seu encontro. Eles se reúnem e vão indo para a cidade.
Pedro, que olha para frente e para baixo por causa do declive, sempre
desconfiado de estar vendo algum mal intencionado, vê no meio do frescor
das últimas ladeiras, um montão de folhas murchas penduradas sobre as
águas do Cedron. As folhas enroladas e quase secas, aqui e ali manchadas
de ferrugem, são semelhantes às de uma planta que as chamas tivessem
secado. De vez em quando a brisa faz que alguma delas caia e mergulhe nas
águas da torrente.
– Mas esta é a figueira de ontem! A figueira que Tu amaldiçoaste! –
grita Pedro, mostrando com a mão a planta seca, e fala virado para trás
dirigindo-se ao Mestre.
Todos correm para lá, menos Jesus, que vai para frente com seu passo
de costume. Os apóstolos estão narrando aos discípulos o que aconteceu
antes com a árvore que eles estão vendo, e todos juntos comentam o caso e
ficam olhando assombrados, para Jesus.
594.2Jesus, então, vai para perto deles, sorri ao observar aqueles rostos
espantados e amedrontados, e diz:
– E por que não? Estais assim tão maravilhados porque, pela minha
palavra, tenha ficado seca uma figueira? Será que não me vistes ressuscitar
os mortos, curar os leprosos, dar a vista aos cegos, multiplicar os pães,
acalmar as tempestades, apagar o fogo? E ficais admirados de que uma
figueira fique seca?
– Não é pela figueira. É que ontem ela ainda estava vegetando, quando
a amaldiçoaste, e agora está seca. Olha! Está quebradiça como a argila seca.
Seus ramos não têm mais medula. Olha. Lá se vão como a poeira –e
Bartolomeu esfarinha por entre os dedos uns ramos, que ele quebrou
facilmente.
– Não têm mais medula. Assim tu disseste. E sobrevém a morte,
quando não há mais medula, seja para uma planta, como para uma nação,
como para uma religião, mas ficou somente uma casca dura e uma
folhagem inútil: uma exterioridade feroz e hipócrita. A medula, branca,
interna, cheia de linfa, corresponde à santidade, à espiritualidade. A casca
dura e a folhagem inútil é a humanidade destituída de vida espiritual e justa.
Ai daquelas religiões que se tornam humanas, porque os seus sacerdotes e
fiéis não têm mais o espírito vital. Ai daquelas nações cujos chefes são
apenas ferocidade e um ressoante clamor, despojados de ideias frutíferas!
Ai dos homens nos quais falta a vida do espírito!
– Porém, se Tu dissesses isso aos grandes de Israel, ainda que o teu
falar seja justo, não serias sábio. Não te deixes iludir por terem eles até
agora te deixado falar. Tu mesmo o dizes, que não o fazem pela conversão
do coração, mas como cálculo. Também Tu, então, calcula o valor e as
consequências das tuas palavras. Porque existe também a sabedoria do
mundo, além da sabedoria do espírito. E é preciso saber usar dela para
nossa vantagem. Porque, enfim, por enquanto estamos no mundo e não
ainda no Reino de Deus –diz Iscariotes sem azedume, mas em um tom
doutoral.
– O verdadeiro sábio é aquele que sabe ver as coisas sem que as
sombras de sua própria sensualidade e as reflexões do cálculo as alterem.
Eu direi sempre a verdade do que vejo.
594.3– Mas, afinal, esta figueira está morta porque foste Tu a amaldiçoála, ou um… caso… um sinal… como direi? –pergunta Filipe.
– É tudo isso que disseste. Mas o que Eu fiz, vós também poderíeis
fazer se chegásseis a ter a fé perfeita. Tende-a, no Senhor Altíssimo. E
quando a tiverdes, em verdade Eu vos digo que, se alguém chegar a ter a
confiança perfeita na força da oração e na bondade do Senhor, poderá dizer
a este monte: “Sai daqui, e joga-te no mar”; e, se ao dizer isso, não ficar
hesitando em seu coração, mas crendo que tudo o que ele ordena possa
acontecer, tudo o que ele disser se verificará.
– E ficaremos parecendo uns magos e seremos apedrejados, como está
dito para os que praticam a magia. Seria um milagre bem estulto, e para
nosso prejuízo! –diz Iscariotes, balançando a cabeça.
– Estulto és tu, que não entendes a parábola! –responde o outro Judas.
Jesus não fala a Judas. Ele fala a todos:
– Eu vos digo, e é uma velha lição a que Eu repito nesta hora: seja qual
for a coisa que pedirdes na oração, tende fé em obtê-la e a obtereis. Mas se
antes de orar, tiverdes alguma coisa contra alguém, perdoai antes e fazei as
pazes, para terdes como amigo o vosso Pai, que está no Céu, e que muito,
muito vos perdoa e ajuda, da manhã até à tarde, e do pôr do sol até à aurora.
594.4Eles entram no Templo. Os soldados da Fortaleza Antônia os
observam ao passarem. Eles vão adorar o Senhor, depois voltam para o
pátio, onde os rabis estão ensinando. Antes ainda que o povo acorra para
Jesus e se aglomere ao redor dele, já o cercam os saforins, os doutores de
Israel e alguns herodianos; e, com uma delicadeza fingida, depois de o
terem saudado, lhe dizem:
– Mestre, nós sabemos que Tu és sábio e verdadeiro, e que ensinas o
caminho de Deus sem levares em conta coisa nem pessoa alguma, a não ser
que ela esteja fora da verdade e da justiça, e pouco te incomodas com o
juízo dos outros sobre Ti, mas somente te preocupas em conduzir os
homens para o Bem. Dize-nos, então: é lícito pagar o tributo a César ou não
é lícito fazê-lo? Que é que te parece?
Jesus olha para eles com um daqueles seus olhares de uma penetrante e
solene perspicácia, e responde:
– Por que me tentais com hipocrisia? Contudo, alguém entre vós deve
saber que Eu não fico enganado por honrarias fingidas! Mas mostrai-me
uma das moedas daquelas usadas para pagar o tributo.
Eles lhe mostram uma moeda. Jesus a observa de um lado e do outro, e,
segurando-a apoiada na palma da mão esquerda, bate sobre ela com o
indicador da mão direita, dizendo:
– De quem é esta imagem, e que é que diz esta inscrição?
– A imagem é de César e a inscrição traz o nome dele. É o nome de
Caio Tibério César, que agora é o imperador de Roma.
– Pois, então, dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus –e
lhes vira as costas, depois de ter entregado o dinheiro a quem lho havia
dado.
594.5Jesus escuta tudo o que os peregrinos lhe perguntam e os conforta,
os absolve e os cura.
Enquanto isso, as horas passam. Ele sai do Templo, talvez para ir andar
lá fora e tomar o alimento que lhe levaram os servos de Lázaro, que disso
estão encarregados.
Depois Ele torna a entrar no Templo, pois já passa do meio-dia. Ele é
incansável. Graça e sabedoria saem de suas mãos postas sobre os enfermos,
e de seus lábios dos quais saem sábios conselhos que Ele dá às numerosas
pessoas que dele se aproximam e fazem seus pedidos. Parece que Ele quer
consolar a todos, curar a todos, antes que não o possa fazer mais.
Já chegou o pôr do sol e os apóstolos, já cansados, foram sentar-se no
chão sob os pórticos, atordoados por aquele contínuo movimento nos pátios
do Templo na iminência da Páscoa, quando do Incansável se aproximam os
ricos com suas vestes pomposas.
Mateus, que está cochilando com um olho só, levanta-se e vai sacudir
os outros. Ele diz:
– Estão indo para o Mestre uns saduceus. Não o deixemos sozinho, para
que não o ofendam nem procurem fazer-lhe mal, ou zombar dele ainda.
Então todos se levantam, vão até o Mestre e o rodeiam logo. Eu creio
que houve represália em ir ao Templo ou voltar dele na hora sexta.
594.6Os saduceus, que saúdam a Jesus com inclinações até exageradas,
lhe dizem:
– Mestre, Tu respondeste com tanta sabedoria aos herodianos, que
ficamos com o desejo de receber, como eles, nós também, um raio da tua
luz. Escuta. Moisés disse[117]: “Se um homem morrer sem deixar filhos, que
o irmão dele despose a viúva para dar uma descendência ao irmão.” Pois
bem. Havia entre nós sete irmãos. O primeiro, tendo tomado por mulher
uma virgem, morreu sem deixar prole e, portanto, deixou a mulher para um
seu irmão. Também este segundo morreu sem deixar prole, e também o
terceiro que a desposou, e assim por diante, até chegarem ao sétimo. A
mulher, depois de ter desposado todos os sete irmãos, morreu. Dize-nos,
então: na ressurreição dos corpos, se for verdade que os homens vão
ressuscitar, se for verdade que a alma sobreviverá ao corpo unindo-se a ele
no último dia e formando com ele um todo, qual dos sete irmãos que irá
ficar com a mulher, se todos os sete a possuíram na terra?
– Vós estais errados. Não sabeis compreender nem as Escrituras nem o
poder de Deus. Será muito diferente desta a outra vida. No Reino Eterno
não existirão as necessidades da carne, como neste mundo. Porque, na
verdade, depois do Juízo Final, a carne ressurgirá e se unirá de novo à alma
imortal formando com ela um todo, vivo, e até melhor do que está agora a
minha e a vossa pessoa, mas não mais sujeita às leis, e sobretudo aos
estímulos e abusos que agora vigem. Na ressurreição, os homens e as
mulheres não se tornarão esposos nem esposas, mas serão semelhantes aos
anjos de Deus no Céu os quais não se casam, mas vivem no amor perfeito,
que é o divino e espiritual. E quanto à ressurreição dos mortos, não lestes
vós como Deus, do meio da sarça, falou[118] a Moisés? Que foi que o
Altíssimo lhe falou naquela ocasião? “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de
Isaac, o Deus de Jacó.” Ele não diz: “Eu fui”, dando a entender com isso
que Abraão, Isaac e Jacó tinham sido, mas não eram mais. Ele disse: “Eu
sou.” Porque Abraão, Isaac e Jacó são. Eles são imortais. Como todos os
homens em sua parte imortal, enquanto durarem os séculos, e depois, com a
carne ressuscitada por toda a eternidade. Sou, como o é Moisés, como o são
os profetas e os justos, como infelizmente o é Caim, e como são aqueles do
dilúvio e os sodomitas, e todos aqueles que morreram em pecado mortal.
Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos.
594.7– Então, Tu também morrerás. E depois estarás vivo?
Eles o estão tentando. Já estão cansados de o tratarem mansamente. E
seu ódio é tanto, que não podem mais conter-se.
– Eu sou o Vivente e a minha carne não conhecerá a destruição. A arca
nos foi tirada e a atual também nos será tirada, como um símbolo. O
Tabernáculo nos foi tirado e destruído. Mas o verdadeiro Templo de Deus
não poderá ser retirado nem destruído. Quando os seus adversários
pensarem que o fizeram, então será a hora em que ele se estabelecerá na
verdadeira Jerusalém, em toda a sua glória. Adeus.
E Jesus se apressa em ir para o Pátio dos Israelitas, porque as trombetas
de prata estão chamando para o sacrifício da tarde.
594.8Jesus me diz:
– Assim como Eu te fiz assinalar a frase “ao meu cálice”[119], na visão
da mãe de João e de Tiago que pedia um lugar para os seus filhos, assim Eu
te digo que assinales na visão de ontem este ponto: “Quem cair contra esta
pedra, se esfacelará.” Nas traduções sempre se usou a palavra “sobre.” Eu
disse contra e não sobre. É uma profecia contra os inimigos da minha
Igreja. Aqueles que a combatem, arrojando-se contra Ela, pois Ela é a Pedra
angular, ficarão esfacelados. A história da Terra, desde há vinte séculos,
confirma o que Eu estou dizendo. Os perseguidores da Igreja se esfacelam
ao se jogarem contra a Pedra angular. E também o tenham presente aqueles
que, por serem da Igreja, se creem salvos dos castigos divinos, aquele sobre
o qual cair o peso da condenação do Chefe e Esposo desta minha Esposa,
deste meu Corpo místico, aquele tal será esmagado.
594.9E prevendo a uma objeção dos sempre existentes escribas e fariseus,
que maltratam os meus servos, Eu digo: se nestas últimas visões aparecem
frases que não estão nos Evangelhos, como esta no fim da visão de hoje, e
do lugar em que Eu falo da figueira que secou, e de outros ainda, lembremse de que os evangelistas eram sempre daquele povo, e viviam em tempos
nos quais qualquer empurrão forte demais podia ter repercussões violentas e
nocivas aos neófitos.
Que eles releiam os Atos dos Apóstolos e verão que não era pacífica a
fusão de tantos pensamentos diversos e que, se uns aos outros se
admiravam, reconhecendo uns nos outros os seus méritos, não faltaram
entre eles as discrepâncias, porque diferentes são os pensamentos dos
homens, e sempre imperfeitos. E para evitar fraturas mais profundas entre
um pensamento e outro, iluminados pelo Espírito Santo, os Evangelistas
omitiram em seus escritos, de propósito, qualquer frase que tivesse
despertado as excessivas suscetibilidades dos hebreus e escandalizasse os
gentios, que deviam crer que os hebreus eram perfeitos, por formarem o
núcleo do qual veio a Igreja, para que não se afastassem dela, dizendo:
“Eles são como nós.” Conhecer as perseguições de Cristo, sim. Mas as
doenças espirituais do povo de Israel, já corrompido, especialmente nas
classes mais altas, isso, não! Não ficaria bem. E o mais que puderam,
tomaram cuidado.
Observem como os Evangelistas se vão tornando sempre mais
explícitos, até chegarem ao límpido Evangelho do meu João. Os outros
foram escritos em épocas mais distantes da minha Ascensão ao meu Pai.
Somente João é que relata inteiramente até mesmo as manchas mais
dolorosas do próprio núcleo apostólico, chamando abertamente Judas de
“ladrão”, e referindo integralmente as baixezas dos judeus (capítulo 6: a
fingida vontade de me fazerem rei, as discussões no Templo, o abandono de
muitos depois de ter Eu falado sobre o Pão do Céu, a incredulidade de
Tomé). O último sobrevivente, que viveu até ver já forte a Igreja, levanta os
véus que outros não tinham ousado levantar.
Mas agora o Espírito de Deus quer que sejam conhecidas estas palavras
também. E por elas bendigam ao Senhor, porque são muitas luzes e muitos
guias para os justos de coração.”
594.10– Colocarás aqui a segunda parte da terça-feira, isto é, a instrução
noturna aos Doze no Getsêmani.
[117] Moisés disse, em: Deuteronômio 25,5-6.
[118] da sarça, falou, em: Êxodo 3,1-6.
[119] ao meu cálice, em 577.11; contra esta pedra, in 592.17.

595. Terça-feira à noite no Getsêmani com os apóstolos.
7 de março de 1945.

 

595.1– Vós hoje ouvistes falar os gentios e os judeus. E vistes como os
primeiros se inclinavam para Mim e como os segundos por pouco me
espancavam. Tu, Pedro, pouco faltou para ires às vias de fato ao veres como
de propósito me empurravam para cima dos cordeiros, dos carneiros e dos
bezerros, para me fazerem rolar no chão por entre os excrementos. Tu,
Simão, ainda que tão prudente como és, abriste a boca para insultar os
membros do Sinédrio mais cheios de ódio, que rudemente me ofendiam,
dizendo: “Afasta-te, demônio, enquanto passam os enviados de Deus.” E
Tu, Judas, meu primo, e tu João, meu predileto, gritastes e, agindo com
rapidez, me livrastes de ser atropelado, segurando o cavalo pelas rédeas,
enquanto outro, colocando-se diante de Mim, recebeu o golpe da vara, que,
com um riso de escárnio, estava dirigido contra Mim por Sadoque, que veio
para o meu lado com o seu carro, com grande velocidade e, de propósito,
sobre Mim.
Eu vos agradeço pelo vosso amor, que vos faz insurgir-vos[120] contra
os ofensores do Inerme. Mas havereis de ver bem outras ofensas e atos
cruéis. Quando esta lua estiver sorrindo no Céu, pela segunda vez depois
desta tarde, as ofensas que, por enquanto são só por palavras ou por
ameaças, não mais que ofensas materiais, tornar-se-ão concretas, mais
numerosas do que as flores que agora estão sobre as árvores frutíferas, e
tanto mais se agrupam quanto mais pressa têm de florir. 595.2Vistes — e vos
admirastes — uma figueira seca e todo um pomar sem flores. A figueira é
como Israel: negou alimento ao Filho do homem e morreu no seu pecado. O
pomar, como os gentios, espera a hora de que Eu falei hoje para florescer e
anular a última lembrança da ferocidade humana, com a doçura das flores
espalhadas sobre a cabeça e sob os pés do Vencedor.
– Em que hora, Mestre? –pergunta Mateus–. Tu falaste tanto e de tantas
coisas hoje! Não me lembro bem. E quereria recordar-me de tudo. Talvez
será a hora da volta de Cristo? Também aqui Tu falaste de ramos que se
tornam tenros e soltam folhas.
– Não. Nada disso! –exclama Tomé–. O Mestre fala como sendo
iminente essa conjura. Como pode, então, em pouco tempo, acontecer tudo
aquilo que Ele diz[121] que vai preceder a sua volta? Guerras, destruições,
escravidão, perseguições, o Evangelho pregado a todo o mundo, a
desolação da abominação na casa de Deus, e depois terremotos, pestes,
falsos profetas, sinais no sol e nas estrelas… Ah! São necessários séculos
para acontecer tudo isso! E o dono do pomar estaria bem arranjado se este
tivesse que ficar esperando aquele tempo futuro para florescer!
– Não comeria mais de suas maçãs, porque eu digo que já será o fim do
mundo –comenta Bartolomeu.
– Para chegar o fim do mundo, bastaria um pensamento de Deus e tudo
voltaria ao nada. Por isso, também aquele pomar pouco teria que esperar.
Mas, como eu disse, assim acontecerá. Portanto, ainda passarão séculos da
situação atual até chegar aquela, ou seja, o definitivo triunfo e a volta de
Cristo –explica Jesus.
– E então? A que hora?
– Ah! Eu sei a hora –chora João. – Eu sei. Ela será depois de tua morte
e ressurreição…
E João lhe dá um abraço apertado.
– E tu choras se Ele ressurge? –caçoa Judas.
– Eu choro, porque antes terá que morrer. 595.3Não caçoes de mim,
demônio. Eu compreendo. E não posso ficar pensando naquela hora.
– Mestre! Ele me chamou de demônio. Ele pecou contra o seu
companheiro…
– Judas, sabes se não o mereces? Então, não fiques pensando na culpa
dele. Eu também tenho sido chamado “demônio”, e ainda serei chamado
assim.
– Mas Tu disseste que quem insulta o irmão é culp…
– Silêncio. Que diante da morte, terminem essas odiosas acusações,
disputas e mentiras. Não perturbeis a quem está morrendo.
– Perdoa-me, Jesus –murmura João–. Eu percebi que alguma coisa se
revolta dentro de mim ao ouvir aquela risada… e não pude conter-me.
João está ainda abraçado com Jesus, chorando sobre o seu coração.
– Não chores. Eu compreendo. Deixa-me falar.
Mas João não se separa de Jesus, nem mesmo quando Ele se senta
sobre uma grande raiz exposta. Ainda fica com um braço atrás e o outro ao
redor do peito, a cabeça sobre o ombro, e chorando sem fazer barulho.
Somente brilham à luz da lua as gotas do seu pranto, que caem sobre a veste
vermelha de Jesus e ficam parecendo rubis, gotas de um sangue pálido
atingidas por uma luz.
595.4– Hoje vós ouvistes falar os judeus e os gentios. Por isso não vos
deve espantar o que Eu digo[122]: “Da minha boca sempre saiu a palavra da
justiça. E ela não será revogada.” Se Eu disser, sempre com Isaías, falando
aos gentios que a Mim haverão de vir, depois que Eu tiver sido levantado da
Terra: “Diante de Mim se dobrará todo joelho, por mim e em Mim jurará
toda língua.” E assim não duvidareis depois que houverdes notado os
modos dos judeus, o que é fácil dizer-se sem medo de errar, que a Mim
serão conduzidos, envergonhados, todos os que agora se opõem a mim.
Meu Pai não me fez seu servo somente para fazer reviver as tribos de
Jacó, para converter o que resta de Israel, os restos, mas me deu a luz das
Nações, a fim de que Eu seja o “Salvador” para todas as partes da Terra. Por
isso, nesses trinta e três anos, exilado do Céu e do seio do Pai para estar
junto aos homens, tendo chegado à idade perfeita nestes últimos três anos
depois de ter aquecido fortemente minha alma e minha mente na forja do
amor, e tê-la temperado com o gelo da penitência, Eu fiz da minha boca
como que uma espada cortante.
595.5O Pai Santo, que é meu e vosso, até agora me tem guardado sob a
sombra de sua mão porque ainda não era hora da Expiação. Agora Ele me
deixa ir. A flecha escolhida, a flecha de sua aljava divina, que depois de ter
ferido para curar, ferido os homens para fazer uma abertura nos corações, a
fim de aceitarem a Palavra e a Luz de Deus, agora vai rápida e certeira ferir
a segunda Pessoa, a do Expiador, do obediente em tudo em lugar do Adão
desobediente… E, como um guerreiro ferido, Eu caio, dizendo em lugar de
muitíssimos: “Foi em vão que Eu me afadiguei sem razão, sem conseguir
nada. Eu consumi as minhas forças à toa.”
Mas, não! Não, pelo Senhor Eterno, que não faz nada sem um
propósito! Vai para trás, Satanás, que me queres fazer ceder ao desconsolo e
me queres tentar, levando-me à desobediência! Para veres o começo e o fim
do meu ministério é que tu vieste, e continuas a vir. Pois bem. Eis que Eu
me levanto (e realmente Ele se põe de pé) para a batalha. Eu vou medir-me
contigo. Eu juro a Mim mesmo que te vencerei. Não é orgulho dizer isso. É
verdade. O Filho do Homem será em sua carne vencido pelo homem, esse
miserável verme que morde e envenena com sua lama podre. Mas o Filho
de Deus, a Segunda Pessoa da indizível Trindade, não será vencida por
Satanás. Tu és o ódio. E és poderoso em teu odiar e em teu tentar. Mas
comigo haverá uma força que te afugenta, porque tu não a podes atingir e
não a podes nem fitar. O Amor está comigo!
595.6Eu sei qual é a tortura desconhecida que me espera. Não é aquela
que amanhã Eu vos direi, a fim de que saibais que nada de tudo o que para
Mim se fazia, que nada de tudo que em vossos corações se planejava, fosse
para Mim desconhecido. Mas a outra tortura… Aquela que é dada ao Filho
do homem não com lanças e bastões, nem com escárnios e pauladas, mas
pelo próprio Deus; e que não será conhecida senão por poucos, por causa
daquilo que ela tem de atrocidade, e aceita como possível por ainda menos.
Mas naquela tortura, na qual dois serão os principais torturadores: Deus,
com sua ausência, e tu, demônio, com a tua presença, a Vítima terá consigo
o Amor. O Amor que vive na Vítima, a primeira força para a sua resistência
à prova, e o Amor no confortador espiritual, que já está batendo suas asas
de ouro pelo desejo de descer para enxugar os meus suores, e vai
recolhendo todas as lágrimas dos anjos no cálice celeste e nele dissolve o
mel dos nomes dos meus redimidos e dos que me têm amor, a fim de
mitigar com aquela bebida a grande sede do Torturado e sua amargura sem
medida.
E tu serás vencido, demônio. Um dia, saindo de um possesso, tu me
disseste[123]: “Espero vencer-te quando fores um molambo de carne
sangrenta.” Mas agora eu te respondo: “Não me vencerás. O vencedor serei
Eu. A minha fadiga foi santa e a minha causa está com o meu Pai. Ele
defende o que foi feito por seu Filho e não permitirá que se desvie o meu
espírito.”
Pai, Eu te digo, desde agora, Eu te digo por aquela hora atroz: “Em tuas
mãos Eu entrego o meu espírito.”
595.7João, não me deixes… Vós, ide. A paz do Senhor esteja onde
Satanás não está hospedado. Adeus.
Tudo termina.
[120] vos faz insurgir-vos, como se intui no último parágrafo de 594.5.
[121] tudo aquilo que Ele diz, tendo já acenado (por exemplo, em 265.7/10) aos temas do discurso escatológico que deve ainda
fazer.
[122] digo, início das citações ou alusões referidas em: Isaías 45,23-25; 49,2-6.
[123] tu me disseste, em 420.6.

596. Quarta-feira santa. O maior dos mandamentos,
o óbolo da viúva, a injúria contra os escribas e
fariseus.
Pausa de descanso com a Mãe e as discípulas.
A edificação da Igreja e os últimos tempos.
2 de abril de 1947.

596.1Jesus entra no Templo, que está mais cheio do que nos dias
precedentes, e hoje está todo vestido de branco, com sua veste de linho. Vai
ser um dia de forte calor.
Ele vai adorar no Átrio dos Israelitas, acompanhado por um grande
número de pessoas, enquanto outras já ocuparam os melhores lugares por
baixo dos pórticos, sendo a maior parte de gentios que, não podendo passar
além do primeiro pórtico, que fica além do Pórtico dos Pagãos,
aproveitaram aquela circunstância de estarem os hebreus atrás do Cristo,
para irem ocupar lugares melhores.
Mas um grupo bem numeroso de fariseus os atrapalha. Eles são sempre
arrogantes do mesmo modo, e vão abrindo caminho com prepotência para
se aproximarem de Jesus, que está inclinado sobre um doente. Eles esperam
que Jesus o cure, a fim de mandarem para perto dele um escriba que lhe
faça perguntas.
Na verdade, entre eles tinha havido antes uma breve discussão, porque
Joel, cognominado o Alamot, queria ir ele mesmo fazer perguntas ao
Mestre. Mas um fariseu se opõe a isso, e os outros o apoiam, dizendo:
– Não. Nós ficamos sabendo que tu és partidário do Rabi, ainda que o
sejas secretamente. Deixa que vá Urias…
– Urias, não –diz um outro jovem escriba, que eu não conheço–. Urias é
áspero demais para falar. Ele excitaria o povo. Vou eu.
E sem dar ouvidos aos protestos dos outros, vai para perto do Mestre
justamente no momento em que Jesus se despede do doente, dizendo-lhe:
– Estás curado. A febre e a dor não voltarão nunca mais.
596.2– Mestre, qual é o maior dos Mandamentos da Lei?
Jesus, atrás do qual estava o escriba, se vira e olha para ele. Um breve
sorriso ilumina seu rosto e depois Ele levanta a cabeça, estando de cabeça
inclinada visto que o escriba é de baixa estatura e, além disso, está inclinado
em um gesto de reverência; e percorre com o olhar toda aquela multidão,
detendo-o sobre o grupo dos fariseus e doutores e descobre o rosto pálido
de Joel, que está escondido atrás de um obeso fariseu. O sorriso de Jesus se
acentua. É como uma luz que vai até o escriba honesto e o acaricia.
Depois abaixa de novo a cabeça, olhando para o seu interlocutor, e lhe
responde:
– O primeiro[124] de todos os mandamentos é este: “Escuta, ó Israel, o
Senhor nosso Deus é o único Senhor. Tu amarás o Senhor teu Deus com
todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças.” Este é o
primeiro e supremo mandamento. E o segundo é semelhante a ele: “Amarás
o teu próximo como a ti mesmo.” Não há mandamentos maiores do que
esses. Eles compreendem toda a Lei e os Profetas.
– Mestre, Tu respondeste com sabedoria e verdade. Assim é, Deus é um
só e não há outro fora Ele. Amá-lo com todo o coração, com toda a própria
inteligência, com toda a alma e com todas as forças, e amar ao próximo
como a si mesmo, vale muito mais do que todos os holocaustos e
sacrifícios. Penso muioto nisso quando medito sobre aquelas palavras de
Davi[125]: “A Ti não agradam os holocaustos. O sacrifício a oferecer-se a
Deus é um espírito compungido.”
– Tu não estás longe do Reino de Deus, porque já compreendeste qual é
o holocausto agradável a Deus.
– Mas qual é o holocausto mais perfeito de todos? –pergunta, em
confidência e em voz baixa o escriba, como se lhe estivesse transmitindo
um segredo.
Jesus fica radiante de amor, deixando cair esta pérola no coração desse
homem que se deixa abrir para receber sua doutrina, a doutrina do Reino de
Deus, e diz, inclinando-se sobre ele:
– O holocausto perfeito é amar como a nós mesmos aqueles que nos
perseguem, e não guardar rancores. Quem fizer assim, possuirá a paz. Está
escrito[126]: os mansos possuirão a Terra e gozarão a abundância da paz. Em
verdade, Eu te digo que aquele que sabe amar seus inimigos atinge a
perfeição e possui a Deus.
595.3O escriba o saúda com deferência, e vai voltando para o seu grupo,
que já o está censurando em voz baixa por ter ele louvado o Mestre, e
cheios de ira lhe dizem:
– Que foi que lhe perguntaste em segredo? Será que tu também te
deixaste seduzir por Ele?
– Eu ouvi o Espírito de Deus falando dos seus lábios.
– Tu és um estulto. Crês talvez que Ele seja o Cristo?
– Eu creio.
– Em verdade, daqui a pouco estaremos vendo vazias dos nossos
escribas as nossas escolas, e eles indo, como uns errantes, atrás daquele
Homem! Mas em que ponto é que viste ser Ele o Cristo?
– Em que ponto foi, eu não sei. Só sei que eu percebo ser Ele.
– Doido!
E, irrequietos, eles lhe viram as costas.
Jesus observou aquele diálogo, e quando os fariseus passam por sua
frente em um grupo cerrado, para ir embora inquietos, Ele os chama,
dizendo:
– Ouvi-me. Quero perguntar-vos uma coisa. Segundo vós, quem é que
vos parece ser o Cristo? Ele é filho de quem?
– Será o filho de Davi, lhe respondem, destacando aquele “será”,
porque eles querem fazer que Ele compreenda que para eles Ele não é o
Cristo.
– E, então, como é que Davi, inspirado por Deus, o chama de Senhor,
quando diz[127]: “Senhor”, dizendo: “O Senhor disse ao meu Senhor:
‘Assenta-se à minha direita, até que Eu tenha posto os teus inimigos como
escabelo de teus pés’?” Se, pois, Davi chama o Cristo de Senhor, como é
que o Cristo pode ser filho dele?
E eles, não sabendo o que responder, vão embora remoendo o próprio
veneno.
596.4Jesus se afasta do lugar onde estava, todo exposto ao Sol, e vai mais
adiante, onde estão as bocas do Tesouro, ao lado da sala do gazofilácio. Este
lado, que ainda está na sombra, está ocupado pelos rabis, que estão
discursando com grandes gestos dirigidos aos seus ouvintes hebreus, que
vão aumentando, assim como aumenta continuamente, com o passar das
horas, o número das pessoas que vão chegando ao Templo.
Os rabis se esforçam para destruir, com os seus discursos, os
ensinamentos que Cristo deu nos dias precedentes ou naquela mesma
manhã. E sempre vão aumentando o tom de sua voz à medida em que veem
aumentar a multidão dos fiéis. Porque o lugar, realmente, ainda que seja
bem amplo, está formigando de gente que vai e vem para todos os lados…
596.5Jesus me diz:
– Insere aqui a visão do óbolo da viúva (19 de junho de 44),
corrigida[128] como Eu te indicarei –(como eu já corrigi nos escritos
datilografados que reenviei).
Depois continua a visão.
19 de junho de 1944
596.6Só hoje, e com insistência, vejo aparecer a visão seguinte.
A princípio, eu não vejo nada mais do que pátios e séries de pórticos,
que eu reconheço como sendo do Templo; e Jesus, que está parecendo um
imperador, de tão solene que Ele está com sua veste de um vermelho vivo e
o manto também de um vermelho mais escuro, encostado a uma enorme
coluna quadrada que sustenta um dos arcos do pórtico. Ele olha fixamente
para mim. E eu me demoro a olhar para Ele, sentindo-me feliz por vê-lo.
Pois há dois dias que eu não o via nem ouvia.
A visão dura assim por longo tempo. E enquanto ela continua, eu não a
escrevo, pois é uma alegria para mim. Mas agora que eu vejo animar-se a
cena, compreendo que devo escrever. E escrevo.
O lugar vai-se enchendo de pessoas que vêm e que vão para todos os
lados. Aí vejo sacerdotes e fiéis, homens, mulheres e crianças. Uns
passeiam, outros estão parados ouvindo os doutores, outros estão puxando
cordeirinhos ou carregando pombos para outros lugares, talvez para onde
vão ser sacrificados.
Jesus continua apoiado à coluna, e olhando. Ele nada fala. Mesmo nas
duas vezes em que foi interrogado pelos apóstolos, Ele fez sinal de não, mas
nada falou. Ele está muito atento a observar. E pela expressão do rosto
parece estar julgando os que olha. Os olhos dele e todo o seu rosto me
fazem lembrar o aspecto dele como vi na visão do Paraíso, quando Ele
julgava as almas, no juízo particular. Agora, naturalmente, é Jesus, Homem;
lá em cima era Jesus glorioso e, por isso, mais imponente ainda. Mas as
mudanças no rosto que observa fixamente são as mesmas. Ele está sério,
perscrutador. Mas se algumas vezes é de uma severidade que faz tremer até
o mais descarado, algumas vezes é também doce, com uma tristeza
sorridente, que só com o olhar já parece estar acariciando.
596.7Parece não estar ouvindo nada. Mas deve estar escutando tudo,
quando, de um grupo que está a alguns metros, ao redor de algum dos
doutores, se levanta uma voz anasalada, que proclama: “Mais do que
qualquer outra ordem, a que vale é esta: o que é para o Templo, vá para o
Templo. O Templo está acima do pai e da mãe, e se alguém quer dar para a
glória do Senhor seja lá o que for que lhe sobra, pode fazê-lo e por isso será
abençoado, porque não há sangue nem afeto superior ao Templo.” Jesus
move lentamente a cabeça naquela direçã, e fica olhando com um olhar tal
que… eu não quereria que fosse dirigido a mim.
Parece que agora Ele olha para todos em geral. Mas quando um
velhinho trêmulo se prepara para subir pelos cinco degraus que vão para
uma espécie de terraço que está perto de Jesus, e que parece conduzir para
um outro pátio mais interior, e pega o seu bastãozinho, e quase cai, tendo
tropeçado em sua própria veste, Jesus espicha o seu longo braço e o agarra
com firmeza, e o sustenta, enquanto não o vê em segurança. O velhinho
levanta a cabeça já embranquecida e olha para o seu alto Salvador,
murmurando uma palavra de bênção, enquanto Jesus lhe sorri e acaricia-lhe
a cabeça meio calva. Depois volta para perto de sua coluna, mas se afasta
de novo para levantar um menino que escapou da mão de sua mãe e caiu de
bruços justamente a seus pés, perto do primeiro degrau, e está chorando.
Jesus o levanta, o acaricia e o consola. A mãe, toda confusa, lhe agradece.
Mas Jesus sorri também para ela, e lhe entrega o menino.
Mas Ele não sorri quando passa um arrogante fariseu, nem mesmo
quando passam em grupo os escribas e outros que eu não sei quem são. Os
deste último grupo se saúdam com muitos abraços e inclinações. Jesus olha
para eles tão fixamente que parece querer perfurá-los, e os saúda, mas sem
manifestar alegria. Ele está muito sério. Até para um sacerdote que vai
passando, e que deve ser um grande personagem, pois a multidão abre
passagem para ele e o saúda, e ele passa vaidoso como um pavão, Jesus
olha demoradamente. Mas é um olhar tão impressionante, que ele, que é tão
cheio de soberba, inclina a cabeça. Não O saúda. Contudo, ele não resiste
ao olhar de Jesus.
596.8Jesus para de olhar na direção dele para observar uma pobre
mocinha vestida de marrom escuro, que vai subindo, muito acanhada, os
degraus, indo para o lado de uma parede na qual estão umas coisas
parecidas com cabeças de leão ou de feras semelhantes de boca aberta.
Muitos estão indo àquele lugar. Mas Jesus não lhes dá importância. Agora
Ele está indo pelo caminho da mocinha. Seus olhos a acompanham com
piedade e se enchem de doçura quando a vê estendendo uma das mãos para
jogar alguma coisa na boca de pedra de um daqueles leões. E quando a
mocinha, ao sair de lá, passa por perto dele, Ele é o primeiro a dizer-lhe:
– A paz esteja contigo, mulher.
Ela, assustada, levanta a cabeça e fica embaraçada.
– A paz esteja contigo –repete-lhe Jesus–. Vai, que o Altíssimo te
abençoa.
Aquela pobrezinha fica extática, depois murmura uma saudação e se
vai.
– Ela é feliz em sua infelicidade –diz Jesus, saindo do seu silêncio–.
Agora está feliz, porque a bênção de Deus a acompanha. 596.9Ouvi, meus
amigos, vós que estais aqui perto. Estais vendo aquela mulher? Ela não deu
mais do que duas moedinhas, o que não dá para comprar nem a comidinha
de um passarinho que está na gaiola, e, contudo, deu mais do que todos
deram, desde a hora em que se abriu o Templo de manhã cedo, quando
puseram a sua oferta no Tesouro do Templo.
Ouvi. Já vi muitos ricos lançarem naquelas bocas dos cofres
importâncias suficientes para matar a fome desta moça por um ano e vestir
a sua pobreza, que é decente porque é limpa. Eu já vi ricos que lançavam
com prazer lá dentro somas que teriam podido matar a fome dos pobres da
Cidade Santa por um ou mais dias e fazer que eles bendigam ao Senhor.
Mas em verdade Eu vos digo que ninguém deu mais do que esta mulher. O
seu óbolo é caridade. Mas o outro não. O dela é generosidade, o outro não.
O dela é sacrifício. O outro não. Hoje aquela mulher não irá comer, porque
não tem mais nada. Antes ela terá que trabalhar para receber um
pagamento, a fim de dar um pão à sua fome. Para sustentá-la não há
riquezas, nem ela tem pais que a sustentem. Ela é sozinha. Deus lhe tirou os
pais, o marido e os filhos, tirou-lhe os poucos bens que eles lhe haviam
deixado e, mais do que Deus, lho haviam tirado os homens, aqueles homens
que agora, com grandes gestos, como estais vendo, continuam a jogar lá
dentro o que lhes está sobrando e do qual grande parte foi extorquida com
usura das pobres mãos daqueles que são fracos e passam fome.
596.10Eles dizem que não há sangue nem afeto que sejam superiores ao
Templo, e assim ensinam a não amar ao próximo. Eu vos digo que acima do
Templo está o amor. A Lei de Deus é amor e quem não tem piedade do
próximo não ama. O dinheiro supérfluo, o dinheiro enlameado pela usura e
pelo ódio, pela dureza, pela hipocrisia, não canta louvor a Deus e não atrai
sobre o doador a benção celeste. Deus o repudia. Pode engordar esses
cofres, mas não é ouro dado para o incenso: é lama que vos submerge, ó
ministros, que não servis a Deus, mas ao vosso interesse. Mas este é um
laço que vos estrangula, ó doutores, que ensinais uma doutrina que é vossa;
mas é um veneno que corrói aquele resto de alma que ainda tendes, ó
fariseus, se é que ainda a tendes. Deus não quer o que é sobra. Não sejais
uns Cains. Deus não quer o que é produzido pela crueldade. Deus não quer
aquilo que, levantar a voz em pranto, diz: “Eu devia matar a fome de um
faminto, mas não o fiz porque queria apresentar-me com pompa aqui
dentro. Eu devia ajudar um velho pai, uma mãe que já está caducando, mas
não o fiz porque a ajuda não teria sido conhecida pelo mundo, e eu devo
tocar a minha trompa a fim de que o mundo saiba quem é o doador.”
Não, ó rabi, que ensinas que tudo o que é sobra seja dado a Deus e que
é permitido negar ao pai e à mãe para dar a Deus. O primeiro mandamento
é: “Ama a Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a
tua inteligência, com tuas forças.” Por isso, não o supérfluo, mas sim o que
é nosso sangue é preciso dar-lhe, desejando sofrer por Ele. Sofrer. Não fazer
sofrer. E se dar muito custa, porque despojar-se das riquezas desagrada, e o
tesouro é o coração do homem, que é vicioso por natureza, justamente
porque é difícil é preciso dar. Por justiça, porque tudo o que se tem é por
vontade de Deus. Por amor, porque é prova de amor amar o sacrifício para
dar alegria a quem se ama. Sofrer para oferecer. Repito: não fazer sofrer.
Porque o segundo mandamento diz: “Ama ao teu próximo como a ti
mesmo.” E a lei também diz que, depois de Deus, nossos pais são o
próximo a quem somos obrigados a honrar e ajudar.
596.11Por isso, em verdade Eu vos digo que aquela pobre mulher
compreendeu a Lei melhor do que os sábios, e está justificada mais do que
qualquer outro; e abençoada, porque, em sua pobreza, deu a Deus tudo,
enquanto que vós dais o que vos sobra, e o dais para crescerdes na estima
dos homens. Eu sei que me odiais porque Eu falo assim. Unis o vosso ódio
a Mim ao desprezo pela pobrezinha, que Eu elogio. Mas não fiqueis
pensando que estais fazendo destas duas pedras um duplo pedestal para a
vossa soberba. Elas serão a pedra de moinho que vos esmagará.
Vamos. Deixemos que as víboras se mordam, aumentando o seu
veneno. Quem é puro, bom, humilde, contrito, e quer conhecer o verdadeiro
rosto de Deus, que me acompanhe.
596.12Diz Jesus:
– E tu, que ficas agora sem nada porque tudo Me deste, dá-me essas
duas últimas moedas. Diante do muito que me deste, elas podem parecer
aos estranhos um nada. Mas para ti, que não tens mais do que elas, elas são
tudo. Põe-nas na mão do teu Senhor. E não chores. É melhor que não fiques
chorando sozinha. Chora Comigo, que sou o Único que te posso entender e
te entendo sem as névoas desta humanidade que está sempre interessada em
por um véu sobre a verdade.
[2 de abril de 1947.] 596.13Os apóstolos, os discípulos e o povo o acompanham bem de perto,
enquanto Ele torna a voltar ao primeiro recinto, que fica quase sob a
proteção da grande muralha do Templo, num ponto onde o ar está mais
fresco, pois o dia de hoje está muito mormacento. E lá, estando o terreno
quase revolvido pelos cascos dos animais e cheio das pedras que os
mercadores e cambistas usavam para conservar mais firmes os recintos de
suas armações, lá não estão os rabis de Israel, os quais permitiam que o
Templo se transformasse em uma feira, mas que sentem repugnância de
entrar com as solas de suas sandálias lá de onde acabaram de ser raspados
os rastos dos quadrúpedes, que há apenas poucos dias foram expulsos de
lá…
Jesus não sente repugnância e é lá que Ele se refugia, rodeado por um
círculo formado por muitos ouvintes. Mas, antes de Ele falar, chama para
perto de Si os seus apóstolos, aos quais Ele diz:
– Vinde e escutai bem. Ontem queríeis saber muitas das coisas que
agora vos irei dizer e das quais ontem Eu falei vagamente, quando
estávamos descansando no horto de José. Ficai, pois, bem atentos, porque
são grandes lições para todos, e especialmente para vós, meus ministros e
continuadores.
596.14Ouvi. Sobre a cátedra de Moisés sentaram-se, ao tempo certo,
escribas e fariseus. Aquelas foram horas tristes para a Pátria[129]. Quando
terminou o exílio de Babilônia e pela magnanimidade de Ciro foi
reconstruída a nação, os governadores dos povos sentiram a necessidade de
reconstruir também o culto e o conhecimento da Lei. Porque ai daquele
povo que não os toma por guia e apoio contra os mais poderosos inimigos
de uma nação, que são a imoralidade dos cidadãos, a revolta contra os
chefes, a desunião entre as diversas classes e partidos, os pecados contra
Deus e o próximo, a irreligiosidade, que são elementos desagregadores por
si mesmos e pelos castigos celestes que eles provocam!
Surgiram, então, os escribas, ou doutores da Lei, para poderem ensinar
ao povo que, como falava a língua caldaica, herança de um duro exílio, não
compreendia mais as Escrituras em hebraico puro. Surgiram para ajudar aos
sacerdotes, que eram poucos para a tarefa de ensinar as multidões. Era um
laicato douto e dedicado a prestar honras ao Senhor, trazendo o
conhecimento Dele aos homens e levando a Ele os homens, que teve a sua
razão de ser e também fez o bem. Porque, recordai-o todos disso, até as
coisas que, pela fraqueza humana, depois vão degenerando, como
aconteceu com esta, que se corrompe com o correr dos séculos, têm sempre
algo bom e uma razão de ser, motivo pelo qual o Altíssimo permite que
surjam e durem, até que, com a medida da degeneração plena, o Altíssimo
as desfaz.
Veio depois outra seita dos fariseus, que era uma transformação daquela
dos Assideus, que havia surgido para manter, com a mais rígida moral e a
mais intransigente obediência à Lei de Moisés e o espírito de independência
do nosso povo. Era o tempo em que o partido helenista, tendo-se formado
pelas pressões e seduções iniciadas no tempo de Antíoco Epifânio e logo
transformada em perseguições contra os que não cediam às pressões do
astuto — que contava, mais do que com as suas armas, com a desagregação
da fé nos corações para reinar em nossa Pátria — procurava fazer-nos seus
escravos.
596.15Lembrai-vos também disto: temei mais as falsas alianças e as
lisonjas de um estrangeiro do que as suas legiões. Porque, enquanto
estiverdes fiéis às leis de Deus e da Pátria, vencereis, ainda que estejais
cercados por exército e poderosos, quando estiverdes corrompidos pelo
veneno sutil, a vós oferecido como se fosse um mel inebriante pelo
estrangeiro que havia feito os seus planos sobre como lidar convosco, Deus
vos abandonará por causa de vossos pecados, e sereis vencidos e
subjugados, mesmo que o vosso falso aliado não dê batalha sangrenta
contra o vosso exército. Ai de quem não estiver alerta, como uma escolta de
vigia, para afastar as ciladas sutis de um astuto e falso vizinho, ou aliado, ou
dominador que inicia a sua dominação sobre os indivíduos desanimando o
coração deles, e o corrompendo com usos e costumes que nossos não são,
que santos não são, e que por isso nos tornam desagradáveis ao Senhor!
Lembrai-vos das consequências que houve para a nossa Pátria, por alguns
dos seus filhos terem adotado usos e costumes de estrangeiros a fim de
agradar-lhes. Boa coisa é a caridade para com todos, até para os povos que
não são da nossa fé, que não têm os nossos usos, que nos fizeram mal nos
séculos passados. Mas o amor a esses povos, que sempre são nossos
próximos, não nos deve nunca fazer que reneguemos a Lei de Deus e da
Pátria, com vistas em qualquer vantagem obtida assim sobre os vizinhos.
Não. Os estrangeiros desprezam aqueles que chegam a ser tão servis, até o
ponto de repudiarem as coisas mais santas da Pátria. Não é renegando o Pai
e a Mãe — Deus e a Pátria — que seremos respeitados e livres.
Ainda bem que no tempo certo surgiram os fariseus, para fazerem
oposição ao transferimento lamacento de usos e costumes estrangeiros. Eu
repito: cada coisa que aparece e que dura tem sua razão de ser. E é
necessário respeitá-la por aquilo que fez, se não for por aquilo que faz.
Porque se ela se tornou culpada, não cabe aos homens insultá-la e muito
menos atacá-la. Há quem sabe fazer isso: Deus e Aquele que Ele mandou, e
que tem o direito e o dever de abrir sua boca e de abrir os vossos olhos para
que vós e eles saibais qual é o pensamento do Altíssimo, e ajais com justiça.
Eu e nenhum outro. Eu porque falo por mandato divino. Eu porque posso
falar, não tendo em Mim nenhum dos pecados que vos escandalizam
quando os vedes cometidos pelos escribas e fariseus, mas que, se puderdes,
os cometeis vós também.
596.16Jesus, que havia começado com voz muito baixa o seu discurso, foi
levantando-a pouco a pouco, e nessas últimas palavras Sua voz é tão
potente como uma trompa que soa.
Hebreus e gentios estão atentos a ouvi-lo. E se os primeiros aplaudem
quando Jesus fala da Pátria e chama claramente pelos seus nomes aqueles
que, sendo estrangeiros, os têm sujeitado e feito sofrer, os segundos se
admiram da forma oratória com que Ele fala, e se felicitam por estarem
presentes àquela fala digna de um grande orador, como eles estão
comentando entre si.
Jesus abaixa de novo a voz, quando recomeça a falar:
– Isto Eu vos disse para fazer-vos recordar a razão de ser dos escribas e
fariseus, e como e porque eles se assentaram na cátedra de Moisés; e como
e porque falam, e suas palavras não são vazias. Fazei, pois, o que eles
dizem. Mas não os imiteis fazendo o que eles fazem. Porque eles dizem que
se deve fazer de um certo modo, mas depois eles não fazem o que dizem
que se deve fazer. Na verdade, eles ensinam as leis de humanidade do
Pentateuco, mas depois põem grandes pesos, insuportáveis e desumanos,
nas costas dos outros, enquanto que eles próprios não movem nem um dedo
para transportar aqueles pesos, e nem mesmo para tocar neles.
A regra de vida deles é a de procurar serem vistos, conhecidos e
aplaudidos, para receberem louvores. Mas eles vão contra a lei do amor,
porque gostam de dizer que eles são uns separados, e desprezam aos que
não são de sua seita, exigem para si o título de mestres e que seus discípulos
lhes prestem um culto que eles não prestam nem a Deus. Eles se julgam uns
deuses por sua sabedoria e poder; mais do que os pais e as mães, querem
estar no coração de seus discípulos; e pretendem que sua doutrina seja
superior à de Deus e exigem que ela seja praticada ao pé da letra, ainda que
ela seja uma manipulação da verdadeira Lei, tão inferior a esta como mais
não pode ser este monte em comparação com o Grande Hermon, que está
acima de toda a Palestina. Eles são uns heréticos, pois creem, como os
pagãos, na metempsicose e no fatalismo alguns deles, enquanto que os
outros negam as coisas que os primeiros admitem e, de fato, se não na
prática, o que o próprio Deus nos deu como matéria de fé, definindo-se o
único Deus ao qual deve ser oferecido o culto, e tendo como tais o direito
de serem obedecidos mais do que um mestre que não seja divino.
E se agora Eu vos digo[130]: “Aqueles que amam seu pai e sua mãe
mais do que a Mim, não estão aptos para entrarem no Reino de Deus”, não
é para inculcar-vos o desamor aos pais, aos quais deveis respeito e ajuda, e
nem vos é lícito negar um socorro a eles, dizendo: “É o dinheiro do
Templo”; ou negar-lhes a hospitalidade, dizendo: “O peso que eu já carrego
não mo permite”; ou tirar-lhe a vida, dizendo: “Eu vou matar-te, porque tu
amas o Mestre.” Mas é para que tenhais um amor justo aos vossos pais, isto
é, um amor paciente e firme em sua mansidão, um amor tal que
saiba — sem chegar ao ódio a um deles que peca e vos faz sofrer por não
querer acompanhar-vos pelo caminho da Vida: o meu caminho — sabendo
distinguir entre a minha lei e o egoísmo familiar, a prepotência familiar.
Amai a vossos pais, obedecei-lhes em tudo o que é santo. Mas estai sempre
prontos a morrer, não matar, mas a morrer, eu quero dizer, se eles quiserem
induzir-vos a trair a vocação que Deus colocou em vós, a de serdes os
cidadãos do Reino de Deus, que Eu vim formar.
596.17Não imiteis os escribas e fariseus, que estão separados uns dos
outros, ainda que pareçam estar unidos. Vós, discípulos de Cristo, sede
verdadeiramente unidos uns aos outros, os chefes sejam afáveis para com os
seus súditos, e os súditos, afáveis para com os seus chefes, unidos no amor
e na finalidade que quereis atingir com a vossa união: conquistar o meu
Reino e ficar à minha direita no Eterno Julgamento. Lembrai-vos de que um
Reino dividido já não é mais um reino e não pode subsistir. Sede, pois,
unidos entre vós no amor para comigo e para com a minha doutrina. O
tribunal do Cristão, assim é que vão ser chamados os meus súditos, seja o
amor e a união, a igualdade entre vós nas vestes, a partilha nas posses, a
fraternidade dos corações. Todos por um, um por todos. Quem possui, dê
humildemente. Quem não possui, aceite humildemente e exponha as suas
necessidades aos irmãos, sabendo que eles são realmente irmãos. E os
irmãos escutem amorosamente as necessidades dos irmãos, sendo para eles
verdadeiramente tais.
Lembrai-vos de que o vosso Mestre muitas vezes teve fome, frio e mil
outras necessidades e incômodos, e humildemente as contou aos homens,
Ele, o Verbo de Deus. Lembrai-vos de que é dado um prêmio a quem é
misericordioso, ainda que seja somente por dar um pouco d’água. Lembraivos de que dar é melhor do que receber. Lembrando-se destas três coisas, o
pobre pode encontrar a força de pedir sem se sentir humilhado, sabendo que
Eu o fiz antes dele; e perdoar quando for repelido, sabendo que muitas
vezes ao Filho do homem foram negados o lugar e o alimento que são
dados ao cão que guarda o rebanho. E o rico tenha a generosidade de dar
suas riquezas, ciente que a vil moeda, o odioso dinheiro sugerido por
Satanás, são a causa de nove décimos das ruínas do mundo, mas que, se
forem dados por amor, se transformam em uma joia imortal e paradisíaca.
596.18Estai vestidos com vossas virtudes. Que elas sejam amplas, mas
conhecidas somente por Deus. Não façais como os fariseus, que põem os
mais largos filactérios, as franjas mais longas, e gostam dos primeiros
lugares nas sinagogas, e de serem saudados nas praças, e de serem
chamados de “rabis” pelo povo. Um só é o vosso Mestre: o Cristo. Vós que
no futuro sereis os novos doutores, é a vós que Eu falo, meus apóstolos e
discípulos, e lembrai-vos de que só Eu sou o vosso Mestre E o serei
também quando já não estiver mais no meio de vós. Porque só a Sabedoria
é que ensina. Portanto, não vos deixeis chamar de mestres, porque vós
mesmos sois discípulos. E não exijais nem deis o nome de pai a ninguém
sobre a terra, porque um só é o Pai de todos, o vosso Pai que está nos Céus.
Que esta verdade vos torne sábios, ao perceberdes verdadeiramente que sois
todos irmãos uns dos outros, seja os que dirigem, como os que são
dirigidos, e amai-vos como bons irmãos. Nenhum daqueles que irão dirigir
se faça chamar de guia, porque um só é o vosso guia comum: o Cristo.
Que o maior entre vós seja o vosso servo. Porque não é humilhar-se ser
servo dos servos de Deus, mas isso é imitar a Mim, que fui manso e
humilde, sempre pronto para ter amor aos meus irmãos pela carne de Adão,
e ajudá-los com o poder que Eu tenho em Mim, como Deus. Eu não
humilhei minha natureza divina, servindo aos homens. Porque o verdadeiro
rei é aquele que sabe dominar não somente aos homens, mas também as
paixões do homem e, antes de tudo, a estulta soberba. Lembrai-vos: quem
se humilha será exaltado e quem se exalta será humilhado.
596.19A Mulher[131] da qual o Senhor falou no segundo capítulo do
Gênesis, a Virgem da qual se fala em Isaías, a Mãe-Virgem do Emanuel,
profetizou esta verdade do tempo novo, quando cantou: “O Senhor
derrubou os poderosos de seus tronos e elevou os humildes.” A Sabedoria
de Deus falava sobre os lábios daquela que era a Mãe da Graça e Trono da
Sabedoria. E Eu repito as palavras inspiradas que me louvaram unido ao Pai
e ao Espírito Santo, em nossas obras admiráveis, quando, sem ofensa para
com a Virgem, Eu, o Homem, fui me formando em seu seio sem deixar de
ser Deus. Sirva isso de norma para aqueles que querem dar à luz o Cristo
em seus corações e vir para o Reino de Cristo. Aí não estará Jesus como o
Salvador, como o Cristo, o Senhor. E não haverá Reino dos Céus para os
que são soberbos, fornicadores e idólatras, adoradores de si mesmos e de
suas vontades.
596.20Por isso, ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que credes poder
fechar com as vossas sentenças impraticáveis — e que realmente se fossem
endossadas por Deus seriam uma fechadura inquebrável para a maioria dos
homens — que credes poder fechar o Reino dos Céus diante dos homens
que elevam seu espírito para ele, a fim de achar força em sua penosa
jornada terrena! Ai de vós que lá não entrais, e lá não quereis entrar, porque
não acolheis a Lei do Celeste Reino, e não deixais entrar os outros, que
estão diante daquela mesma porta que vós, intransigentes, fechais ainda
mais, com fechaduras que não foi Deus que lá colocou.
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que devorais os bens das
viúvas com o pretexto de fazer longas orações. Por isso sofrereis um juízo
severo!
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que andais por mar e por terra
consumindo bens que não são vossos, a fim de fazerdes ainda que um só
prosélito, e, uma vez que o tenhais conseguido, fazer dele um filho do
inferno, duas vezes mais do que vós mesmos!
Ai de vós, ó guias cegos, que dizeis: “Se alguém jurar pelo Templo, seu
juramento não vale nada. Mas se ele jurar pelo ouro do Templo, fica ligado
ao seu juramento.” Estultos e cegos! E quem é mais? O ouro, ou o Templo
que santifica o ouro? E vós ainda dizeis: “Se alguém jura pelo altar, seu
juramento não tem valor. Mas se jurar pela oferta que está sobre o altar,
então é válido o seu juramento, e ele fica ligado ao seu juramento.” Ó
cegos! Que é que é maior? A oferta ou o altar que santifica a oferta? Quem
jura, então, pelo altar, jura por ele e por todas as coisas que estão sobre ele,
e quem jura pelo Templo, jura por ele e por Aquele que nele habita, e quem
jura pelo Céu, jura pelo Trono de Deus e por Aquele que nele está sentado.
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais os dízimos da
hortelã e da arruda, do anis e do cominho, e depois descuidais de cumprir os
preceitos mais graves da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Estas
são as virtudes que era necessário praticar, sem desprezar as outras
menores!
Ó guias cegos, que filtrais vossas bebidas por medo de vos
contaminardes engolindo algum mosquitinho que se afoga, e depois engolis
um camelo sem por isso vos julgardes impuros. Ai de vós, escribas e
fariseus hipócritas, que lavais o cálice e o prato por fora, mas por dentro
estais cheios de rapinas e imundícias. Ó fariseu cego, lava primeiro por
dentro o teu cálice e o teu prato, de tal modo que a parte de fora também
fique limpa.
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que voais como morcegos no
escuro, pelas vossas obras de pecado, e pactuais durante a noite com os
pagãos, os ladrões e os traidores, e depois, pela manhã, tendo tirado os
sinais de vossos negócios escusos, subis ao Templo com belas vestes.
Ai de vós, que ensinais as leis da caridade e da justiça contidas no
Levítico, e depois sois uns ávidos, ladrões, falsos, caluniadores, opressores,
injustos, vingativos, cheios de ódio, e chegais até a abater quem vos
aborrece, ainda que seja do vosso sangue, e a repudiar a virgem que se
tornou vossa mulher, a repudiar os filhos tidos dela porque são infelizes, e a
acusar de adultério a vossa mulher porque ela não vos agrada mais, ou de
doença imunda, para ficardes livres dela, vós, que sois imundos em vosso
coração libidinoso, por mais que não pareçais ser assim aos olhos das
pessoas que não conhecem as vossas ações. Sois semelhantes a sepulcros
caiados, que por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos
dos mortos e de podridão. Assim sois vós. Sim. Assim sois! Por fora
pareceis justos, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade.
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que ergueis suntuosos
mausoléus para os profetas e embelezais as tumbas dos justos, dizendo: “Se
nós tivéssemos vivido no tempo de nossos pais, não teríamos sido
cúmplices e companheiros daqueles que derramaram o sangue dos
profetas.” Assim testemunhais contra vós mesmos de serdes descendentes
daqueles que mataram os vossos profetas. E vós, além do mais, superais a
medida dos vossos pais… Ó serpentes, raça de víboras, como escapareis da
condenação na Geena?
596.21Por isso, eis que Eu, Palavra de Deus, vos digo: Eu, Deus, mandarvos-ei profetas e sábios e escribas novos. E destes, uma parte vós matareis,
outra parte crucificareis, outra flagelareis em vossos tribunais, em vossas
sinagogas, fora de vossos muros, e uma parte deles vós a perseguireis de
cidade em cidade, enquanto não cair sobre todos vós o sangue do justo
derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel[132] até o de Zacarias,
filho de Baraquias, que vós matastes entre o átrio e o altar, porque, por amor
de vós, ele vos havia lembrado o vosso pecado, para que dele vos
arrependêsseis, voltando para o Senhor. Assim é. Vós odiais aqueles que
querem o vosso bem e que amorosamente vos convidam a andar pelos
caminhos de Deus.
Em verdade Eu vos digo que tudo isso está para acontecer, o delito e as
consequências. Em verdade Eu vos digo que tudo se cumprirá ainda nesta
geração.
Oh! Jerusalém! Jerusalém! Jerusalém, que apedrejas os que são
enviados e matas os teus profetas! Quantas vezes Eu quis reunir os teus
filhos como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo de suas asas, e tu
não quiseste! Agora, pois, escuta, ó Jerusalém! Agora, pois, escutai todos
vós que me odiais e odiais tudo o que vem de Deus. Agora escutai-me, vós
que me amais e que sereis arrastados no castigo reservado para os
perseguidores dos Enviados por Deus. E escutai vós também, que não sois
deste povo, mas que me escutais igualmente, escutai para que fiqueis
sabendo quem é Aquele que vos está falando e que prediz, sem necessidade
de estudar o voo, o canto dos passarinhos nem os fenômenos celestes, nem
as vísceras dos animais sacrificados, nem a chama do fogo, nem a fumaça
dos holocaustos, porque todo o futuro é o presente para Este que vos está
falando. “Esta vossa casa vos será deixada deserta. Eu vos digo, diz o
Senhor, que não me vereis mais enquanto vós mesmos não disserdes[133]:
‘Bendito o que vem em nome do Senhor’.”
596.22Jesus está visivelmente cansado e suado. Tanto pelo muito tempo
que Ele ficou falando em voz alta, como, como pelo mormaço do dia sem
vento. Pressionado contra o muro por uma multidão, atingido por milhares
de olhares, e percebendo todo o ódio dos que, por baixo dos pórticos do
pátio, o estão ouvindo, e também todo o amor, ou pelo menos a admiração
dos que o rodeiam, sem se preocupar com o Sol que está batendo nas
cabeças e avermelhando os rostos suados, Ele está bastante exausto e
necessitado de alívio. E sai a procurá-lo, dizendo aos seus apóstolos e aos
setenta e dois discípulos, que como cunhas foram abrindo lentamente uma
passagem pelo meio da multidão e que agora já estão na primeira linha,
formando uma barreira de amor ao redor Dele:
– Vamos sair do Templo, vamos para algum lugar aberto, no meio das
árvores. Eu tenho necessidade de sombra, de silêncio e de frescor. Na
verdade, este lugar já está parecendo arder com fogo da ira celeste.
Abrem-lhe passagem com dificuldade, e assim podem sair pela porta
mais próxima, onde Jesus está se esforçando para despedir-se de muitos,
mas inutilmente. A multidão o quer acompanhar, custe o que custar.
596.23Enquanto isso, os discípulos estão observando o pináculo do alto do
Templo, como ele está cintilando ao sol, por volta do meio dia, e João de
Éfeso faz que o Mestre observe a robustez da construção:
– Olha só que pedras e que construções!
– Contudo, disso tudo não ficará pedra sobre pedra! –responde-lhe
Jesus.
– Não? Quando será isso? –perguntam muitos.
Mas Jesus não diz nada.
Vai descendo o Monte Mória e sai depressa da cidade, passando por
Ofel e pela Porta de Efraim ou do Estrume, e indo refugiar- se por entre as
folhagens dos jardins do Rei inicialmente, até que aqueles que não são
apóstolos nem discípulos e persistiram em acompanhá-lo, vão indo
lentamente, quando Manaém, que fez que se abrissem as pesadas cancelas,
põe-se na frente para dizer a todos com altivez:
– Ide. Aqui só entram os que eu quero!
As sombras, o silêncio, o perfume das flores, os aromas da cânfora, dos
cravos e da canela, da alfazema e de mil outras ervas odoríferas, o sussurro
dos regatos, certamente alimentados pelas fontes e cisternas vizinhas, por
baixo das galerias formadas pela folhagem, tudo isso unido ao chilreio dos
passarinhos, fazem deste lugar um ambiente de um repouso paradisíaco. A
cidade parece estar a muitas milhas de distância, com suas ruas estreitas e
escuras por causa das arquivoltas e, noutros pontos, ensolarada a ponto de
ofuscar as vistas, com os seus maus cheiros e os fedores das cloacas nem
sempre limpas, e de ruas cheias de quadrúpedes demais para poderem estar
limpas, especialmente as que são de segunda categoria.
596.24O guarda dos Jardins deve conhecer Jesus muito bem[134], porque o
trata com respeito e, ao mesmo tempo, com confiança. E Jesus lhe pergunta
como vão os filhos e a mulher.
O homem gostaria de dar hospedagem a Jesus em sua casa, mas o
Mestre prefere ficar na paz daquele frescor repousante, tranquilo, do vasto
jardim do Rei, um verdadeiro parque de delícias. E antes que os dois
incansáveis e fidelíssimos servos de Lázaro saiam para ir buscar a cesta de
alimentos, Jesus lhes diz:
– Dizei às vossas patroas que venham. Estaremos aqui por algumas
horas com minha Mãe e as discípulas fiéis. E será muito agradável…
– Estás muito cansado, Mestre. O teu rosto o está dizendo –observa
Manaém.
– É verdade. E tanto, que nem tive forças para ir além.
– Mas eu te havia oferecido estes jardins muitas vezes, nos dias
passados. Tu sabes que eu fico contente quando te posso oferecer paz e
sustento!
– Eu sei disso, Manaém.
– Mas ontem quiseste ir para aquele triste lugar! Um lugar com tanta
aridez na redondeza, tão estranhamente seco, sem vegetação neste ano! E
tão perto daquela triste porta!
– Eu quis contentar os meus apóstolos. Afinal, eles são umas crianças.
Crianças grandes. Olha bem, como estão eles lá se refrescando felizes!…
Bem depressa se esquecem o que estão tramando contra Mim do lado de lá
destes muros…
– E esquecidos de que andas tão aflito… Mas não me parece que aqui
precisemos ficar muito alarmados. Nas outras vezes este lugar me parecia
mais perigoso.
Jesus olha para ele, e se cala. Quantas vezes já vi Jesus olhar e ficar
calado assim, nestes últimos dias!
Depois Jesus se põe a olhar para os apóstolos e discípulos, que
descobriram as cabeças, tiraram os mantos e as sandálias, refrescando seus
rostos e outras partes do corpo nas águas frias dos córregos, sendo imitados
por muitos dos setenta e dois, que agora na verdade são muitos mais, e eu
até creio que, unidos todos eles pela mesma fraternidade de ideais, vão-se
colocando aqui e ali, para descansarem um pouco afastados dali, a fim de
deixarem Jesus descansar também.
Até Manaém se retira para deixá-lo sossegado. Todos eles respeitam o
repouso do Mestre, que está cansadíssimo e foi refugiar-se sob uma pérgula
carregada de jasmins em flor, com a forma de uma cabana, separada por um
anel formado pelas águas que escorrem para um pequeno canal, no qual
vegetam ervas e flores. Um verdadeiro refúgio de paz, ao qual se chega por
uma pequena ponte de dois palmos de largura e quatro de comprimento, e
sobre a qual há um corrimão todo encoberto por corolas de jasmim.
596.25Voltam os servos, agora em maior número, pois Marta quis tomar
providências para todos os servos do Senhor, e dizem que as mulheres
chegarão dali a pouco.
Jesus manda chamar Pedro, e lhe diz:
– Junto com Tiago, meu irmão, abençoa, oferece e distribui, como Eu
faço.
– Distribuir, sim. Mas abençoar, não, Senhor. A Ti é que toca oferecer e
abençoar. A mim, não.
– Quando estavas à frente dos companheiros, longe de Mim, não o
fazias?
– Sim. Mas naquele tempo… era forçoso que eu o fizesse. Agora, Tu
estás conosco e Tu abençoas. Parece-me melhor tudo, quando Tu ofereces
para nós e distribuis… –e o fiel Simão abraça o seu Jesus, sentado tão
cansado naquela sombra, e inclina a cabeça sobre o ombro dele, feliz por
podê-lo abraçar e beijar assim…
Jesus se levanta e o contenta. Depois vai para o lado dos discípulos,
oferece, abençoa e reparte a comida, olha como eles estão comendo
contentes e lhes diz:
– Agora dormi, repousai enquanto é tempo, e para que depois possais
velar e orar, quando tiverdes necessidade de fazê-lo, a fim de que a fadiga e
o cansaço não façam que fiquem pesados de sono os vossos olhos e o vosso
espírito, quando for necessário que estejais prontos e bem despertos.
– Tu não ficas conosco? Não comes?
– Deixai-me descansar. Eu só preciso disso. Comei, comei!
E, ao passar, vai acariciando os que vê em seu caminho e volta para o
seu lugar…
596.26Doce, suave é a vinda da Mãe para perto do seu Filho. Maria vem
na frente sem medo de errar, pois Manaém, que vigiou ao lado do portão,
estando menos cansado do que os outros, lhe mostra o lugar onde está
Jesus. As outras, e lá estão todas as discípulas hebreias, e de romanas
somente Valéria, param por algum tempo, silenciosas para não despertarem
os discípulos, que estão dormindo à sombra de algumas árvores frondosas,
parecendo um grupo de muitas ovelhas encolhidas pelo meio das ervas, ao
meio dia.
Maria entra por baixo da cobertura de jasmins sem fazer ranger a
pequena ponte de madeira nem o cascalho do chão; e, com mais cuidado
ainda, se aproxima de seu Filho que, vencido pelo cansaço, adormeceu com
a cabeça sobre uma pedra, o braço esquerdo servindo de travesseiro por
baixo do rosto que está coberto pelos cabelos. Maria se sentar paciente
perto da sua Criatura cansada. E o fica contemplando… muito… e um
sorriso cheio de dor e de amor está em seus lábios, enquanto silenciosas
lágrimas lhe caem pelo rosto. Mas, se seus lábios estão fechados e mudos,
seu coração está rezando com todas as suas forças, e manifesta o poder de
sua oração por sua respiração e pela posição de suas mãos, juntas sobre o
colo e apertadas para não tremerem, mas sempre sacudidas por um leve
tremor. Essas mãos só se separam para espantar uma mosca, que insiste em
querer pousar sobre o adormecido, pois poderia despertá-lo.
É a Mãe que vela o seu Filho. É o último sono do Filho que Ela está
podendo velar. E se o rosto da Mãe, nesta quarta-feira da Páscoa é diferente
daquele da Mãe no Natal do Senhor, porque a dor o empalidece e deforma,
a doce e amorosa pureza de seu olhar, e o tremulante cuidado, são iguais
aos que Ela tinha quando, inclinada sobre a manjedoura de Belém, protegia
com seu amor o primeiro sono sem conforto do seu Filho.
Jesus faz um movimento e Maria rapidamente enxuga os olhos para que
seu Filho não veja suas lágrimas. Mas Jesus não despertou. Ele somente
mudou a posição do rosto, virando-se para o outro lado, e Maria também
retoma sua imobilidade e sua vigília.
596.27Mas alguma coisa está fazendo estremecer o coração de Maria. É
que Ela percebe que o seu Jesus chora durante o sono e, com um murmúrio
confuso, porque Ele está falando com a boca apoiada sobre o braço e a
roupa, murmura o nome de Judas…
Maria se levanta, aproxima-se, inclina-se sobre o Filho, acompanha
aquelas palavras confusas com as mãos apertadas sobre o coração, porque,
desconexo mas não de tal modo que não totalmente que impeça a
compreensão, as palavras de Jesus dão a entender que Ele está sonhando, e
tornando a sonhar, com o presente e o passado, e também com o futuro, até
que Ele desperta com um sobressalto, como quem quer escapar de alguma
coisa horrenda. Mas o que Ele encontra é o peito de sua Mãe, os braços de
sua Mãe, o sorriso de sua Mãe, a doce voz de sua Mãe, o seu beijo, suas
carícias, o roçar ligeiro do seu véu passado sobre o rosto para enxugar as
lágrimas e o suor, enquanto lhe vai dizendo:
– Tu estavas em uma posição incômoda, e estavas sonhando… Estás
suado e cansado, meu Filho.
E põe em ordem seus cabelos descompostos, enxuga-lhe o rosto e o
beija, conservando-o cingido por seu braço, apoiado ao seu coração, porque
não pode mais elevá-lo até seu seio, como quando Ele era pequeno.
Jesus lhe sorri, dizendo:
– Tu és sempre minha Mãe. A Mãe que consola. A que me satisfaz em
tudo. A minha Mãe!
E Ele a faz sentar-se perto dele, deixando a mão em seu colo, e Maria
segura aquela mão longa, tão senhoril, mas também tão robusta, mão de
operário, segura pelas suas pequeninas mãos, acaricia os dedos dela e as
costas, alisando-lhe as veias, que estavam inchadas por terem ficado
penduradas durante o sono. E procura distraí-lo…
596.28– Nós viemos. Aqui estamos todas. Também Valéria. As outras
estão perto da Fortaleza Antônia. Assim quis Cláudia, “que está muito
entristecida”, diz a liberta. Disse, não sei por que motivo, que ela tem o
presságio de muito choro. São superstições!… Só Deus sabe o futuro…
– Onde estão as discípulas?
– Lá, na entrada dos jardins. Marta quis preparar-te alimentos e bebidas
refrescantes e fortificantes, pensando em quanto te esgotas. Mas eu, olha,
isto sempre te agrada, e eu te trouxe. É a minha parte. É melhor porque é de
tua Mãe.
E lhe mostra um pouco de mel e uma pequena fogaça de pão sobre o
qual ela passa o mel, dando-o ao seu Filho, e dizendo:
– Como em Nazaré, quando descansavas nas horas de maior calor, e
depois acordavas e eu vinha da gruta fresca trazendo coisas assim…
E ela para de falar porque sua voz fica trêmula.
Seu Filho olha para ela e depois diz:
– E quando José era vivo, para nós dois tu trazias coisas assim e a água
fresca da moringa porosa, conservada sempre na correnteza para que
estivesse sempre fresca, e mais fresca a tornavam as folhas de hortelã
selvagem que colocavas dentro dela. E quanta hortelã havia por lá, por
baixo das oliveiras! E quantas abelhas sobre as flores da hortelã! O nosso
mel tinha sempre um pouco daquele perfume…
Pensa… Fica recordando…
– Nós vimos Alfeu, sabes? José chegou atrasado porque estava com um
filho um pouco doente. Mas amanhã certamente ele estará aqui com Simão.
Salomé de Simão toma conta da nossa casa e da casa de Maria.
596.29– Mãe, quando estiveres sozinha, com quem ficarás?
– Com quem Tu disseres, meu Filho. Eu te obedeci até mesmo antes de
ter-te, Filho. Continuarei a fazer assim quando me tiveres deixado.
Sua voz está trêmula, mas ela tem um sorriso heroico sobre os lábios.
– Tu sabes obedecer. Que descanso é estar contigo! Porque, olha, minha
Mãe. O mundo não pode compreender isso, mas Eu encontro um grande
repouso estando junto com os obedientes. Sim. Deus descansa estando com
os obedientes… Deus não teria tido que sofrer nem que se cansar, se a
desobediência[135] não tivesse entrado no mundo.
Todo mal acontece porque não se obedece. Por isso é que existe dor no
mundo… Por isso é que temos a nossa dor.
– Mas também a nossa paz, Jesus. Porque nós sabemos que nossa
obediência consola o Eterno. Oh! Para mim, especialmente, quanto vale
este pensamento! Foi concedido a mim, uma criatura, consolar o meu
Criador!
– Oh! Alegria de Deus! Tu nem sabes, ó nossa Alegria, o que é para
Nós essa tua palavra! Ela está acima das harmonias dos coros celestes…
Bendita! Bendita és tu que me ensinas a última obediência, e a tornas para
mim tão agradável de cumprir-se com este pensamento!
– Tu não precisas de que eu te ensine, meu Jesus. Tudo eu aprendi de
Ti.
– Tudo aprendeu de ti o Jesus de Maria de Nazaré, o Homem.
– Era a tua luz a que saía de mim. A Luz que és Tu, e que vinha à Luz
Eterna que se aniquilara vestida de homem… 596.30Contaram-me os irmãos
de Joana o discurso que pronunciaste. Eles estavam fora de si, de tão
admirados. Foste forte com os fariseus…
– Chegou a hora das supremas verdades, minha Mãe. Para eles serão
verdades mortas. Mas para os outros serão verdades vivas. E com o amor e
com o rigor, Eu devo travar a última batalha para arrebatá-los das garras do
Mal.
– É verdade. Disseram-me que Gamaliel, que estava com os outros em
uma das salas dos pórticos, disse, no fim, enquanto muitos tinham ficado
inquietos: “Quando não queremos ser repreendidos, temos que agir como
justos”, e que, depois dessa observação, ele foi embora.
– Eu sinto prazer pelo rabi ter-me ouvido. Quem foi que te disse?
– Lázaro. E a ele quem disse foi Eleazar, que estava na sala com os
outros. Lázaro veio ao meio-dia. Ele apenas nos cumprimentou e logo
voltou sem ter dado atenção às irmãs, que queriam detê-lo lá até o pôr do
sol. Ele pediu para que João, ou outros, fossem apanharem aquelas frutas e
flores que já estão no ponto.
– Eu mandarei João amanhã.
– Lázaro vem todos os dias. Mas Maria se inquieta, porque, como ela
diz, parece uma aparição. Ele sobe até o Templo, dá ordens, e torna a partir.
– Também Lázaro sabe obedecer. Eu lhe dei esta ordem, porque armam
ciladas até para ele. Mas não digas isso às irmãs. Não vai lhe acontecer
nada. 596.31E agora vamos às discípulas.
– Não te movas. Eu as chamarei. Os discípulos estão todos dormindo…
– Nós os deixaremos dormir. De noite, eles pouco dormem, porque Eu
os estou instruindo na paz do Getsêmani.
Maria sai e volta com as mulheres, que parecem ter-se esquecido dos
seus pesos com aqueles passos tão ligeiros que estão dando.
Elas o saúdam com suas inclinações profundas, que são familiares
somente por parte de Maria de Cléofas.
E Marta tira uma ânfora suada de uma bolsa de bom tamanho, enquanto
Maria tira frutas frescas de Betânia de um vaso também poroso e dispõe
tudo sobre uma mesa, ao lado daquilo que sua irmã preparou, isto é, um
pombo assado na brasa, que está estalando e apetitoso, e pede a Jesus que o
aceite, dizendo-lhe:
– Come. Reconforta esse corpo. Eu mesma o preparei.
Joana, por sua vez, trouxe vinagre rosado. E ela explica:
– Ele refresca muito nestes primeiros dias de calor. Também o meu
esposo faz uso dele quando chega cansado de suas longas cavalgadas.
– Nós não trouxemos nada –se escusam Maria Salomé, Maria de
Cléofas, Susana e Elisa.
Também Nique e Valéria, por sua vez, dizem:
– Nós também, não. Não sabíamos que devíamos vir.
– Vós me destes todo o vosso coração. Para Mim isso basta. Mas ainda
me dareis…
Jesus come, mas mais do que qualquer outro é Ele que bebe da água
fresca misturada com mel, que Marta lhe serve da ânfora porosa, e as frutas
frescas, que são um bom alimento para o Afadigado.
As discípulas não falam muito. Mas o ficam olhando enquanto Ele se
refaz. Nos olhos delas há amor e cuidado. E, de repente, Elisa se põe a
chorar e se desculpa disso, dizendo:
– Eu não sei. Estou com o coração pesado de tanta tristeza…
– Todas nós estamos assim. Até Cláudia em seu palácio… –diz Valéria.
– Eu gostaria que já fosse Pentecostes –sussurra Salomé.
– Pois eu gostaria que o tempo parasse nesta hora –diz Maria de
Magdala.
– Tu serias egoísta, Maria –responde-lhe Jesus.
– Por que, Raboni?
– Porque quererias para ti somente a alegria da tua redenção. Há
milhares e milhões de seres que estão esperando essa hora, ou que nessa
hora esperam ser redimidos.
– É verdade. Eu nem pensava nisso…
E inclina a cabeça, mordendo os lábios, para não mostrar as lágrimas de
seus olhos e o tremor de seus lábios. Mas é sempre a forte lutadora, e diz:
– Se Tu vieres amanhã, poderás vestir de novo a veste que mandaste.
Está fresca e limpa, digna da Ceia pascal.
– Eu virei… 596.32Não tendes nada a dizer-me? Estais mudas e aflitas.
Será que Eu não sou mais Jesus?
E sorri para as mulheres, como quem as convida a falar.
– Oh! Sim, que és Tu. Mas estás tão grande nestes dias que eu nem sei
mais ver-te como aquele pequenino que eu tive em meus braços!
–exclama Maria de Alfeu.
– E eu também não te vejo mais como aquele simples rabi que entrava
na minha cozinha procurando João e Tiago –diz Salomé.
– E eu sempre te reconheci assim: como o Rei de minha alma!
–proclama Maria de Magdala…
E Joana, muito mansa e suave:
– Eu também. Para mim, Tu és o divino ser desde aquele sonho em que
apareceste a mim, que estava morrendo, e me chamaste à Vida.
– Tudo nos deste, Senhor. Tudo! –suspira Elisa, que resolveu falar.
– E tudo vós Me destes.
– Foi pouco demais! –dizem todas.
– Não cessarei de dar, depois que passar esta hora. Só cessará quando
estiverdes comigo no meu Reino. Sois minhas discípulas fiéis. Não vos
sentareis ao meu lado, sobre doze tronos, para julgar as doze tribos de
Israel, mas cantareis o hosana junto com os anjos, fazendo um coro de
honra à minha Mãe e, então, como agora, o coração do Cristo encontrará
alegria ao contemplar-vos.
– Eu sou jovem. Está longe o tempo de subir para o teu Reino. Feliz de
Anália! –diz Susana.
– Eu já estou velha e me sinto feliz por isso. Pois espero para breve a
morte –diz Elisa.
– Eu tenho os filhos. Quereria servi-los… pois são servos de Deus –
suspira Maria de Cléofas.
– Não te esqueças de nós, Senhor! –diz Madalena, com uma ansiedade
contida, com um grito de sua alma, eu diria, por causa da sua voz, que ela
procurou emitir suavemente para não despertar os que estavam dormindo,
mas que vibrou mais forte do que um grito.
– Não me esquecerei de vós. Eu virei. Tu, Joana, sabes que Eu posso
vir mesmo quando estou muito longe… As outras o devem crer. E Eu vos
deixarei uma coisa… um mistério que me conservará em vós e vós em Mim
até que estejamos reunidos, Eu e vós, no Reino de Deus. 596.33Agora ide.
Direis que vos falei pouco e que era quase inútil fazer-vos vir para tão
pouca coisa. Mas Eu desejei ter ao redor de Mim os corações que me têm
amado sem motivos interesseiros. E somente por causa de Mim. Por Mim.
Por Mim, Jesus. E não por causa de um futuro e sonhado Rei de Israel. Ide.
E sede benditas uma vez mais. As outras também. Elas não estão aqui, mas
pensam em Mim com amor: Ana, Mirta, Anastásica, Noemi, Síntique hoje
longe daqui, Fotinai, Aglaé e Sara, Marcela, as filhas de Filipe, Miriam de
Jairo, as virgens, as redimidas, as esposas, as mães que vieram a Mim e que
foram para comigo irmãs e mães, melhores, oh! muito melhores do que os
homens e até do que os melhores deles!… Todas, todas! Abençoo a todas.
A graça começa já a descer, a graça e o perdão, sobre a mulher, por esta
minha bênção. Ide…
Ele se despede delas, ficando só com sua Mãe, a quem diz:
– Antes do anoitecer estarei no Palácio de Lázaro. Eu preciso ver-te
ainda. E Comigo estará João. Mas Eu só quero a ti, ó Mãe, e as outras
Marias, Marta e Susana. Estou muito cansado…
– Ficaremos só nós. Adeus, meu Filho…
Eles se beijam… E se separam… Maria vai andando lentamente. Ela se
vira antes de sair. Vira-se antes de passar a pequena ponte. Torna a virar-se,
enquanto pode ver Jesus… parece que ela não pode se afastar dele…
596.34E Jesus fica sozinho de novo. Ele se levanta e sai. Vai chamar João
que está dormindo de bruços no meio das flores como um menino e lhe
entrega a pequena ânfora de vinagre rosado que Joana lhe trouxe, dizendolhe:
– De tarde, iremos à casa de minha mãe. Mas nós dois somente.
– Compreendi. E elas vieram?
– Sim. Mas achei melhor não despertar-vos…
– Fizeste bem. A tua alegria terá ficado maior. Elas sabem amar-te
melhor do que nós –diz, desconsolado, João.
– Vem comigo.
João acompanha.
– Que tens? –pergunta-lhe Jesus, quando já estão de novo na penumbra
verde formada pela cobertura, onde ainda se veem restos de comida.
– Mestre, nós somos muito maus. Todos nós. Não há obediência em
nós… e nem há desejo de estar contigo. Até Pedro e Simão saíram. Não sei
para onde. E Judas achou nisso mais uma ocasião para mostrar-se rixento.
– E Judas também foi embora?
– Não, Senhor. Ele não foi embora. Diz ele que não precisa disso e que
não tem cúmplices nos ardis de que nós usamos a fim de conseguirmos para
Ti uma proteção. Mas se Eu fui até Anás e se os outros se dirigiram aos
galileus por aqui residentes, não foi para fazer nenhum mal!… E eu não
creio que Simão de Jonas e Simão Zelotes sejam capazes de usar desses
modos traiçoeiros…
– Não te preocupes. De fato, Judas não precisa ir enquanto vós estais
descansando. Ele sabe muito bem quando e aonde deve ir, e assim fazer o
que deve.
– E, então, por que é que ele fala assim? Isso não é bonito, nem fica
bem diante dos discípulos!
– Não é bonito. Mas assim é. 596.35Fica sossegado, meu cordeiro.
– Eu, teu cordeiro? Cordeiro és Tu somente!
– Sim. Tu. Eu sou o Cordeiro de Deus, e tu, cordeiro do Cordeiro de
Deus.
– Oh!!! Uma vez, foi nos primeiros dias em que eu estava contigo, tu
me disseste essa palavra. Estávamos nós dois sozinhos, como agora, sobre
os campos verdes, como agora, e nesta mesma bela estação.
João, mais alegre pela lembrança que voltou, murmura:
– Eu sou sempre o cordeiro do Cordeiro de Deus…
Jesus o acaricia. E lhe oferece uma parte do pombo assado, que ficou
sobre a mesa, sobre uma folha de pergaminho em que ele estava
embrulhado. E depois descobre uns figos suculentos e os oferece alegre, por
ver que ele os come. Jesus está sentado de viés à beira da mesa e olha para
João tão fixamente, que ele pergunta:
– Por que me ficas olhando assim? Será porque eu estou comendo
como um guloso?
– Não. É porque tu és uma criança. Oh! Meu querido! Como Eu te amo,
por causa do teu coração!
E Jesus se inclina para beijar o apóstolo sobre os seus cabelos louros, e
lhe diz:
– Fica assim, sempre assim, com o teu coração sem orgulho e sem
rancores. Fica assim até mesmo nas horas da ferocidade desenfreada. Não
imites quem peca, meu menino.
596.36João sente-se de novo invadido pelo desgosto, e diz:
– Mas eu não posso crer que Simão e Pedro…
– Tu te enganarias muito se cresses que eles são pecadores. Bebe. É boa
e fresca esta bebida. Foi Marta que a preparou… Agora estás reconfortado.
Tenho certeza de que tu não havias terminado a tua refeição…
– É verdade. Tinha-me vindo uma vontade de chorar. Porque, enquanto
é o mundo que nos rodeia, ainda se compreende. Mas que um de nós fique
insinuando…
– Não fiques pensando mais nisso. Eu e tu sabemos que Simão e
Zelotes são dois homens honestos. E basta. Mas, infelizmente, tu sabes que
Judas é um pecador. Mas, cala-te. Quando tiverem passado muitos, muitos
lustros, e será justo dizer toda a grandeza da minha dor, então aí tu dirás
também o que Eu sofri por causa das ações daquele homem, mais do que
por aquelas daquele apóstolo. Vamos. Já é hora de deixar este lugar a fim de
irmos para o Campo dos Galileus e…
– Passaremos esta noite também lá? E não iremos antes ao Getsêmani?
Judas queria saber disso. Ele diz que está cansado de tanto andar sob o
orvalho, e com um repouso curto e incômodo.
– Logo isso acabará. Mas Eu não direi a Judas quais são as minhas
intenções…
– Não és obrigado a isso. Tu é que nos deves guiar e não nós a Ti.
João está tão longe de pensar numa traição, que não compreende nem
mesmo a razão da prudência pela qual Jesus, há já alguns dias, não tem dito
mais o que é que pensa em fazer.
596.37Ei-los em meio aos que estão dormindo. E eles os chamam, e os
que estão deitados despertam. Também lá está Manaém que, tendo
terminado sua tarefa, vai escusar-se com o Mestre por não poder ficar e
porque amanhã não poderá estar perto dele no Templo, pois deve
permanecer no Palácio. E, ao dizer isso, olha fixamente para Pedro e Simão,
que nesse entremeio chegaram, e Pedro faz um sinal rápido com a cabeça,
como quem diz: “Entendido.”
Saem dos jardins. Ainda está fazendo calor. Ainda tem sol. Mas a brisa
da tarde já vai temperando o calor e empurrando umas nuvenzinhas por
sobre o céu limpo.
Eles se encaminham, subindo por Siloé e evitando os lugares dos
leprosos, para os quais vai-se dirigindo Simão, o Zelotes, para levar aos que
ainda estão vivos, e não souberam crer em Jesus, os restos da refeição.
596.38Matias, o ex-pastor, aproxima-se de Jesus e lhe pergunta:
– Senhor e Mestre meu, eu pensei muito, com os companheiros, nas
tuas palavras, até que o cansaço tomou conta de nós e nós dormimos antes
de termos podido resolver o problema que nos pusemos. E agora estamos
mais ignorantes do que antes. Se é que entendemos bem as pregações destes
últimos dias, Tu predisseste que muitas coisas mudarão, ainda que a Lei
permaneça imutável, e que se deverá edificar um novo Templo com novos
profetas, sábios e escribas, contra o qual se levantarão batalhas, mas que
não morrerá, enquanto que este, se é que compreendemos bem, parece
destinado a morrer.
– Está destinado a morrer. Lembra a profecia[136] de Daniel…
– Mas nós, que somos pobres e poucos, como poderemos edificá-lo de
novo, se até os reis tiveram que trabalhar muito para edificar este? Onde o
edificaremos? Certamente aqui, não, porque tu dizes que este lugar virará
um deserto, enquanto esses não te bendizerem como a um mandado por
Deus.
– Assim é.
– Em teu Reino, não. Porque estamos convictos de que o teu Reino é
espiritual. E, então, como e onde o estabeleceremos? Ontem Tu disseste que
o verdadeiro Templo — e não é aquele o verdadeiro Templo? — disseste
que quando eles pensarem que o terão destruído, aí é que ele se levantará
triunfante aos olhos da Jerusalém verdadeira. Onde está ela? Há muita
confusão entre nós.
– Assim é. Que os inimigos destruam o verdadeiro Templo. Em três
dias Eu o levantarei de novo e ele não conhecerá mais a cilada, subindo
para onde o homem não lhe possa causar dano.
596.39Quanto ao Reino de Deus, ele está em vós, e por toda parte há
homens que creem em Mim. Por enquanto, estão espalhados, mas eles se
sucederão sobre a Terra através dos séculos. Depois ele será eterno, unido,
perfeito no Céu. Lá no Reino de Deus será edificado o novo Templo, isto é,
lá onde estão os espíritos que aceitam a minha doutrina, a Doutrina do
Reino de Deus, e que praticam os preceitos dele. E como será edificado, se
sois pobres e poucos? Oh! Na verdade, não são necessários o dinheiro e os
poderes para edificar o edifício da nova morada de Deus, individual ou
coletiva. O Reino de Deus está em vós. E a união de todos aqueles que terão
o Reino de Deus em si, de todos aqueles que terão Deus em si — Deus que
é a Graça. Deus que é a Vida. Deus que é a Luz. Deus que é
Caridade — será o grande Reino de Deus sobre a Terra, a nova Jerusalém,
que chegará a expandir-se por todos os confins do mundo, e que, completa e
perfeita, sem emendas, sem sombras, viverá eterna no Céu.
Como fareis para edificar o Templo e a cidade? Oh! Não sereis vós,
mas será Deus que edificará esses lugares novos. Vós teríeis somente que
dar-lhe vossa boa vontade. Boa vontade é permanecer em Mim. Viver a
minha doutrina é boa vontade. Estar unidos é boa vontade. Unidos a Mim
até formardes um só corpo que é nutrido, em cada uma de suas partes e
partículas, pela mesma seiva. Um único edifício que está apoiado sobre uma
única base e conservado unido por uma mística coesão. Mas como sem a
ajuda do Pai, que Eu vos ensinei a pedir e que Eu pedirei para vós antes de
morrer, vós não poderíeis estar na Caridade, na Verdade, na Vida, isto é,
ainda em Mim e comigo em Deus Pai e em Deus Amor, porque Nós somos
uma única Divindade, por isso Eu vos digo que tenhais a Deus em vós, para
poderdes ser o Templo que não conhecerá fim. Por vós mesmos não o
poderíes fazer. Se Deus não edifica, e não pode edificar onde não pode ter a
sua morada, inutilmente os homens se agitam para edificar e reedificar.
396.40O Templo novo, a Minha Igreja, surgirá somente quando o coração
hospedar Deus e Ele convosco, como pedras vivas, edificará a sua Igreja.
– Mas Tu não disseste que Simão de Jonas é o Chefe dela, a pedra
sobre a qual se edificará a tua Igreja? E não nos fizeste compreender
também que Tu és a pedra angular dessa Igreja? Então, quem é o chefe
dessa Igreja? –interrompe Iscariotes.
– Eu sou o Chefe místico. E Pedro é o chefe visível. Porque Eu vou
voltar ao Pai, deixando-vos a Vida, a Luz, a Graça, pela minha Palavra,
pelos meus sofrimentos, pelo Paráclito, que será amigo daqueles que me
foram fiéis. Eu formo uma única coisa com a minha Igreja, meu corpo
espiritual, do qual Eu sou a Cabeça.
A cabeça contém o cérebro, a mente. A mente é a sede do saber, o
cérebro é que dirige os movimentos dos membros por meio de seus
comandos imateriais, os quais são mais válidos para fazer que se movam os
membros do que qualquer outro estímulo. Observai um morto, no qual o
cérebro morreu. Terá ele algum movimento em seus membros? Observai
alguém que seja completamente estúpido. Não é verdade que ele é tão
inerte, que não saiba ter nem aqueles movimentos mais rudimentares e
instintivos, que até o mais inferior dos animais, que até o verme, que nós
esmagamos, tem? Observai alguém no qual a paralisia desfez o contato dos
membros, de um ou mais membros, com o cérebro. Terá ele ainda
movimento naquela parte que não tem mais ligação vital com a cabeça?
Mas se a mente dirige com os seus comandos imateriais os outros
órgãos, são os outros órgãos — os olhos, os ouvidos, a língua, o nariz, a
pele — que comunicam as sensações à mente; e são as outras partes do
corpo que executam e fazem executar aquilo que a mente ordena, advertida
pelos órgãos, materiais e visíveis quanto o intelecto é invisível. Poderia Eu,
sem dizer-vos: “sentai-vos”, conseguir que fiqueis sentados neste lado do
monte? Mesmo que Eu queira que vos sentais, vós não o sabeis enquanto
Eu não traduzir o meu pensamento em palavras, e, então, Eu as digo,
usando para isso a língua e os lábios. Eu mesmo poderia sentar-me, se eu
ficasse somente pensando que estou sentindo o cansaço das pernas, se elas
não quisessem dobrar-se e não me pusessem assim sentado? A mente tem
necessidade dos órgãos e dos membros para poder fazer e executar as
operações que o pensamento pensa.
Assim também é no corpo espiritual, que é a minha Igreja: Eu serei o
Intelecto, isto é, a cabeça, que é a sede do intelecto, e Pedro com os seus
colaboradores são os que observam as reações, percebem as sensações e as
transmitem à mente, a fim de que ela ilumine e organize o que é preciso
fazer para o bem de todo o corpo; depois, iluminados e guiados por uma
ordem minha, possam falar e guiar as outras partes do corpo. A mão que
afasta um objeto que pode ferir o corpo, ou afasta o que está corrompido ou
pode corromper; o pé que passa por cima de um obstáculo sem esbarrar
nele, sem cair nem ferir-se, todas essas partes receberam da parte que dirige
a ordem de fazê-lo. O menino, e até o homem, que se salvou de um perigo,
ou que há uma vantagem de qualquer tipo — instrução, bons negócios,
casamento, boa aliança graças a um bom conselho recebido, ou para uma
boa palavra dita — é por aquele conselho e por aquela palavra que não se
prejudicou ou que se beneficiou. Assim será na Igreja. O chefe e os chefes,
guiados pelo Divino Pensamento e iluminados pela Divina Lei, instruídos
pela Palavra Eterna, darão as ordens e os conselhos, e os membros os porão
em prática e obterão a saúde espiritual e uma vantagem espiritual.
596.41A minha Igreja já é assim, porque já possui o seu Chefe
sobrenatural e o seu Chefe divino, e tem os seus membros, que são os
discípulos. Ela é ainda pequena, por enquanto — é como um germe que se
forma — perfeita unicamente no Chefe que a dirige, e imperfeita no resto,
que ainda tem necessidade de um toque de Deus para ficar perfeita, e do
tempo para crescer. Mas em verdade Eu vos digo que Ela já o é, e que é
Santa por Aquele que é seu Chefe e pela boa vontade dos justos que a
compõem. É Santa e invencível… Contra ela se apresentará, uma e mil
vezes e com mil formas de batalha, o inferno feito de demônios e de
homens-demônios. Mas não prevalecerão. O edifício será firme.
Mas o edifício não é feito de uma só pedra. Observai o Templo, lá,
vasto, belo ao sol que se põe. É feito, talvez, de uma só pedra? É um
complexo de pedras que formam um todo único e harmônico. Ele se chama:
o Templo. Ou seja, uma unidade. Mas essa unidade é feita das muitas
pedras que a compuseram e formaram. Teria sido inútil fazer os
fundamentos se eles não tivessem depois que sustentar as paredes e o teto,
se sobre eles não se tivesse que erguer as paredes para sustentarem o teto, se
antes não tivessem sido feitos, em primeiro lugar, os fundamentos sólidos e
proporcionais para uma construção maciça e de grandes dimensões. Assim,
com esta dependência das partes uma da outra, é que surgirá também o
Templo novo. Pelos séculos vós o edificareis, apoiando-o sempre sobre os
fundamentos que Eu lhe dei, perfeitos, e nas proporções requeridas por sua
amplidão. Vós o edificareis sob a direção de Deus, servindo-vos das coisas
a serem usadas para levantá-lo: espíritos que são a morada de Deus.
Deus mora nos vossos corações, para fazer deles pedras polidas e sem
fendas para um templo novo. Será o seu Reino estabelecido com as suas leis
no vosso espírito. Senão, vós seríeis como tijolos mal cozidos, madeira
carunchada, pedras lascadas e quebradiças que não têm consistência, e que
o construtor, se for experiente, rejeita; ou então falham, não resistem à
pressão, fazendo que uma parte desmorone se o construtor, se os
construtores colocados pelo Pai na construção do Templo, são construtores
ídolos de si mesmos, que se pavoneiam em seus corações, sem vigiarem e
se esforçarem na construção que vai se levantando e com os materiais
usados nela. São construtores ídolos, mestres de obras ídolos, guardas
ídolos, são todos eles uns ladrões! Ladrões da confiança de Deus e da
estima dos homens, ladrões e orgulhosos, que só se comprazem em terem
um meio de vida e um modo para obterem um monte de materiais, que eles
não observam se são bons ou já de qualidade vencida, e que pode ser causa
de ruína.
596.42Vós, ó sacerdotes novos e escribas do Templo novo, escutai: Ai de
vós e de quem vier depois de vós, de quem se fizer ídolo e não tomar
cuidado, não supervisar a si mesmo e aos outros, os fiéis, a fim de observar
bem a boa qualidade das pedras e da madeira, sem confiar nas aparências, e
poderá causar ruínas, deixando que materiais já deteriorados, ou até mesmo
nocivos, sejam usados na construção do Templo, dando assim escândalo e
provocando a ira divina. Ai de vós, se deixardes que se formem fendas e
paredes pouco seguras, tortas, que podem cair porque não estão bem
equilibradas nas bases sólidas e bem feitas. Não é de Deus, o Fundador da
Igreja, mas é de vós que viria o desastre, e dele seríeis responsáveis diante
do Senhor e dos homens.
Diligência, observação, discernimento, prudência. A pedra, o tijolo, a
viga fraca, que em uma parede interna poderiam ser causa de tombamento,
podem servir em partes de menor importância na construção e até a servir
bem. É assim que deveis saber escolher. Com caridade para não desgostar
as partes fracas, mas com firmeza, para não desgostar a Deus e arruinar o
seu Edifício. E se achais que uma pedra em um ângulo mestre não é boa ou
não está bem equilibrada, sede corajosos, ousados, e procurai saber como
tirá-la daquele lugar, e alinhai-a com o escopo de um santo zelo. Se ela grita
de dor, não faz mal. Ela vos abençoará durante os séculos, porque vós a
tereis salvado. Removei-a dali e empregai-a em outro trabalho. Não tenhais
medo nem de afastá-la completamente se virdes que ela vai ser causa de
escândalo e de ruína, rebelde ao vosso trabalho. É melhor haver pouca
pedra, do que muito estorvo.
Não tenhais pressa. Deus nunca tem pressa, mas tudo o que Ele cria é
eterno, porque é bem calculado antes de ser feito. Se não é eterno, dura
tanto como os séculos. Olhai para o Universo. Há muitos séculos, há
milhares de séculos, ele está como Deus o fez em operações sucessivas…
Imitai o Senhor. Sede perfeitos como vosso Pai. Tende a sua Lei em vós, o
seu Reino em vós. E não falhareis.
Mas, se não fôsseis assim, desabaria o edifício, e em vão teríes
trabalhado para erigi-lo. Desabaria ficando dele apenas a pedra angular, os
fundamentos… A mesma coisa acontecerá com aquele Templo!… Em
verdade Eu vos digo que com aquele ali vai ser assim mesmo. E assim será
com o vosso, se puserdes nele o que pusestes neste: partes estragadas pelo
orgulho, pela avidez, pelo pecado, pela luxúria. Como se desfez, pelo sopro
do vento, aquela coluna de nuvens que parecia estar parada, formando uma
vista tão bonita acima do cume daquele monte, do mesmo modo, ao soprar
de um vento de castigo sobrenatural e humano, desabarão os edifícios, que
de santos só têm o nome…
596.43Jesus se cala pensativo. E quando começa a falar de novo, é para
dar esta ordem:
– Sentemo-nos aqui, para repousarmos um pouco.
Eles se assentam sobre um declive do Monte das Oliveiras, que fica à
frente do Templo, agora beijado pelo Sol, que já vai se pondo. Jesus olha
fixamente para aquele lugar com tristeza. Os outros exultam por verem
aquela beleza, mas sobre aquela exultação logo se estende um véu de
aflição pela lembrança das palavras do Mestre. Será que toda aquela beleza
vai ter que acabar?
Pedro e João falam um com o outro, e depois passam a sussurrar
alguma coisa a Tiago de Alfeu e a André, que estão perto deles, e eles
concordam fazendo um sinal com a cabeça. Então, Pedro se vira para o
Mestre e diz:
– Vem aqui de lado e explica-nos quando é que se cumprirá a tua
profecia sobre a destruição do Templo. Daniel fala nela, mas, se for como
ele diz e como Tu dizes, poucas horas terá ainda o Templo. Mas nós não
estamos vendo exércitos nem preparativos de guerra. Quando será, então,
que isso acontecerá? Qual será o sinal disso? Tu já vieste. E Tu dizes que
estás para ires embora. No entanto, sabe-se que isso só acontecerá quando
estiveres entre os homens. Então, Tu voltarás? Quando é que será a tua
volta? Explica-nos isso para que fiquemos sabendo…
– Não há necessidade de irmos para outro lado. Estás vendo? Os
discípulos mais fiéis ficaram, aqueles que a vós doze ajudarão muito. Eles
podem ouvir as palavras que Eu vos estou dizendo. Vinde todos para cá! –
grita por fim, para reunir todos.
Os discípulos, que estavam espalhados pelo declive, fazem agora uma
aglomeração compacta, apertada, ao redor do grupo que está com Jesus e os
apóstolos, e ficam escutando.
596.44– Tomai cuidado para que ninguém vos seduza no futuro. Eu sou o
Cristo e não haverá outros Cristos. Por isso, quando muitos vierem dizervos: “Eu sou o Cristo”, e estiverem seduzindo a muitos, não acrediteis em
suas palavras, nem que elas sejam acompanhadas por prodígios, embora
estes possam ser reconhecidos como não bons, porque sempre estarão
unidos ao medo, à perturbação e à mentira. Os prodígios de Deus, vós os
conheceis: eles dão uma santa paz, alegria e salvação, fé, e conduzem a
desejos e obras santas. Os outros, não. Por isso, refleti sobre a forma e as
consequências dos prodígios que podereis ver no futuro, por obra dos falsos
Cristos e de todos aqueles que se vestirão com vestes de salvadores dos
povos, mas que serão umas feras que os arruinarão.
Ouvireis também, e até vereis, falar de guerras e de rumores de guerra,
e vos dirão: “Estes são os sinais do fim.” Mas não vos perturbeis. Ainda não
será o fim. É necessário que tudo isso aconteça antes do fim, mas ainda não
será o fim. Levantar-se-á um povo contra outro, nação contra nação,
continente contra continente, e haverá pestilências, carestia e terremotos em
muitos lugares. Mas isso não será mais do que o princípio das dores. Então
vos lançarão no meio da tribulação e vos matarão, acusando-vos de serdes
os culpados pelos sofrimentos deles, esperando sair disso com a
perseguição e a destruição dos meus servos.
Os homens acusam sempre os inocentes de serem eles a causa do seu
mal, que os pecadores criam para si mesmos. Eles acusam o próprio Deus,
que é a Perfeita Inocência e a Bondade Suprema, de ser Ele a causa do
sofrimento deles; e assim também farão convosco, e vós sereis odiados por
causa do meu Nome. E será ainda Satanás que os está açulando. E surgirão
falsos profetas, que induzirão muitos ao erro. E ainda será Satanás o
verdadeiro autor de tantos males. E com a multiplicação da iniquidade, se
esfriará a caridade de muitos. Mas quem tiver perseverado até o fim, será
salvo. E é preciso que antes este Evangelho do Reino de Deus seja pregado
em todo o mundo, como um testemunho diante de todas as nações. Então,
virá o fim. Haverá uma volta de Israel ao Cristo, que o acolhe, e a pregação
da minha doutrina em todo o mundo.
596.45Depois virá um outro sinal. Um sinal do fim do Templo e do fim do
Mundo. Quando virdes a abominação da desolação predita por
Daniel — quem me ouve, procure entender bem, e quem lê o profeta, saiba
ler por entre as palavras — então, quem estiver na Judéia, fuja para os
montes, e quem estiver no terraço não desça para ir apanhar o que estiver
em casa, e quem estiver em seu campo não volte à sua casa para apanhar o
seu manto, mas fuja sem olhar para trás, a fim de que não lhe aconteça não
poder fazê-lo mais, e ele nem mesmo se vire para olhar, quando fugir, a fim
de não conservar no coração o espetáculo horrendo e enlouquecer por isso.
Ai das grávidas e daquelas que estiverem amamentando naqueles dias! E ai
delas, se a fuga tiver que ser em dia de sábado! Não seria bastante a fuga
para quem quisesse se salvar sem pecar. Rezai, pois, para que não aconteça
no inverno e em dia de sábado, porque a tribulação será grande, como
nunca houve desde o princípio do mundo até essa hora, nem haverá nunca
mais outra semelhante, porque essa será a última Se não fossem abreviados
aqueles dias em atenção aos eleitos, ninguém se salvaria, porque os
homens-satanases se aliarão ao inferno para atormentar os homens.
E já então, para corromper e arrastar para fora do caminho justo aqueles
que se conservarem fiéis ao Senhor, surgirão os que dirão assim: “O Cristo
está lá, o Cristo está aqui. Está em tal lugar. Ei-lo! É este!” Não creiais.
Ninguém creia, porque surgirão falsos Cristos e falsos profetas, que farão
prodígios e portentos tais que induzirão ao erro, se isso fosse possível, até
os eleitos, e ensinarão doutrinas em aparência tão consoladoras e boas que
seduziriam até os melhores, se com eles não estivesse o Espírito de Deus
que os iluminará sobre a verdade ou sobre a origem satânica de tais
prodígios e doutrinas. Eu vo-lo digo. Eu vo-lo ensino, para que vós possais
acautelar-vos. Mas não tenhais medo de cair. Se estiverdes de pé, firmes no
Senhor, não sereis arrastados às tentações e à ruína. Lembrai-vos disso que
Eu vos disse[137]: “Eu vos dei o poder de caminhar sobre serpentes e
escorpiões e sobre todo o poder do inimigo, e nada vos fará mal porque
tudo vos estará sujeito.” Eu vos faço lembrar também que para
conseguirdes isso, deveis ter Deus em vós, e deveis alegrar- vos, não porque
dominais as potências do mal e as coisas venenosas, mas porque o vosso
nome está escrito no céu.
596.46Permanecei no Senhor e em sua Verdade. Por isso ainda Eu vos
repito: qualquer coisa que vos disserem de Mim, não creiais. Somente Eu é
que disse a Verdade. Somente Eu é que vos digo que o Cristo virá, mas
quando chegar o fim. Por isso, se vos disserem: “Ele está lá no deserto”,
não vades lá. Se vos disserem: “Ele está naquela casa”, não lhes deis
atenção. Porque o Filho do homem, em sua segunda vinda, será semelhante
a um relâmpago que sai do nascente e chispa até o poente, em um tempo tão
breve como um piscar de olhos. E deslizará sobre o grande Corpo[138], que
logo se tornará um Cadáver, acompanhado de anjos luminosos, e por-se-á a
julgar. No lugar, seja onde for, em que estiver o corpo, lá se reunirão as
águias. E logo depois da tribulação daqueles últimos dias, da qual Eu já vos
falei — Eu falo agora do fim do tempo e do mundo e da ressurreição dos
ossos, coisas de que os profetas falam[139] — o sol escurecerá, a lua não
dará mais a sua luz e as estrelas do Céu cairão como bagos de uva que caem
de um cacho maduro demais, e que um vento tempestuoso sacode, e as
potências do Céu tremerão.
E, então, no firmamento escuro aparecerá, fulgurante, o sinal do Filho
do homem, e todas as nações da terra chorarão, e os homens verão o Filho
do homem vindo sobre as nuvens do Céu com grande poder e glória. E Ele
dará ordens aos seus anjos que ceifem e vindimem, que separem o joio do
trigo, que lancem as uvas na dorna, porque terá chegado o tempo da grande
colheita da semente de Adão, e não teremos mais necessidade de conservar
a esgalha nem a semente, porque não haverá mais a perpetuação da raça
humana sobre a terra morta. E dará ordens aos seus amigos para que ao alto
som das trompas, reúnam os eleitos dos quatro cantos da Terra, de uma
extremidade à outra do Céu, a fim de que estejam ao lado do Divino Juiz
para julgarem com Ele os últimos viventes e os ressuscitados.
596.47Da figueira aprendei esta semelhança: quando vedes que seus
ramos ficam tenros e soltam folhas, sabeis que o verão já vem perto. Assim
também, quando virdes todas essas coisas, ficai sabendo que o Cristo está
para chegar. Em verdade, Eu vos digo: não passará esta geração que não
me quis[140], antes que tudo isso aconteça.
A minha palavra não falha. O que Eu digo acontecerá. O coração e o
pensamento dos homens podem mudar, mas minha palavra não muda. O
céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. E, quanto ao
dia e a hora exata, ninguém os conhece, nem mesmo os anjos do Senhor,
mas somente o Pai.
596.48Como nos tempos de Noé, assim acontecerá na vinda do Filho do
homem. Nos tempos de antes do dilúvio, os homens comiam, bebiam, se
desposavam, se uniam, sem prestarem atenção ao sinal[141] no dia em que
Noé entrou na arca, e abriram-se as cataratas dos céus e o dilúvio submergiu
todos os seres vivos e todas as coisas. Assim também será quando for a
vinda do Filho do homem. Quando chegar a hora, dois homens estarão
perto um do outro no campo, e um será levado, enquanto o outro será
deixado. Duas mulheres estarão ocupadas em fazer girar a mó do moinho, e
uma delas será levada, a outra deixada. Isto é o que farão os inimigos aqui
na Pátria, e mais ainda os anjos que irão separar o trigo do joio, e não terão
tempo de se prepararem para o Julgamento pelo Cristo.
Vigiai, pois, porque não sabeis a que hora virá o Senhor. Pensai de novo
no seguinte: se o chefe da família soubesse a que hora viria o ladrão, ele
vigiaria e não deixaria que ele despojasse a sua casa. Portanto, vigiai e orai,
estai sempre preparados para a vinda, sem que os vossos corações fiquem
entorpecidos pelo abuso e a intemperança de todas as espécies e os vossos
espíritos estejam distraídos e obtusos para as coisas do Céu por causa dos
excessivos cuidados com as coisas da terra, e o laço da morte vos apanhe de
repente, quando estiverdes despreocupados. Porque, lembrai-vos bem, todos
tereis que morrer. Todos os homens, uma vez nascidos, devem morrer, e
nessa morte há uma particular vinda do Cristo, e em seguida um juízo, que
será repetido com todos juntos no dia da vinda solene do Filho do homem.
596.49Que será, então, que acontecerá ao servo fiel e prudente, que foi
posto pelo patrão a servir aos domésticos o alimento enquanto Ele estava
ausente? Feliz será ele se o seu patrão, ao chegar de repente, o encontrar
fazendo o que deve com diligência, com justiça e amor. Em verdade Eu vos
digo que Ele lhe dirá: “Vem, servo bom e fiel. Tu mereceste o meu prêmio.
Toma e administra todos os meus bens.” Ao contrário, se ele aparentava,
mas não era bom e fiel, e seu interior era mau, assim como no exterior ele
era hipócrita, pois logo que o patrão havia partido ele começou a dizer em
seu coração: “O patrão vai tardar a voltar! Vamos aproveitar este belo
tempo!”, e começar a bater em uns criados e a maltratar a outros, dandolhes pouca comida e pouco das outras coisas necessárias, a fim de poder ter
mais dinheiro para poder gastá-lo em folganças e com os bêbados, que é
que irá acontecer? Acontecerá que o patrão, ao chegar de repente, quando
aquele servo ainda estava pensando que o patrão estava longe, ao ver o mau
procedimento do servo, lhe tomará o dinheiro, o tirará do cargo e o
expulsará, como é de justiça, E assim, ele ficará naquela situação.
O mesmo acontece com o pecador impenitente, que não pensa que a
morte pode já estar perto e também perto o seu julgamento, e só procura
gozar e abusar desse gozo, dizendo: “Depois eu me arrependerei.” Em
verdade, Eu vos digo que ele não terá tempo de fazer isso e será condenado
a ficar no lugar onde há um tremendo horror, onde se ouvem as blasfêmias e
se veem o pranto e a tortura, e de lá ele só sairá para o Juízo Final, quando
tornará a revestir-se de sua carne ressuscitada para assim apresentar-se
completo ao Juízo Final, assim como foi completo o seu pecado durante a
sua vida terrena, e com corpo e alma ele se apresentará ao Juiz Jesus, que
ele não quis aceitar como seu Salvador.
596.50Todos estarão lá, acolhidos diante do Filho do homem. Uma
multidão incalculável de corpos restituídos, uns pela terra, outros pelo mar,
e recompostos todos, depois de terem virado cinza há muito tempo. E nos
corpos estarão os espíritos A cada carne que voltou ao seu esqueleto
corresponderá o seu espírito, aquele que a animou por algum tempo nesta
terra. E estarão todos aprumados diante do Filho do homem, que estará
esplendente em sua divina Majestade, sentado no trono de sua glória e
assistido pelos seus anjos.
E Ele separará os homens uns dos outros, pondo de um lado os bons e
do outro os maus, como um pastor que separa as ovelhas pondo-as à direita
e os cabritos à esquerda. E dirá com voz afável e com um semblante
benigno aos que, pacíficos e formosos, com uma beleza gloriosa no
esplendor do corpo santo, olharão para Ele com todo o amor de seus
corações: “Vinde, ó benditos de meu Pai, tomai posse do Reino preparado
para vós, desde o começo do mundo. Porque Eu tive fome e me destes de
comer, tive sede e me destes de beber, fui um peregrino e me hospedastes,
estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, estava prisioneiro e fostes
levar-me conforto.”
E os justos lhe perguntarão: “Quando foi, Senhor, que te vimos com
fome e te demos de comer, te vimos com sede e te demos de beber? Quando
foi que te vimos peregrino e te acolhemos, te vimos nu e te vestimos, te
vimos enfermo ou encarcerado e te fomos visitar?”
E o Rei dos reis lhes dirá: “Em verdade, Eu vos digo: Quando fizestes
uma daquelas coisas a um daqueles menores entre os meus irmãos, foi a
Mim que o fizestes.”
E depois o Juiz se voltará para aqueles que estiverem à sua esquerda e
lhes dirá, com um rosto sério e com uns olhares que serão como flechas que
fulminarão os réprobos, e em sua voz ressoará a ira de Deus: “Fora daqui!
Longe de Mim, ó malditos! Ide para o fogo eterno, preparado pelo furor de
Deus para o demônio e para os anjos das trevas e para aqueles que lhes
deram ouvidos, quando eles lhes falavam na libidinagem tríplice e obscena.
Eu tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber,
estive nu e não me vestistes, fui peregrino e me repelistes, estive doente e
encarcerado e não me visitastes. Porque vós só conhecíeis uma lei: a do
prazer do vosso eu.”
E eles lhe dirão: “Quando foi que te vimos com fome, com sede, nu,
peregrino, enfermo ou encarcerado? Em verdade, nós não te conhecemos.
Não estávamos presentes, quando estiveste sobre a Terra.”
E ele lhes responderá: “É verdade. Vós não me conhecestes. Porque
não estáveis lá presentes quando Eu estive sobre a Terra. Mas vós
conhecestes a minha Palavra e tivestes, no meio de vós, os esfaimados, os
sedentos, os nus, os doentes, os encarcerados. Por que é que não fizestes a
eles o que talvez teríeis feito a Mim? Pois quem disse que aqueles que Me
tiveram em seu meio fossem misericordiosos para com o Filho do homem?
Não sabeis que nos meus irmãos estou Eu e que onde estiver sofrendo um
desses meus irmãos menores sou Eu que lá estou, e que o que tiverdes
deixado de fazer a um desses meus irmãos menores foi a Mim que o
deixastes de fazer, a Mim, o Primogênito dos homens? Ide, e queimai em
vosso egoísmo. Ide, e que vos envolvam as trevas e o gelo, pois trevas e
gelo é o que fostes, mesmo conhecendo onde é que estava a Luz e o Fogo
do Amor.”
E eles irão para o suplício eterno, enquanto os justos entrarão na vida
eterna.
Estas são as coisas futuras…
596.51Agora, ide. E não vos separeis uns dos outros. Eu vou com João e
voltarei a vós lá pela metade da primeira vigília, para a ceia, e para irmos
depois às nossas instruções.
– Nesta tarde também? Todas as tardes faremos isso? Eu estou já
entorpecido pelas orvalhadas que apanhei. Não seria melhor entrar logo em
alguma casa hospitaleira? Estamos sempre por baixo de tendas! Sempre
acordados e nas noites que são frias e úmidas…
–lamenta-se Judas.
– Esta é a última noite. Amanhã… será diferente.
– Ah! Eu achava que quisesses ir para o Getsêmani todas as noites.
Mas, se é a última…
– Eu não disse isto, Judas. Eu disse que será a última noite que
passaremos no Campo dos Galileus todos juntos. Amanhã prepararemos a
Páscoa e consumiremos o cordeiro, e depois Eu vou sozinho rezar no
Getsêmani. E vós podereis ir fazer o que quiserdes.
– Mas nós viremos contigo, Senhor. Quando foi que tivemos vontade
de deixar-te? –diz Pedro.
– Tu, cala-te. Porque és o culpado. Tu e Zelotes não fazeis nada mais do
que ficardes esvoaçando para cá e para lá logo que o Mestre desaparece. Eu
tenho os olhos sobre vós. No Templo… no dia… nas tendas lá em cima… –
diz Iscariotes, alegre por estar denunciando.
– Basta! Se eles assim fazem, fazem bem. Mas não me deixeis
sozinho… Eu vo-lo peço…
– Senhor não fazemos nada de mal. Podes crer. As nossas ações são
conhecidas por Deus, e os seus olhares não se desviam delas com
desgosto –diz Zelotes.
– Eu sei. Mas é inútil. E o que é inútil pode ser prejudicial. Estai unidos
o mais que puderdes.
Depois Ele se vira para Mateus:
– Tu, meu bom cronista, repetirás[142] a eles a parábola das dez virgens
sábias e das dez estultas, e aquela do patrão que deu uns talentos a três dos
seus servos para que eles os fizessem render, e dois deles ganharam o
dobro, enquanto que o preguiçoso foi enterrar o seu. Tu te lembras?
– Sim, meu Senhor, exatamente.
– Então, repete-a para eles. Nem todos as conhecem. E mesmo que eles
a saibam, terão prazer em ouvi-la de novo. Passai, assim, em sábias
dissertações, o vosso tempo até à minha volta. Velai! Velai! Tende desperto
o vosso espírito. Aquelas parábolas são adequadas também ao que Eu disse.
Adeus. A paz esteja convosco.
Jesus toma João pela mão e se afasta com ele, indo rumo à cidade.
Os outros se dirigem para o Campo dos Galileus.
596.52Jesus diz:
– Colocarás aqui a segunda parte da muito cansativa Quarta-Feira
Santa. Noite (1945). Lembra-te de assinalar com tinta vermelha os pontos
que Eu te disse. Aquelas palavrinhas[143] iluminam. E muita luz para os que
a sabem ver.
[124] O primeiro, em: Deuteronômio 6,4-5. O segundo, em: Levítico 19,18.
[125] las palavras de Davi, que estão em: Salmo 51,18-19.
[126] Está escrito, em: Salmo 37,11.
[127] quando diz, in: Salmo 110,1.
[128] corrigida… Aliás, transcrevemo-la fiel e integralmente (come em 174.10) sem levar em consideração as correções de Maria
Valtorta na cópia datilografada, que consistem principalmente na supressão dos trechos iniciais, uma vez que são de caráter
pessoal e com alguma descrição repetida.
[129] horas tristes para a Pátria, como se lê em: Esdras 1-10; Neemias 1-13; 1 Macabeus 1-2.
[130] vos digo, como em 265.12 e 281.6.
[131] A Mulher, da qual se fala em Gênesis 2,22-23, mas com maior nexo em Gênesis 3,15 (portanto, II poderia estar escrito
erroneamente por III); a Virgem, da qual se fala em Isaías 7, 14; profetizou, em 21.5.
[132] o sangue do justo Abel, em Gênesis 4,8, ao de Zacarias, em 2 Crônicas 24,20-22. Já em 414.9.
[133] mais enquanto vós mesmos não disserdes, como em: Salmo 118,26.
[134] deve conhecer Jesus muito bem, o qual havia lhe curado uma perna, como se lê em 488.5.
[135] a desobediência, de Adão e Eva, contraposta à obediência de Jesus e da sua Mãe, foi tratada especialmente no capítulo 17 e
em 29.7/12, e é um tema recorrente (por exemplo, em 420.11, 515.3, 595.5, 606.1), sintetizado extraordinariamente nesse diálogo.
[136] profecia, que está em: Daniel 9,20-27.
[137] eu vos disse, em 280.2, onde a frase aqui transcrita entre aspas (e que aparece em Lucas 10,19) está só subentendida,
enquanto que ali se leem quase que textualmente as exortações que Jesus, logo depois, recorda aos discípulos: Recordo-vos…
[138] grande Corpo é a Terra, o mundo, como anota MV numa cópia datilografada.
[139] os profetas falam, como em: Ezequiel 37,1-14.
[140] que não me quis, esclarecimento acrescentado à palavra geração, falta nos Evangelistas: Mateus 24,34; Marcos 13,30;
Lucas 21,32. Explica que não se trata de “geração” no sentido estrito, e confirma aquilo que foi dito antes, nas últimas linhas de
596.44, isto è, que “chegará o fim” quando haverá o “retorno de Israel a Cristo, que o acolhe”. O mesmo conceito, por exemplo,
em 258.5 (últimas linhas), em 265.10 e em 580.5.
[141] sinal, isto è, como anota Maria Valtorta numa cópia datilografada: a ordem recebida por Noé de preparar a arca para salver
todas as espécies animais. Para essa e para outras citações de Noé e da sua arca (por exemplo, em 140.3, 176.3, 525.7)
direcionamos a: Gênesis 6-9.
[142] repetirás duas parábolas, que Jesus narrou em 206.2/6 e em 281.9, mas que o Evangelho de Mateus apresenta juntamente
com os discuros do presente capítulo.
[143] Aquelas palavrinhas, que Maria Valtorta contornou com sinais de lápis vermelho no manuscrito original, são além disso e
mandarei, e estão em cursivo em 596.20/21. Casos análogos em 577.11 e em 592.17.
597. Quarta-feira de noite no Getsêmani com os
apóstolos.
8 de março de 1945.
597.1– Eu vos disse: “Ficai atentos, vigiai e orai, para que não sejais
vencidos pelo sono.” Mas estou vendo que os vossos olhos cansados
querem fechar-se e que os vossos corpos, mesmo sem o quererdes,
procuram posições de descanso. Tendes razão, meus pobres amigos! O
vosso Mestre exigiu muito de vós nestes dias e vós estais muito cansados.
Mas daqui a poucas horas, só algumas horas, vos sentireis contentes por não
terdes perdido nem um momento para estardes perto de Mim. Estareis
contentes por não terdes recusado nada ao vosso Jesus. Em resumo, é esta a
última vez que Eu vos falo destas coisas tristes. Amanhã Eu vos falarei do
amor, e farei para vós um milagre todo de amor. Preparai-vos com uma
grande purificação para recebê-lo. Oh! Quanto é mais conforme ao meu Eu
falar de amor do que de castigo! Como é doce dizer: “Eu vos amo. Vinde.
Durante toda a minha vida, sonhei com esta hora!” Mas até falar em morte é
amor. É amor porque a morte, para aqueles que vos amam, é a suprema
prova de amor. É amor porque preparar os amigos queridos para a
desventura é uma previdência afetiva que deseja vê-los prontos e não
apavorados naquela hora. É amor porque confiar um segredo é uma prova
de estima, que se tem para com aqueles aos quais ele é confiado. 597.2Eu sei
que vós atormentastes com perguntas a João quando queríeis saber o que foi
que Eu lhe disse quando fiquei sozinho com ele. E não acreditastes que não
houve palavras entre nós. Mas assim foi. Para Mim bastou ter perto uma
criatura…
– Então, por que havia de ser ele e não outro? –pergunta Iscariotes. E
pergunta com uma arrogância cheia de ira.
Até Pedro, e com ele Tomé e Filipe dizem:
– Sim. Por que a ele, e não aos outros?
Jesus responde a Iscariotes:
– Terias gostado que fosses tu? E podes pretender isso?
597.3Era aquela uma fresca e serena manhã do mês de Adar… Eu era um
desconhecido viandante que ia pela estrada de perto do rio… Cansado,
empoeirado, pálido por estar em jejum, com a barba descuidada, as
sandálias rotas, parecendo um mendigo pelos caminhos do mundo… Ele me
viu… E me reconheceu como sendo aquele sobre o qual havia descido a
Pomba do fogo eterno. Naquela minha primeira transfiguração, certamente
um raio do meu divino esplendor deve ter-se manifestado. Os olhos abertos
pela Penitência do Batista e os olhos que foram conservados angelicais pela
Pureza, viram o que os outros não viram. E os olhos puros guardaram
aquela visão no tabernáculo de seu coração, e a encerraram como uma
pérola em um escrínio… Quando se levantaram, depois de terem estado
quase dois meses sobre[144] o esfarrapado viandante, a alma dele me
reconheceu… E Eu era o seu amor. O seu primeiro e único amor. E o
primeiro e único amor nunca se esquece. A alma percebe quando ele chega,
mesmo que ele se tenha afastado, e o percebe chegar vindo das distâncias
mais longínquas, e pula de alegria, desperta a mente, e esta desperta a carne,
para que todas participem do banquete da alegria de se encontrarem e de se
amarem. E com a boca tremente, ele me disse: “Eu te saúdo, ó Cordeiro de
Deus!”
Oh! Fé dos que são puros, como és grande! Como superas todos os
obstáculos! Ele não sabia o meu Nome. Quem era Eu? De onde é que Eu
vinha? Que é que Eu fazia? Era Eu pobre? Era sábio? Era ignorante? O que
faz, saber tudo isso pela fé? Aumenta ou diminui por saber? Ele acreditava
em tudo o que havia dito o Precursor. Como uma estrela que transmigra de
uma para outra parte do céu, ele se havia separado do seu céu, o Batista,
saído de sua constelação e ido para o seu novo céu, o Cristo, da constelação
do Cordeiro. Ele não é a estrela maior, mas é a mais bela e pura da
constelação do amor.
Passaram-se três anos desde aquele tempo. Estrelas e estrelinhas se
uniram e depois se afastaram da minha constelação. Umas se precipitaram e
morreram. Outras ficaram enfumaçadas por pesados vapores. Mas ele
permaneceu fixo com sua luz pura junto de sua Estrela Polar.
597.4Deixai-me olhar sua luz. Duas serão as luzes nas trevas do Cristo:
Maria e João. Mas quase não poderei vê-las, por tão grande que vai ser a
dor. Deixai que Eu imprima em minha pupila estes quatro íris, que são
fímbrias de Céu por entre cílios louros, para que Eu os leve comigo para
onde ninguém poderá ir, como uma lembrança de pureza. Todo o pecado!
Tudo sobre as costas do Homem! Oh! Oh! Essa gota de pureza!… Minha
Mãe! João! E eu… Os três náufragos que emergem do naufrágio de uma
humanidade no mar do Pecado!
597.5Será, então, a hora em que Eu, o rebento da estirpe de Davi, gemerei
o antigo suspiro[145] de Davi: “Meu Deus, volta- te para Mim. Por que me
abandonaste? De Ti me afastam os gritos dos delitos que Eu assumi em
lugar de todos… Eu sou um verme, e não mais um homem, sou o opróbrio
dos homens, o rebotalho da plebe.”
E ouvi Isaías: “Abandonei meu corpo aos perseguidores, as minhas
faces a quem me arrancava a barba, não retirei a face a quem me ultrajava e
me cobria de escarros.”
Ouvi de novo Davi: “Muitos novilhos me rodearam, muitos touros me
atacaram. Sobre Mim eles abriram suas bocas para me devorarem, como
leões que despedaçam e rugem. Eu me dissolvi como água.”
E Isaías completa: “Eu mesmo tingi as minhas vestes.” Oh! As minhas
vestes, Eu mesmo as tinjo, não com o meu furor, mas com a minha dor e o
meu amor por vós. Como as duas pedras chatas da prensa, eles me
comprimem e espremem o meu Sangue. Não sou diferente do cacho
prensado, que entrou todo bonito na prensa e depois vira uma papa
espremida, sem suco e sem beleza.
E o meu coração — Eu falo como Davi — “torna-se como a cera e se
derrete dentro do meu peito.” Oh! Coração perfeito do filho do homem, que
te tornaste agora? Estás parecido com aquele que uma longa vida de folia
faz que fique desfeito e sem vigor. Todo o meu vigor se esgotou. Minha
língua está pegada ao céu da boca por causa da febre e da agonia. E a morte
me pega de surpresa com suas cinzas que asfixiam e cegam.
E ainda não há piedade! “Um bando de cães me cerca e me morde.
Sobre as feridas recebo outras mordidas. Por cima das mordidas, as
bordoadas. Nenhuma parte de meu corpo fica sem dor. Meus ossos rangem,
deslocados por um alongamento infame. Não sei onde apoiar o meu corpo.
A horrorosa coroa é um círculo de fogo que penetra na cabeça. Estou
pendurado pelas mãos e pelos pés transpassados. Elevado, apresento o meu
corpo ao mundo e todos podem contar os meus ossos…
597.6– Cala-te! Cala-te –soluça João.
– Não fales mais, que nos fazes entrar em agonia –suplicam os primos.
André não fala, mas pôs a cabeça entre os joelhos e chora sem fazer
barulho. Simão está lívido. Pedro e Tiago de Zebedeu parecem estar sendo
torturados. Filipe, Tomé, Bartolomeu parecem três estátuas de pedra, com
uma expressão de angústia.
Judas é uma máscara macabra, demoníaca. Parece um condenado que
finalmente compreendeu o que fez. Com a boca aberta por um urro que
quer sair de dentro dele, mas que continua fechado na garganta, tem os
olhos dilatados, cheios de pavor como os de um louco, com as faces cor de
terra por baixo do véu amorenado de uma barba curta, com os cabelos
despenteados, porque sempre os desarruma com a mão, suado e frio, parece
estar quase desfalecendo.
Mateus, tendo levantado o olhar a fim de procurar quem o ajude em seu
tormento, vê o que está acontecendo, e diz:
– Judas, estás mal?… Mestre, Judas está sofrendo!
– Eu também –diz Jesus–. Mas Eu sofro em paz. Tornai-vos espíritos, a
fim de poderdes suportar esta hora. Alguém que seja “carne” não poderá
vivê-la sem enlouquecer…
597.7Fala ainda Davi, ao ver as torturas do seu Cristo: “Ainda não estão
contentes e Me olham escarnecendo de Mim, repartindo entre si as minhas
vestes e tirando a sorte para ver quem vai ficar com minha túnica.” Eu é que
sou o malfeitor. É o direito deles.
Oh! Terra, olha o teu Cristo! Saiba reconhecê-lo, ainda que Ele esteja
tão desfigurado. Escuta, lembra-te das palavras de Isaías e procura
compreender o porquê, o grande porquê Ele ficou assim, e o homem foi
capaz de matá-lo, reduzindo a esse estado o Verbo do Pai. “Ele não tem
beleza nem esplendor. Nós o vimos. Não era de belo aspecto. E não o
amamos. Foi desprezado como o último dos homens, Ele, o Homem das
dores, acostumado a padecer, estava com o rosto escondido. Era
vilipendiado e nós não o consideramos por nada.” Sua beleza de Redentor
era essa máscara de torturado. Mas tu, ó Terra estulta, ainda preferias ver o
seu rosto sereno!
“Verdadeiramente Ele tomou sobre si os nossos males, carregou as
nossas dores. E nó s olhávamos para Ele como para um leproso, como para
alguém amaldiçoado por Deus, para um desprezado. E, no entanto, se ele
foi coberto de feridas, assim o foi por causa de nossas perversidades. Sobre
Ele caiu o castigo que estava reservado para nós, o castigo que nos deveria
pôr de novo em paz com Deus. Pelas suas feridas é que fomos salvos. Nós
éramos como ovelhas errantes. Cada um de nós se havia desviado do
caminho reto, e o Senhor pôs nas costas dele as iniquidades de todos.”
597.8Aquele, aqueles que pensam terem ajudado a si mesmos e a Israel,
tratem de desiludir-se. E também aqueles que julgam serem mais fortes do
que Deus. E também os que pensam que não terão que prestar contas por
este pecado só porque Eu me deixo matar de boa vontade. Eu faço a minha
santa tarefa, a perfeita obediência ao Pai. Mas isso não deixa de mostrar a
obediência deles a Satanás, e à suas tarefas nefandas.
Sim. O teu Redentor foi sacrificado porque Ele o quis, ó Terra. “Ele não
abriu a boca para dizer alguma coisa, pedindo para ser poupado, nem uma
palavra de maldição contra os seus assassinos. Como uma ovelhinha que se
deixou conduzir até o matadouro para ser morta, como um cordeirinho que
é levado a quem o vai tosquiar.”
“Depois da captura e da condenação, Ele foi levantado. Ele não terá
posteridade. Como uma planta, Ele foi cortado da terra dos vivos. Deus o
feriu por causa do pecado do seu povo. Não haverá na Terra alguém de sua
geração que se compadeça dele? Não terá filhos, esse que foi cortado em
sua vida na terra?”
597.9Oh! Eu te respondo, ó profeta, sobre o teu Cristo. Se o meu povo
não tiver compaixão do que foi morto sem culpa, os anjos do povo celeste
se compadecerão dele. Se a virilidade dele não terá filhos humanamente,
porque sua Natureza não podia encontrar união com carne mortal, Ele bem
que terá filhos, e filhos segundo um modo de gerar que não é o da carne e
do sangue animal, mas terá vida do amor e do Sangue divino, uma geração
do espírito pela qual há de ter uma prole eterna.
E Eu ainda te explico, ó mundo que não entendes o profeta, quem são
os ímpios levados à sepultura, e quem é o rico em sua morte. Olha, ó
mundo, olha se um só dos seus assassinos por acaso teve paz e longa vida!
Ele, o Vivente, em breve irá deixar a morte. Mas, como as folhas que o
vento do outono ajunta, uma por uma, nos sulcos, depois de tê-las arrancado
com repetidas sacudidas, um por um, todo eles serão depositados na ignóbil
sepultura que para ele havia sido destinada; e alguém que viveu pelo
ouro,poderia, se fosse lícito colocar o imundo onde esteve o Santo, poderia
ser colocado onde ainda estiver a umidade provinda das inumeráveis feridas
da Vítima que foi imolada sobre o monte. Tendo sido acusado sem ter
culpas, Deus faz as suas vinganças, pois nunca houve fraude em sua boca
nem iniquidade em seu coração.
597.10Consumido pelos sofrimentos. Mas da consumação terminada de
uma vida cortada em um sacrifício de expiação, terá início a sua glória entre
os membros da futura humanidade. Todos os desejos e as santas vontades
de Deus para com ele serão levados a efeito. Pelas ânsias de sua alma, verá
a glória do verdadeiro povo de Deus, e com isso ficará feliz. A sua doutrina
celeste, que Ele selará com o seu Sangue, será a justificação de muitos que
estão entre os melhores, e tirará a iniquidade dos pecadores. Por isso,
haverá uma grande multidão, ó terra, ao redor deste Rei desconhecido, do
qual os pérfidos zombaram e que os melhores não compreenderam. E Ele,
então, dividirá com os seus os despojos dos vencidos. Dividirá os despojos
dos fortes, como único Juiz dos três reinos e do Reino.
Tudo Ele mereceu, porque tudo deu. Tudo lhe será entregue, visto que
Ele entregou sua vida à morte e foi contado junto com os malfeitores. Ele
era sem pecado. Sem outro pecado, a não ser um perfeito amor, uma infinita
bondade. São duas culpas que o mundo não perdoa: um amor e uma
bondade que o levaram a tomar sobre Si os pecados de muitos, do mundo
todo, e a rezar pelos pecadores. Por todos os pecadores. Até por aqueles
pelos quais Ele foi condenado à morte.
597.11Terminei. Não tenho nada mais a dizer. Tudo está dito sobre o que
Eu queria dizer-vos das profecias messiânicas. Do nascimento até à morte,
Eu vo-las apresentei todas, a fim de que Me conhecêsseis e não ficásseis em
dúvida. E não tivésseis desculpas para o vosso pecado.
597.12Agora, vamos rezar juntos. É esta a última tarde em que podemos
rezar juntos, todos unidos como os bagos no cacho que os sustenta. Vinde.
Vamos rezar.
“Pai nosso que estás nos Céus, santificado seja o teu Nome. Venha o
teu Reino. Seja feita a tua vontade na Terra, como é feita no Céu. Dá-nos
hoje o pão nosso de cada dia. Perdoa-nos as nossas ofensas, como nós as
perdoamos aos que nos ofenderam. Não nos deixes cair em tentação, mas
livra-nos do mal. Amém.”
“Seja santificado o teu Nome.” Pai, Eu o santifiquei. Tem piedade do
teu Rebento.
“Venha o teu Reino.” Para fundá-lo é que Eu morro. Piedade de Mim.
“Seja feita a tua vontade.” Socorre a minha fraqueza, Tu que criaste a
carne do homem e dela revestiste o teu Verbo, para que Eu aqui embaixo te
obedeça como sempre te tenho obedecido no Céu. Tem piedade do Filho do
homem.
“Dá-nos o pão”… Um pão para a alma. Um pão não desta terra. Não é
para Mim que Eu o peço. E não tenho mais necessidade senão do teu
conforto espiritual. Mas por eles, Eu, como um Mendigo, te estendo a mão.
Daqui a pouco ela será transpassada e fincada, e não poderá mais fazer um
gesto de amor. Mas agora ainda pode. Pai, concede-me que Eu possa dar a
eles o Pão que cada dia fortifica a fraqueza dos pobres filhos de Adão. Eles
são fracos, ó Pai, são inferiores, porque não possuem o Pão, que é força, o
Pão dos anjos que espiritualiza o homem e o leva a ser divinizado em Nós.
“Perdoa-nos as nossas ofensas.”
Jesus, que até aqui falou de pé e rezou de braços abertos, agora se
ajoelha, levanta os braços e o rosto para o Céu, um rosto empalidecido pela
força feita ao suplicar, e pelo beijo da lua, acompanhado por um pranto
silencioso.
– Ao teu Filho perdoa[146], ó Pai, se em alguma coisa Ele faltou para
contigo. Diante de tua perfeição, posso até parecer imperfeito, Eu, o teu
Cristo, que a carne torna pesado. Aos homens… não. O meu intelecto
consciente me assegura que Eu fiz tudo por eles. Mas, Tu, perdoa ao teu
Jesus… Eu também perdoo. Quanto Eu tenho que perdoar!Quanto!… Mas
Eu perdoo. A estes aqui presentes, aos discípulos ausentes, aos surdos de
coração, aos inimigos, aos que escarnecem de Mim, aos traidores, aos
assassinos, aos deicidas… Aí está. Perdoei a toda a Humanidade. Por Mim,
ó Pai, considera anuladas todas as dívidas do homem para com o Homem.
Eu morro para dar a todos o teu Reino, e não quero que fique anotado para a
condenação o pecado contra o Amor Encarnado. Não? Tu dizes não? É a
minha dor. Esse “não” me infunde no coração o primeiro trago do cálice
atroz. Mas, ó Pai, a quem sempre obedeci, Eu te digo: “Seja feito como Tu
queres.”
“Não nos deixes cair em tentação.” Oh! Se Tu queres, podes afastar de
nós o demônio! Ele é a tentação que excita a carne, a mente, o coração. Ele
é o Sedutor. Afasta-o, ó Pai. Que o teu arcanjo esteja a nosso favor! Para
afugentar aquele que, desde o nosso nascimento até a morte, nos arma
ciladas!… Oh! Pai Santo, tem piedade dos teus filhos!
“Livra-nos, livra-nos do mal!” Tu o podes fazer. A nós que aqui
ficamos chorando… É tão belo o Céu e temos medo de perdê-lo. Tu dizes:
“O meu Santo não o pode perder.” Mas Eu quero que Tu vejas em Mim o
Homem, o Primogênito dos homens. Eu sou irmão deles. Eu rezo por eles e
com eles. Pai, piedade! Oh! Piedade!…
597.13Jesus se inclina para o chão. Depois se ergue:
– Vamos. Saudemo-nos nesta tarde. Amanhã pela tarde não nos será
mais possível… Nesta tarde ainda podemos ser um por todos e todos por
um.
E os beija, um por um, a começar por Pedro, depois Mateus, Simão,
Tomé, Filipe, Bartolomeu, Iscariotes, os dois primos, Tiago de Zebedeu,
André e, por último, João, ao qual depois Ele se apoiaa, enquanto vão
saindo do Getsêmani.
[144] quase dois meses sobre, como já foi esclarecido em 47.10.
[145] o antigo suspiro é o início de uma série de citações e alusões que enviam a: Salmo 22,2.7.13-19; Isaia 50,6; 53; 63,3.
[146] perdoa… O significado de tal pedido de perdão para Si foi ilustrado por Jesus mesmo em 44.13. Além disso, fica evidente
nesse contexto que Jesus-Homem não tem culpas que precisem ser perdoadas: “O meu intelecto cosciente me garante ter feito
tudo por eles”; e, no entanto, Ele assume sobre si o pedido de piedade e de perdão que deveria emanar de todo o gênero humano:
“Por Mim, ó Pai, considera anulado todo débito do homem ao Homem”.
598. Quinta-feira santa. Preparativos da Ceia
pascal.
A voz do Pai. O sinal combinado com o Traidor.
A manifestação do Pai e a homenagem dos
gentios.
3 de abril de 947.
598.1É uma nova manhã. Tão serena. Tão festiva! Não há mais nem
aquelas nuvens raras, que ontem vagavam lentamente por sobre o cobalto
do céu. Não há nem mesmo aquele mormaço pesado, que ontem estava tão
incômodo. Uma leve brisa está soprando sobre os rostos. E ela traz um
cheiro de flores, de feno, de ar limpo. Ela move levemente as folhas das
oliveiras. Fica parecendo querer mostrar o prateado das pequenas folhas
lanceoladas, espalhar flores pequeninas, alvas, cheirosas sobre os passos de
Cristo, sobre sua cabeça loura, beijá-lo, refrescá-lo — pois cada pequenino
cálice já tem a sua gotinha pequenina de orvalho — beijá-lo, refrescá-lo e
depois morrer para não ver o horror que está para chegar. E inclinam-se as
ervas dos declives, sacudindo de suas campainhas as corolas, as palmas de
mil flores.
Estrelas com coração de ouro, as grandes margaridas selvagens, que
estão altas sobre os caules, como que esperando para beijar-lhe a mão que
será transpassada; e as primaveras e as matricárias beijam seus pés
generosos, que pararão de andar para o bem dos homens só quando
estiverem pregados, a fim de darem um bem maior ainda; e as rosas caninas
soltam o seu perfume; e o pilriteiro, que já não tem mais flores, sacode suas
folhas denteadas. Parece que ele está dizendo: “Não, não” àqueles que o
querem usar para atormentar o Redentor. E “não” dizem também os caniços
do Cedron. Também eles não querem ferir, e o que querem são poucas
coisas, mas nada que faça mal ao Senhor. E talvez até as pedras dos
declives se felicitem por estarem fora da cidade, acima do olival, porque,
assim sendo, não ferirão o Mártir. E choram os frágeis convólvulos rosados,
que Jesus amava tanto, e os corimbos das acácias cândidas como cachos de
borboletas agarradas a um pedúnculo, e talvez pensando assim: “Nós não o
veremos mais.” E os miosótis, tão frágeis e puros, deixam cair sua corola,
ao tocar nela a veste purpúrea que Jesus vestiu de novo. Deve ser bonito
morrer, quando é uma coisa de Jesus que nos fere. Todas as flores, e até um
solitário lírio do vale, que talvez incidentalmente tenha caído e criado raízes
no meio das raízes expostas de uma oliveira, é feliz por ter sido notado e
colhido por Tomé, e ser por ele oferecido ao Senhor… E felizes são os mil
passarinhos que o saúdam com cantos de alegria. Oh! Os passarinhos, que
Ele sempre amou não dizem blasfêmias contra Ele! Até um rebanho de
ovelhas parece querer saudá-lo, ainda que elas estejam chorosas, longe
como estão de seus filhos, que foram vendidos para o sacrifício pascal. E
balindo com um lamento de mães, que atravessa os ares, chamam os seus
filhos que não voltarão mais, e vão roçar-se em Jesus, olhando para Ele com
o seu manso olhar.
598.2Ao verem as ovelhas, os apóstolos se lembram do rito pascal e
perguntam a Jesus, quando já estão quase chegando ao Getsêmani:
– Onde é que vamos consumar a Páscoa? Qual o lugar que tu escolhes?
Dize-o, e nós iremos preparar tudo –dizem eles.
E Judas de Keriot diz:
– Dá-me ordens e eu irei.
– Pedro e João, escutai-me.
Os dois, que iam um pouco à frente, aproximam-se de Jesus, que os
chamou.
– Ide à minha frente e entrai na cidade pela Porta do Esterco. Logo que
entrardes, encontrar-vos-eis com um homem que está voltando de En Rogel
com uma bilha daquela boa água. Acompanhai-o até que ele entre em uma
casa. E direis ao que mora nela: “O Mestre diz: Onde é o lugar em que
posso comer a Páscoa com os meus discípulos?” E ele vos mostrará um
grande cenáculo já preparado. Nele arrumai tudo. Ide sem demora e depois
reuni-vos todos no Templo.
Os dois partem a toda pressa. Jesus, ao contrário, age lentamente. A
manhã ainda está bem fresca e as estradas que vão para a cidade estão, por
enquanto, somente com os primeiros peregrinos. Eles vão atravessando o
Cedron pela pequena ponte que fica atrás de Getsêmani. Entram na cidade.
As portas, talvez por uma contra ordem de Pilatos, que, tendo sido
informado não haver contendas ao redor de Jesus, não estão sendo mais
vigiadas pelos legionários. De fato, reina a maior calma por toda parte.
598.3Oh! Não se poderá dizer que os judeus não souberam conter-se!
Ninguém molestou o Mestre nem os seus discípulos. Com gestos
obsequiosos e educados, ainda que não afetuosos, eles o saudaram, mesmo
se os que assim faziam eram os que mais o odiavam no Sinédrio. Uma
tolerância incomparável, depois do libelo de ontem.
E eis que, justamente agora, pois a casa de campo de Caifás fica bem
perto daquela porta, eis que justamente agora vai passando, vindo da casa,
um grande grupo de fariseus e de escribas, entre os quais estão o filho de
Anás e o de Elquias, com Doras e Sadoque, e é um dobrar de colunas em
saudações por parte desse grupo todo encapotado, num gesto de deferência
por entre as ondulações das vestes e das franjas, e dos amplos capuzes.
Jesus corresponde às saudações e passa, vestido com sua veste de lã
vermelha e com seu manto de cor mais escura, com o capuz feito por
Síntique na mão; o sol por sobre os seus cabelos acastanhados os faz
parecer dourados sob um véu brilhante e que lhe cai até os ombros. As
cabeças se erguem, depois da passagem dele e, então, os rostos deles
aparecem: são como hienas hidrófobas.
Judas de Keriot, que ficava sempre olhando ao redor de si com sua cara
de traidor, com a desculpa de afrouxar uma sandália, vai para a margem do
caminho e, eu o estou vendo bem, ele faz um sinal para eles o esperarem…
Ele deixa que o grupo de Jesus e dos discípulos vá em frente, sempre
ocupado com a fivela de sua sandália, procurando dar a impressão de que a
está amarrando, e depois, rapidamente, passa para o lado dos outros e diz
em voz baixa: “Na Porta Bela. Lá pela hora sexta. Um de vós”, e parte
velozmente, indo ajuntar-se aos seus companheiros. Descarado,
despudoradamente descarado!…
598.4Sobem para o Templo. São poucos os hebreus, por enquanto. Mas
são muitos os gentios. Jesus vai adorar o Senhor. Depois volta para trás e
manda a Simão e a Bartolomeu que vão comprar o cordeiro pedindo o
dinheiro a Judas de Keriot.
– Mas eu podia fazer isso! –diz Judas.
– Terás outra coisa a fazer. Tu bem sabes. Há aquela viúva à qual é
preciso levar o óbolo de Maria de Lázaro. Sabes onde ela está?
Compreendeste bem?
– Eu sei, eu sei! Quem me mostrou o lugar foi Zacarias, que a conhece
bem. Fico muito contente em poder ir. E mais do que por ir comprar o
cordeiro. Quando é que devo ir?
– Mais tarde. Não permanecerei muito aqui. Repousarei hoje, pois
quero estar forte para esta tarde e também para minha oração noturna.
– Está bem.
Eis, eu me pergunto: Jesus que havia ficado calado nos dias passados
sobre todos os seus propósitos, para não dá-los a conhecer a Judas, por que
será que agora os está dizendo e o que vai fazer à noite? A paixão já
começou com a cegueira quanto à previsão, ou, então, essa previsão é tão
grande que Ele está lendo nos livros dos Céus que essa será “a noite”, e que
por isso é necessário fazê-lo saber a quem espera sabê-lo para entregá-lo
aos inimigos, ou porque sempre soube que naquela noite é que vai iniciar-se
a sua imolação? Eu não sei encontrar a resposta. Jesus não me responde. E
eu fico com as minhas perguntas, enquanto observo Jesus que cura os
últimos doentes. Os últimos… Amanhã, daqui a poucas horas, Ele não o
poderá mais… A terra estará espoliada do poderoso Curador de corpos.
Mas a Vítima, sobre o seu patíbulo, começará a série, que não se interrompe
há vinte séculos, da cura dos espíritos.
598.5Hoje eu estou contemplando, mais do que descrevendo. O meu
Senhor faz que se projete diante de mim a vista espiritual, desde o que está
para acontecer neste último dia da liberdade para o Cristo, até o que vai
acontecer nos séculos… Hoje eu contemplo mais os sentimentos, os
pensamentos do Mestre, do que os acontecimentos ao redor Dele. Eu já
estou na contemplação angustiosa de sua tortura no Getsêmani…
598.6Jesus, como de costume, está oprimido pela multidão, que já
aumentou, e que agora em sua maior parte é de hebreus, e que se esquece de
se apressar para chegar ao lugar do sacrifício dos cordeiros, porque o que
ela quer é aproximar-se de Jesus, o Cordeiro de Deus, que está para ser
imolado. E ainda pergunta, e ainda quer explicações.
Muitos são os hebreus vindos da Diáspora, os quais, tendo sabido, pela
fama, do Cristo, do Profeta galileu, do Rabi de Nazaré, estão curiosos para
ouvi-lo falar e ansiosos por acabar com todas as dúvidas possíveis. E esses
querem maior espaço, e o suplicam aos da palestina, dizendo-lhes:
– Vós o tendes sempre convosco, vós sabeis quem Ele é. Tendes a
palavra dele quando quereis. Mas nós viemos de longe e temos que voltar
logo, depois de termos cumprido o preceito. Deixai-nos ir a Ele!
A multidão se abre com dificuldade para ceder lugar a estes. E estes se
aproximam de Jesus e o ficam observando curiosamente. Conversam uns
com os outros nas rodas que formaram.
Jesus os observa também e, ao mesmo tempo, escuta um grupo de
pessoas que veio da Pereia. Depois, tendo atendido a estas pessoas, que lhe
ofereceram dinheiro para os seus pobres, como também muitos outros o
fazem, Ele entrega o dinheiro a Judas, como sempre, e se põe a falar.
598.7– Iguais na mesma religião, mas diferentes quanto à proveniência,
muitos dos presentes estão perguntando: “Quem é o homem que é chamado
Nazareno?” E a esperança de uns e a dúvida de outros entram em choque.
Escutai[147] .
Assim foi dito de Mim: “Um rebento brotará da raiz de Jessé, e uma
flor virá dessa raiz, e sobre Ele repousará o Espírito do Senhor. Ele não
julgará por aquilo que aparece aos olhos, não condenará por aquilo que
chega a seus ouvidos, mas julgará com justiça os pobres e tomará a defesa
dos humildes. O rebento da raiz de Jessé, posto como um sinal entre as
nações, será invocado pelos povos, e o seu sepulcro será glorioso. Ele,
tendo levantado uma bandeira diante das nações, reunirá os prófugos de
Israel, os dispersos de Judá, e os recolherá dos quatro cantos da terra.”
De Mim está dito: “Eis que o Senhor Deus vem com poder e o seu
braço triunfará. Ele traz consigo a sua recompensa e tem diante de seus
olhos a sua obra. Como um pastor, Ele apascentará o seu rebanho.”
Está dito de Mim: “Eis o meu servo, com o qual Eu estarei e com o
qual a minha alma se compraz. Nele Eu difundi o meu espírito. Ele levará a
justiça entre as nações. Não gritará, não quebrará o caniço rachado, não
apagará a luz que está fumegando, fará justiça de acordo com a verdade.
Sem ser nem triste nem turbulento, chegará a estabelecer sobre a Terra a
justiça, e as ilhas estarão à espera de sua lei.”
Está dito a meu respeito: “Eu, o Senhor, te chamei na justiça, te tomei
pela mão, te preservei, fiz de ti aliança dos povos e luz das nações, para
abrir os olhos aos cegos e tirar do cárcere os prisioneiros e dos calabouços
aqueles que jazem nas trevas.”
Está dito sobre Mim: “O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque o
Senhor me ungiu para anunciar a Boa Nova aos mansos, para curar os que
têm o coração enfraquecido, para pregar a liberdade aos escravos, a
libertação aos prisioneiros, para pregar o Ano da Graça do Senhor.”
Está dito de Mim: “Ele é forte, apascentará o rebanho com a fortaleza
do Senhor, com a majestade do Nome do Senhor seu Deus. A Ele se
converterão, porque, desde já Ele será glorificado, até aos confins do
mundo.”
Está dito de Mim: “Eu mesmo irei à procura de minhas ovelhinhas. Irei
em busca das tresmalhadas, reconduzirei as que foram expulsas, cuidarei
das que tiverem fraturas, restaurarei as fracas, vigiarei as gordas e robustas,
as apascentarei com justiça.”
Está dito: “Ele é o príncipe da paz, e será a paz.”
Está dito: “Eis que vem o teu Rei, o justo, o Salvador. Ele é pobre,
cavalga um jumentinho. Ele anunciará a paz às nações. O seu domínio será
de mar a mar, até aos confins da Terra.”
Está dito: “Setenta semanas foram fixadas para o teu povo, para a tua
cidade santa, a fim de que seja eliminada a prevaricação, tenha fim o
pecado, seja cancelada a iniquidade, venha a eterna justiça, realizem-se as
visões e profecias, e seja ungido o Santo dos Santos. Depois de sete mais
sessenta e duas, virá o Cristo. Depois de sessenta e duas, Ele será morto.
Depois de uma semana, Ele confirmará o Testamento, mas no meio da
semana virão as vítimas e os sacrifícios, e haverá no Templo a abominação
da desolação, e durará até o fim dos séculos.”
598.8Faltarão, então, as vítimas naqueles dias? O altar não terá vítimas?
Haverá a grande Vítima. E eis como a vê o profeta: “Quem é esse homem
que vem com as vestes tingidas de vermelho? Ele é belo em sua veste e
caminha na grandeza de sua força.”
Mas, como é que Ele tingiu de púrpura a sua veste, se Ele é pobre? Eis
o que diz o profeta: “Abandonei o meu corpo aos que me batiam, as minhas
faces aos que me arrancavam a barba, não afastei o rosto de quem me
ultrajava. E a minha beleza e o meu esplendor se esvaíram, e os homens não
me amaram mais. Os homens me desprezaram e me consideraram o último
deles! O Homem das dores, o meu rosto será velado e maltratado, e olharão
para Mim como para um leproso, enquanto por todos eu serei ferido e
morto.”
Eis a vítima! Não temas, Israel! Não temas! Não está faltando o
Cordeiro pascal! Não temas, ó terra! Não temas! Eis aqui o Salvador Como
ovelha será levado ao matadouro, porque Ele o quis, e não abriu a boca para
maldizer os que o matam. Depois da condenação, Ele será levantado e
consumado em seus padecimentos, com os membros deslocados, os ossos
descobertos, os pés e as mãos transpassados. Mas, depois da aflição, com a
qual justificará a muitos, possuirá multidões, porque depois de entregar sua
vida à morte pela salvação do mundo, ressurgirá e governará a Terra,
alimentará os povos com as águas vistas por Ezequiel, águas que saíam do
verdadeiro Templo, que, mesmo tendo sido abatido, ressurge por sua
própria força, com o vinho com o qual se tingiu de púrpura a cândida veste
do Cordeiro sem mancha e do Pão vindo do Céu.
598.9Sedentos, vinde às águas! Famintos, nutri-vos! Exaustos, bebei do
meu vinho, e vós, doentes! Vinde, vós que não tendes dinheiro, vós que não
tendes saúde, vinde! E vós que estais nas trevas! E vós que estais mortos,
vinde! Eu sou Riqueza e Saúde. Eu sou Luz e Vida. Vinde, vós que
procurais o Caminho! Vinde, vós que procurais a Verdade! Eu sou o
Caminho e a Verdade! Não temais por não poderdes consumar o Cordeiro,
porque faltam as vítimas verdadeiramente santas neste Templo profanado.
Todos vós tereis o que comer, tereis o Cordeiro de Deus que veio tirar os
pecados do mundo, como disse falando de Mim o último dos profetas do
meu povo. Daquele povo ao qual Eu pergunto: Povo meu, que foi que Eu te
fiz? Em que foi que Eu te entristeci? Que é que Eu podia te dar a mais, e
que Eu não tenha dado? Eu instruí os teus intelectos, curei os teus doentes,
fiz o bem aos teus pobres, matei a fome de tuas multidões, te amei em teus
filhos, perdoei, rezei por ti. Eu te amei até ao Sacrifício. E tu, o que é que
dás ao teu Senhor? Uma hora ainda te é dada, e é a última, ó meu povo, ó
minha cidade real e santa. Converte-te nesta hora ao Senhor teu Deus!
598.10– Ele falou palavras verdadeiras!
– Assim fo! E Ele verdadeiramente faz o que foi dito!
– Como um pastor, Ele cuida de todos!
– Como se fôssemos as ovelhas dispersas, doentes, na escuridão, e veio
para levar-nos pelo caminho justo, para curar-nos na alma e no corpo, para
guiar-nos.
– Verdadeiramente todos os povos vão a Ele. Vede lá aqueles gentios
como estão admirados!
– Ele pregou a paz.
– Amor foi o que Ele deu.
– Não entendo o que é que Ele diz sobre o sacrifício. Ele fala como se
tivesse que ser morto.
– Assim é, se Ele é o Homem visto pelos profetas, o Salvador.
– E fala como se todo o povo tivesse que maltratá-lo. Isso não
acontecerá nunca. O povo, nós, o amamos.
– É nosso amigo. Nós o defenderemos.
– Ele é galileu, e nós da Galileia daremos a vida por Ele.
– Ele é da raça de Davi, e nós só levantaremos as mãos para defendê-lo,
nós que somos da Judéia.
– E nós que Ele amou como amou a vós, nós de Auranítide, da Pereia,
da Decápole, será que poderemos esquecer-nos Dele? Todos. Todos nós o
defenderemos.
Estas são as palavras que se ouvem por entre a multidão que já está
muito grande. Como são passageiras as intenções humanas! Pela posição do
sol, creio que agora deve ser nove horas da manhã. Vinte e quatro horas
mais tarde todo esse povo já estará, desde há muitas horas, ao redor do
Mestre para torturá-lo com ódio e com pancadas, e gritando e pedindo a sua
morte. Poucos, muito poucos, poucos demais — dentre esses milhares de
pessoas que se ajuntaram de todas as partes da Palestina e de outros lugares,
e que receberam luz, saúde, sabedoria, perdão de Cristo — serão aqueles
que não somente deixarão de arrancá-lo das mãos dos inimigos, porque isso
não lhes é possível pelo número bem pequeno em comparação com o
número dos que O agridem, mas também porque não saberão confortá-lo,
dando-lhe prova de amor pelo menos acompanhando-o com um rosto
amigo. Os louvores, a aprovação, os comentários cheios de admiração se
espalham pelo amplo pátio, como as ondas que vêm do alto mar e vão
morrer lá longe, na praia.
598.11Escribas, judeus e fariseus tentam neutralizar o entusiasmo do
povo, assim como a aversão dele contra os inimigos de Cristo, dizendo:
– Ele está delirando! Seu cansaço é tão grande que o leva a delirar. Ele
vê perseguições, quando lhe estão prestando honras. Suas pregações têm
palavras de sua conhecida sabedoria, mas são misturadas com frases de
delírio. Ninguém lhe quer fazer mal. Nós já compreendemos.
Compreendemos que é…
Mas o povo fica incerto, ao ver tanta mudança de intenções, e alguns se
revoltam dizendo:
– Ele curou meu filho, que era demente. Eu sei o que é a loucura. Um
louco não fala como Ele!
E um outro diz:
– Deixa-os falar. São umas víboras, que têm medo de que as cacetadas
do povo lhes arrebentem os rins. Eles cantam a doce canção do rouxinol
para enganar-nos, mas se prestas bem atenção verás que nela está o assobio
da serpente.
E outro diz ainda:
– Escoltas do povo de Cristo, estai vigilantes! Quando um inimigo
acaricia, está com o punhal escondido na manga e estende a mão para ferir.
Olhos abertos e coração preparado! Os chacais não podem virar mansos
cordeirinhos.
– Dizes bem: a coruja seduz e encanta os pequemos pássaros ingênuos
com a imobilidade de seu corpo e com a mentirosa alegria de sua saudação.
Ela ri e os chama com o seu grito, mas já está pronto para os devorar.
E assim por diante, de um grupo a outro.
598.12Contudo, há também os gentios. Os gentios foram constantes e
sempre mais numerosos a escutar o Mestre nesses dias de festa. Sempre
separados da multidão, porque o exclusivismo hebraico-palestino é forte e
os rejeita, querendo ocupar os primeiros lugares ao redor do Rabi, eles têm
o desejo de se aproximarem dele e falar-lhe.
Um grupo grande deles está olhando para Filipe, que a multidão foi
empurrando para um canto. Eles se aproximam dele e lhe dizem:
– Senhor, nós desejaríamos ver de perto Jesus, o teu Mestre. E falar
com Ele pelo menos uma vez.
Filipe se põe na ponta dos pés para ver se descobre algum dos apóstolos
que esteja mais perto do Senhor. E, então, ele vê André e lhe grita, depois
de havê-lo chamado:
– Aqui estão uns gentios que quereriam saudar o Mestre. Pergunta a Ele
se quer acolhê-los.
André, que está alguns metros longe de Jesus, comprimido no meio do
povo, vai abrindo ala sem muita cerimônia, distribuindo cotoveladas
generosamente, e gritando:
– Abri caminho! Abri caminho, eu estou dizendo. Eu preciso chegar até
o Mestre.
Ele chega e lhe transmite o desejo dos gentios.
– Leva-os para aquele canto. Eu irei até eles.
E enquanto Jesus procura passar pelo meio do povo, João, que voltou
com Pedro, o próprio Pedro, Judas Tadeu, Tiago de Zebedeu e Tomé, que
deixa o grupo de seus parentes, que ele encontrou no meio da multidão,
para ajudar seus companheiros, lutam para abrir-lhe o caminho. 598.13E eis
que Jesus já chegou onde estão os gentios que o saúdam.
– A paz esteja convosco. Que quereis de Mim?
– Ver-te. Falar-te. As tuas palavras nos deixaram perturbados. Sempre
temos desejado falar-te, para dizer-te que a tua palavra nos tocou. Mas
estávamos esperando fazê-lo no momento propício. Hoje… Tu estás
falando de morte… E ficamos com medo de não podermos falar-te, se não
aproveitássemos esta hora. Mas será possível que os hebreus possam matar
o melhor dos seus filhos? Nós somos gentios, e a tua mão já nos fez
benefício. A tua palavra era desconhecida para nós. Tínhamos ouvido falar
de Ti vagamente. Mas nunca te havíamos visto, nem nos havíamos
aproximado de Ti. E, contudo, como estás vendo, te prestamos esta
homenagem. E, conosco, o mundo todo Te honra.
– Sim, chegou a hora na qual o Filho do Homem vai ser glorificado
pelos homens e pelos espíritos.
Agora a multidão está novamente ao redor de Jesus. Mas com esta
diferença: na primeira fila, estão os gentios, e atrás deles, os outros.
– Mas, então, se é a hora da tua glorificação, Tu não morrerás, como
dizes, ou como nós fomos capazes de entender. Porque morrer de um modo
assim não é ser glorificado. Como é que poderás reunir o mundo todo
debaixo do teu cetro, se Tu morres antes de o teres feito? Se o teu braço vai
ficar imóvel na morte, como é que poderá ele triunfar e reunir todos os
povos?
– Morrendo, Eu dou a vida. Morrendo, Eu edifico. Morrendo, Eu crio
um povo novo. É no sacrifício que se consegue a vitória. Em verdade, Eu
vos digo que se o grão de trigo cair na terra e não morrer, ficará infecundo.
Mas, pelo contrário, se ele morrer, produzirá muito fruto. Quem ama a sua
vida, a perderá. Mas quem odeia a sua vida neste mundo, a salvará para a
vida eterna. Por isso, Eu tenho o dever de morrer, para dar esta vida eterna a
todos os que me seguem, para servir à Verdade. Quem quiser me servir,
venha. No meu reino os postos não são reservados para este ou aquele povo.
Quem quiser me servir, venha e me siga, e onde Eu estou, estará também o
meu servo. Quem me serve honrará o meu Pai, o Único, o Verdadeiro Deus,
o Senhor do Céu e da Terra, Criador de tudo o que existe, o Pensamento, a
Palavra, o Amor, a Vida, o Caminho, a Verdade, Pai, Filho, Espírito Santo,
Um só sendo Trino, e Trino sendo um só, Único verdadeiro Deus. 598.14Mas
agora minha alma está perturbada. E que direi? Talvez Eu diga: “Pai, salvame desta hora”? Não. Eu direi: “Pai, glorifica o teu Nome!”.
Jesus abre os braços em cruz, uma cruz cor de púrpura, em contraste
com o mármore do pórtico, e levanta o rosto, oferecendo-se, orando e
elevando-se com a alma ao Pai.
E uma voz, mais forte do que o trovão, imaterial, isto é, não semelhante
a nenhuma voz humana, mas muito bem ouvida por todos os ouvidos, enche
o céu sereno daquele belíssimo dia de abril, e vibra, mais potente do que o
acorde de um órgão gigante, belíssima em sua tonalidade, e proclama:
– Eu o glorifiquei, e ainda o glorificarei.
O povo ficou com medo. Aquela voz, tão forte, que fazia tremer o chão,
e que estava por cima dele, aquela voz misteriosa, diferente de qualquer
outra, vinda de uma fonte desconhecida, aquela voz que preenche tudo,
desde o setentrião até o meio-dia, do oriente ao ocidente, aterroriza os
hebreus e enche de espanto os pagãos. Os primeiros se jogam no chão, os
que podem fazê-lo, murmurando e tremendo:
– Agora morreremos[148]! Acabamos de ouvir a voz do Céu. Um anjo
nos falou! –e batem no peito, esperando a morte.
E os segundos gritam:
– Um trovão! Um estrondo! Vamos fugir! A terra rugiu! Tremeu!
Mas fugir é impossível, no meio daquela confusão que aumenta ainda
mais por causa daqueles que, estando ainda fora das paredes do Templo,
correm para o lado de dentro delas, gritando:
– Piedade de nós! Corramos! Aqui é lugar santo! Não se rachará o
monte onde está o altar de Deus.
E, assim dizendo, cada um fica onde está, impedido de sair, por causa
da multidão e do espanto.
598.15Sobre os terraços do Templo sobem correndo os sacerdotes, os
escribas e os fariseus, que estavam espalhados pelos meandros de lá, os
levitas e os estrategistas. Todos eles agitados e atordoados. Mas de todos
eles quem desce para o meio do povo que está nos pátios, outro não é senão
Gamaliel com seu filho. Jesus o vê passar, todo vestido de branco, em sua
veste de linho, que é tão branca que chega a brilhar quando exposta à forte
luz do Sol que nela vem bater.
Jesus, olhando para Gamaliel, mas como se estivesse falando a todos,
levanta a voz, dizendo:
– Não é para Mim, mas para vós que veio aquela voz do céu.
Gamaliel para, se vira, atravessa com o olhar de seus olhos profundos e
negros — que o hábito de agir como um mestre, venerado como um
semideus torna involuntariamente duros como os das águias rapaces — vão
ao encontro do olhar cor de safira, límpido, doce em sua majestade, de
Jesus…
E Jesus prossegue:
– Agora se faz o juízo deste mundo. Agora o Príncipe das Trevas está
para ser expulso. E Eu, quando for levantado, atrairei todos a Mim, porque
assim é que o Filho do homem salvará.
598.16– Nós aprendemos nos livros da Lei que o Cristo vive para sempre.
E Tu, que dizes ser o Cristo, agora dizes que deves morrer. E dizes também
que és o Filho do homem e salvarás ao seres levantado. Então, quem és Tu?
És o Filho do homem ou és o Cristo –diz a multidão, que se sente
reanimada.
– Eu sou uma única Pessoa. Abri vossos olhos à Luz. Ainda por um
pouco de tempo, a Luz está convosco. Caminhai para a Verdade, enquanto
tendes a Luz entre vós, para que não vos surpreendam as Trevas. Os que
caminham no escuro não sabem para onde estão indo. Enquanto tendes a
Luz entre vós, crede nela, para serdes filhos da Luz.
E Jesus se cala.
A multidão está perplexa e dividida. Parte dela vai-se embora,
balançando a cabeça.
Outra parte fica observando o comportamento dos principais
dignitários, dos fariseus, dos chefes dos sacerdotes, dos escribas… E
especialmente de Gamaliel, e regula seus próprios movimentos de acordo
com o comportamento deles. Outros, ainda, aprovam com a cabeça e se
inclinam diante de Jesus com claros sinais de que lhe querem dizer: “Nós
cremos. Nós te honramos, por seres quem és.” Mas eles não têm coragem
de formar fileiras abertamente a favor dele. Eles têm medo dos olhares
atentos dos inimigos de Cristo, dos poderosos, que os estão vigiando do alto
dos terraços que ficam acima das galerias, ao redor dos pátios do Templo.
598.17Também Gamaliel, depois de ter ficado pensativo por alguns
minutos, e até parece estar fazendo perguntas aos mármores do pavimento
para ter deles alguma resposta para suas perguntas interiores, se dirige para
a saída, depois de ter sacudido a cabeça e os ombros, como um sinal de
desilusão e desprezo… e passa, todo empertigado diante de Jesus sem nem
olhar para Ele.
Jesus, por sua vez, olha para ele com compaixão… E levanta de novo a
voz com força — ela é como um toque em instrumento de bronze — para
estar acima de todos os rumores e poder ser ouvido pelo grande escriba, que
lá se vai desiludido. Parece estar falando para todos, mas fala somente para
ele, é evidente.
Jesus, diz em voz muito alta:
– Quem crê em Mim, na verdade não crê em Mim, mas naquele que me
mandou, e quem me Vê está vendo Aquele que me mandou. E esse Alguém
é o Deus de Israel! Porque não há outro Deus, além dele.
Por isso é que Eu digo: Se não podeis crer em Mim, como aquele que é
chamado o filho de José de Davi, e que é filho de Maria, também da estirpe
de Davi, da Virgem vista pelo Profeta e que nasceu em Belém, como foi
predito pelas profecias, tendo como seu precursor o Batista, também como
foi dito há séculos, crede pelo menos na Voz do vosso Deus que vos falou
do Céu. Crede em Mim como Filho deste Deus de Israel. Porque se não
credes em quem vos falou do Céu, não é a Mim que ofendeis, mas ao vosso
Deus, do qual Eu sou Filho.
Não queirais permanecer nas trevas! Eu vim como Luz ao mundo, a fim
de que quem crê em Mim não fique nas trevas. Não queirais ter remorsos
que não podereis mais aplacar depois, quando Eu já tiver voltado para lá de
onde Eu vim, e eles seriam um castigo bem duro de Deus para a vossa
teimosia. Eu estou pronto a perdoar, enquanto estou entre Vós, enquanto o
julgamento não tiver sido feito, e também porque, no que depende de Mim,
tenho o desejo de perdoar. Mas diferente é o pensamento de meu Pai.
Porque Eu sou a Misericórdia e Ele é a Justiça.
Em verdade Eu vos digo que, se alguém ouve as minhas palavras e
depois não as cumpre, não sou Eu que o julgo. Eu não vim ao mundo para
julgar, mas para salvar o mundo. Contudo, mesmo não sendo Eu que julgo,
em verdade Eu vos digo que há quem vos julgue pelas vossas ações. Meu
Pai, que me mandou, julga aqueles que rejeitam sua Palavra. Sim. Quem me
despreza e não reconhece a Palavra de Deus, e não acolhe as palavras do
Verbo, esse já tem quem o julgue: a própria Palavra que Eu anunciei, Ela é
que o julgará no último dia.
De Deus não se zomba, foi dito. E o Deus de quem se zombou será
terrível para aqueles que o julgavam louco e mentiroso.
Lembrai-vos todos de que as palavras que Me ouvistes dizer são de
Deus. Porque Eu não falei por Mim, mas o meu Pai, que me mandou, Ele
mesmo foi quem me prescreveu o que é que Eu devo dizer, o que é que
devo falar. E Eu obedeço à sua ordem, pois Eu sei que seu mandamento é
justo. Todo mandamento de Deus é vida eterna. E Eu, vosso Mestre, douvos o exemplo de obediência a todas as ordens de Deus. Por isso ficai certos
de que as coisas que Eu vos disse e digo, Eu as disse e digo como o meu Pai
as deu para vo-las transmitir. E o meu Pai é o Deus de Abraão, de Isaque e
de Jacó, o Deus de Moisés, dos patriarcas e dos profetas, o Deus de Israel, o
vosso Deus.
Palavras de luz que caem nas trevas que já escureceram os corações!
Gamaliel, que havia parado outra vez, com a cabeça inclinada, põe-se a
andar de novo… Outros o acompanham, sacudindo a cabeça ou
criticando…
598.18Jesus também põe-se a andar. Mas antes Ele diz a Judas Keriot:
– Vai para onde tens que ir.
E aos outros diz:
– Cada um é livre para ir para onde deve ou para onde quer. Comigo
fiquem os discípulos pastores.
– Oh! Leva-me contigo, Senhor! –diz Estêvão.
– Vem!…
Eles se separam… Não sei aonde vai Jesus. Mas sei aonde vai Judas de
Keriot. Ele vai para a Porta Bela, e já vai subindo os diversos degraus que
do Átrio dos Gentios levam ao das mulheres e, depois de tê-lo atravessado,
vai subindo, no fim deles, outros degraus; observa como vai o Átrio dos
hebreus e com raiva bate o pé no chão, por não ter encontrado quem está
procurando.
Ele volta. Vê um dos guardas do Templo. E o chama. Depois, com sua
costumeira arrogância, lhe dá esta ordem:
– Vai à casa do Eleazar ben Anás. Que ele venha logo à Porta Bela. E
dize-lhe que Judas de Simão o está esperando para coisas sérias.
Ele se encosta a uma coluna e fica esperando. Passa aí pouco tempo.
Eleazar, filho de Anás, Elquias, Simão, Doras, Cornélio, Sadoque, Naum e
outros mais, acorrem todos com um grande esvoaçar de vestes.
Judas lhes fala em voz baixa, mas excitado:
– Esta tarde! Depois da ceia. No Getsêmani. Ide até lá e prendei-o. Daime o dinheiro.
– Não. Nós te daremos quando tu vieres para ires conosco nesta tarde.
Nós não confiamos em ti. E te queremos conosco. Nunca se sabe!… –diz,
rindo-se dele, Elquias.
Judas fica abrasado de indignação por causa daquela insinuação. E jura:
– Eu juro por Javé que estou dizendo a verdade!
Sadoque lhe responde:
– Está bem. Vamos. Mas o melhor mesmo é fazer assim. Quando
chegar a hora, tu virás, tomarás contigo os designados para a captura e irás
com eles, para que não aconteça que os guardas estultos prendam agarrem
Lázaro, por engano, e façam que daí resultem problemas. Por isso, tu
mostrarás aos guardas, com um sinal, qual é o homem. Deves entender!
Naquela hora já terá entrado a noite… e haverá pouca luz… Os guardas já
estarão cansados e com sono… Mas se tu os guiares! Isto mesmo! E vós,
que dizeis?
E o pérfido Sadoque se vira para os companheiros, e diz:
– Eu proporia que o sinal fosse um beijo. Um beijo! É o melhor sinal
para se mostrar o amigo traído. Ah! Ah!
Todos riem. É um coro de demônios zombando.
Judas está furioso. Mas não volta atrás. Não volta atrás mais. Sofre pela
zombaria que fazem dele, mas não por aquilo que está para fazer. E a tal
ponto, que diz:
– Mas lembrai-vos bem de que eu quero as moedas contadas na bolsa
antes de sair daqui com os guardas.
– Tu as terás! Tu as terás! Até a bolsa nós te daremos, a fim de que
possas conservar nela aquelas moedas como uma lembrança do teu amor.
Ahl Ah! Ah! Adeus, serpente!
Judas está lívido. Já está lívido. Pois ele não perderá nunca mais aquela
cor e aquela expressão de um espanto desesperado. Pelo contrário, com o
passar das horas se irá acentuando sempre mais, até ficar insustentável à
vista, quando ele estiver pendurado na árvore… Foge de lá…
598.19Jesus foi refugiar-se no jardim de uma casa amiga. É um jardim
tranquilo de uma das primeiras casas de Sião. Ele é cercado por muros altos
e antigos. É silencioso e fresco, coberto pelas frondes balançantes das
velhas árvores. Uma voz de mulher está cantando, não longe de lá, uma
doce cantiga de ninar.
Devem ter passado muitas horas, porque os servos de Lázaro, já de
volta, depois de terem andado não sei por onde, dizem:
– Os teus discípulos já estão na casa onde está sendo preparada a ceia, e
João, depois de ter trazido os frutos para os filhos de Joana de Cusa, foi
buscar as mulheres para fazer que sejam acompanhadas por José de Alfeu,
que hoje veio sozinho, quando sua mãe já não esperava mais vê-lo, e depois
para ir de lá à casa da Ceia, pois já é a véspera.
– Nós também iremos. Já chegou a hora das ceias…
Jesus se levanta e torna a pôr o manto.
– Mestre, ali fora estão algumas pessoas do censo. E elas quereriam
falar-te sem serem vistas pelos fariseus –diz um dos servos.
– Faze que elas entrem. Ester não se oporá. Não é verdade, mulher? –
diz Jesus, virando-se para uma mulher já madura, que está chegando para
saudá-lo.
– Não, Mestre. Minha casa é tua. Tu sabes disso. Foi pouco demais o
tempo em que fizeste uso dela!
– O suficiente para que eu possa dizer ao meu coração: esta foi uma
casa amiga.
Depois dá esta ordem ao servo:
– Manda entrar os que estão esperando.
598.20Entram umas trinta pessoas de nobre aparência. E o cumprimentam.
E um deles fala por todos os outros:
– Mestre, as tuas palavras nos fizeram estremecer. Nós ouvimos em Ti
a voz de Deus. Mas dizem que somos loucos porque cremos em Ti. Que
faremos, então?
– Não é em Mim que crê quem diz crer em mim, mas crê naquele que
me mandou, porque Eu sou uma só coisa com meu Pai. Por isso eu vos digo
que deveis crer para não ofender a Deus, que é meu Pai, e também vosso
Pai, e vos ama até o ponto de sacrificar por vós o seu Unigênito. Porque, se
há dúvida nos corações de que Eu seja o Cristo, não há dúvida de que Deus
esteja no Céu. E a voz de Deus, que Eu chamei de Pai hoje no Templo,
pedindo-lhe que dê glória ao seu Nome, respondeu Àquele que o chamava
de Pai, e sem chamá-lo de “mentiroso e blasfemador”, como muitos dizem.
Deus confirmou quem é que Eu sou. Sou a sua Luz. Eu sou a Luz que veio
ao mundo. Eu vim como Luz ao mundo a fim de que quem crê em Mim não
fique nas trevas. Se alguém ouve as minhas palavras e depois não as guarda,
Eu não o julgo. Eu não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo.
Quem me despreza e não recebe bem as minhas palavras tem quem o
julgue. A palavra por Mim anunciada o julgará no último dia. Porque ela
era sábia, perfeita, doce, simples como é Deus. Porque aquela palavra é
Deus. Não fui Eu, Jesus de Nazaré, chamado o filho de José, marceneiro da
estirpe de Davi e filho de Maria, jovem hebreia, virgem da estirpe da Davi
casada com José, que falei. Não. Eu não falei por Mim mesmo. Mas, sim, o
meu Pai, Aquele que está nos céus e se chama Javé, foi Ele que falou hoje,
foi Ele que me mandou e me prescreveu o que devo dizer e sobre o que é
que devo falar. E eu sei que no seu Mandamento está a vida Eterna.
Portanto, as coisas que Eu digo, digo-as como mas disse o Pai, e nelas está
a Vida. Por isso, Eu vos digo: escutai-as. Ponde-as em prática e tereis a
Vida. Porque a minha palavra é Vida. E quem a acolhe, acolhe, junto
comigo, o Pai do Céu que Me mandou para dar-vos a Vida. E quem tem
Deus em si tem em si a Vida. 598.21
Ide. Que a paz venha a vós e em vós
permaneça.
Ele os abençoa e se despede deles. Abençoa também os discípulos.
Detém somente Isaque e Estêvão. Ele beija os outros e se despede deles. E
depois que todos saíram, Ele sai, por último, junto com os dois, e vai indo
com eles pelas ruazinhas mais solitárias e já escuras, até chegar à casa do
Cenáculo. E, tendo chegado lá, Ele os abraça e abençoa, com um especial
amor a Isaque e a Estêvão, os beija, os abençoa de novo, olha-os de
afastarem, depois bate à porta, e entra…
598.22Diz Jesus:
– Colocarás aqui as visões do adeus a minha Mãe, do Cenáculo e da
Ceia… E agora façamos nós dois, Eu e tu, a verdadeira comemoração
pascal. Vem…
[147] Escutai. È o início de outra série de citações, textuais ou parafraseadas, que direcionam (na sucessão bíblica) a: Salmo
78,23-25; Isaías 9,5; 11,1-4.10-12; 40,10-11; 42,1-7; 50,6; 53,2-12; 55,1-3; 61,1-2; 63,1; Ezequiel 34,11.16; 47,1-12; Daniel
9,24-27; Oséias 14,2; Miquéias 5,3-4; Zacarias 9,9-10. O último dos profetas, ao qual se faz alusão em 598.9, é João Batista. As
profecias às quais se faz alusão em 598.17 são as de: Isaías 7,14; Miquéias 5,1.
[148] morreremos, como se tivessem visto Deus, de acordo com o que se lê em: Êxodo 20,19; 33,20; Juízes 6,22-23; 13,22.
Expressões análogas em 349.9, 619.6 e 630.27.
599. A chegada ao Cenáculo e o adeus de Jesus à
Mãe.
17 de fevereiro de 1944.
599.1Estou vendo o Cenáculo, onde deve consumar-se a Páscoa. Vejo-o
em seus pormenores. Eu poderia contar todas as rugas da parede e as fendas
do pavimento. É um salão não perfeitamente quadrado, mas também pouco
retangular.
Deve haver uma diferença de um metro ou pouco mais, no máximo,
entre o lado mais comprido e o mais curto. O forro é baixo. Talvez ele
assim pareça, porque a largura não corresponde à altura. É levemente
encurvado, ou seja, os dois lados mais curtos não terminam em ângulo reto
com o forro, mas com um ângulo em forma de arco, como esse:
.
Nos dois lados mais curtos há duas janelas largas e baixas, em frente
uma da outra. Não sei para quais lados elas estão viradas, se é sobre algum
pátio ou sobre alguma entrada, porque agora estão com as venezianas, que
as fecham, fechadas. Eu disse venezianas. Não sei se o termo está certo. São
como uns batentes de pranchas bem fechadas por meio de uma barra de
ferro que as atravessa.
O pavimento é de tijolos largos, de argila cozida, que o tempo fez ficar
pálidos e quadrados.
No centro do forro está pendurada uma lâmpada de azeite, com vários
bicos.
Das duas paredes mais compridas, uma é toda sem aberturas. Na outra,
em vez disso, há uma portinha, em um canto, que é acessada por uma
escadinha, sem corrimão, de seis degraus, terminando em um patamar de
um metro quadrado. Sobre este, pegado à parede, há um outro degrau, sobre
o qual se abre a porta nivelada com o degrau. Não sei se me expliquei bem.
Eu tento fazer o desenho:
As paredes são simplesmente caiadas, sem ornatos. No centro do salão
há uma mesa grande, retangular, muito comprida em comparação com a
largura, meio paralela à parede, que é mais comprida e feita de uma madeira
comum. Ao longo das paredes compridas, estão as cadeiras que vão ser
usadas. Nas paredes mais curtas, abaixo da janela, há uma espécie de baú,
sobre as quais há umas bacias e ânforas, e por baixo de uma outra janela
está uma credência baixa e comprida sobre a qual, por enquanto, não há
nada.
599.2É esta é a descrição do salão onde se irá consumir a Páscoa.
Justamente hoje é que estou vendo-a distintamente, a ponto de ter podido
contar os degraus e observar todos os seus particulares. E agora que vem
chegando a noite, meu Jesus me conduz ao final da contemplação.
Estou vendo que o salão me conduz pela escadinha dos seis degraus
para uma entrada escura, que fica ao lado esquerdo, como é vista daqui por
mim, e se abre para a rua por uma porta larga, baixa e maciça, reforçada
com brochas e barras de ferro. Diante da portinha, que vai do cenáculo para
a entrada, há uma outra porta para quem vai para a outra sala menor. Eu
diria que o Cenáculo foi feito num lugar escavado sobre um desnível do
terreno, pelo que se vê do resto da casa e da rua, e é como um meio aterro,
uma sala meio subterrânea, que precisou ser limpa e adaptada, mas que
sempre ficou mergulhada um bom metro no solo, talvez para torná-la mais
alta e proporcionada ao tamanho do conjunto.
Na sala que agora estou vendo está Maria com outras mulheres. Destas,
eu reconheço Madalena e Maria, mãe de Tiago, de Judas e de Simão. Parece
que elas acabaram de chegar, conduzidas por João, porque estão tirando os
seus mantos, pondo-os dobrados sobre os banquinhos espalhados pela sala,
enquanto saúdam o apóstolo que vai saindo, uma mulher e um homem que
foram ao seu encontro quando chegaram, e que eu tenho a impressão de que
são os donos da casa e discípulos, ou que simpatizam com o Nazareno, pois
eles estão cheios de atenções e com uma atenção respeitosa para com
Maria. Ela está vestida com um azul celeste escuro, um azul quase anil
muito escuro. Está com um véu branco na cabeça, que aparece quando ela
tira o manto que lhe cobre a cabeça. Ela está com um rosto muito
emagrecido. Parece envelhecida. Está muito triste, ainda que sorria com
doçura. Mas está muito pálida. Até os seus movimentos são cheios de
cansaço e de incerteza, como os de uma pessoa que está absorta em algum
pensamento.
599.3Pela porta semiaberta vejo que o proprietário vai e vem pela entrada
e pelo cenáculo que ele está iluminando completamente, acendendo os
últimos bicos da lâmpada. Depois ele vai até à porta que dá para a estrada e
a abre para que Jesus entre com os apóstolos. Vejo que já chegou o
entardecer, pois as sombras da noite já vêm descendo pela rua estreita, por
entre as casas altas. E Ele está com todos os apóstolos.
Jesus cumprimenta o proprietário com sua habitual saudação: “A paz a
esta casa”, e depois, enquanto os apóstolos vão descendo para o cenáculo,
Ele entra na sala onde está Maria. As piedosas mulheres O saúdam com
profundo respeito, e deixam à vontade a Mãe e o Filho.
Jesus abraça sua Mãe e a beija na fronte. Maria beija antes a mão do
seu Filho e depois a face direita. Jesus faz que Maria se assente e assenta-se
também a seu lado, em dois bancos que estão perto um do outro. Ele a faz
sentar-se, acompanhando-a até o banco, levando-a pela mão, e continua a
segurar a mão dela mesmo depois de Ela ter-se sentado.
Também Jesus está absorto, pensativo e triste, por mais que se esforce
para sorrir. Maria olha com ansiedade a expressão do rosto dele. Pobre Mãe,
que pela graça e pelo amor compreende que hora é esta! Contrações de dor
se deixam ver no rosto de Maria, e seus olhos se dilatam, diante de uma
visão interna de espasmo. Mas ela não faz cenas. É majestosa como o Filho.
599.4Ele lhe fala. E a saúda, e se recomenda às suas orações.
– Minha Mãe, Eu vim para receber força e conforto de ti. Eu sou como
um menino pequenino, minha mãe, que sente necessidade do coração da
mãe para a sua dor e do seio da mãe para sua força. Eu voltei a ser, nesta
hora, o teu pequeno Jesus de outros tempos. Não sou mais o Mestre, minha
Mãe. Sou unicamente o teu Filho, como em Nazaré quando eu era pequeno,
como em Nazaré antes de deixar a vida oculta. Eu tenho só a ti. Os homens
neste momento não são amigos, e amigos leais, do teu Jesus. Eles não são
nem corajosos em fazer o bem. Somente os malvados é que sabem ser
constantes e fortes em fazer o mal. Mas tu me és fiel, és a minha força,
minha Mãe, nesta hora. Sustenta-me com o teu amor e a tua oração. Não há
senão tu, que nesta hora sabes orar entre os que mais ou menos me amam.
Rezar e compreender. Os outros estão em festa, pensando só em festa, ou
pensando em cometer delitos, enquanto que eu vou sofrendo muitas coisas.
Mas muitas coisas morrerão depois desta hora. E entre elas a humanidade
deles, e saberão ser dignos de Mim, todos, menos aquele que se perdeu e
que nenhuma força é capaz de reconduzir ao arrependimento. Mas, por
enquanto, são homens tardos, que não percebem que vou morrer, mas se
alegram crendo mais do que nunca que está próximo o dia do meu triunfo.
Os hosanas de dias atrás os deixaram embriagados. Minha Mãe, Eu vim
para esta hora e, sobrenaturalmente, Eu a vejo chegar com alegria. Mas o
meu Eu também a teme, porque este cálice tem o nome de traição,
renegação, ferocidade, blasfêmia, abandono. Sustenta-me, ó minha mãe.
Assim como quando, com tua oração, atraíste sobre ti o Espírito de Deus,
dando por Ele ao mundo o Esperado das Nações, atrai agora sobre o teu
Filho a força que me ajude a completar a obra para a qual Eu vim. Mãe,
adeus. Abençoa-me, Mãe; também pelo Pai. E perdoa a todos. Perdoemos
juntos, desde agora perdoaremos aos que nos torturam.
599.5Jesus, ao falar, foi deslizando, de joelhos, até os pés de Maria, e a
ficou olhando, segurando-a abraçada pela cintura.
Maria chora sem gemer, com o rosto levemente levantado, em uma
oração interior a Deus. As lágrimas lhe rolam sobre as faces pálidas, caem
sobre o seu colo e sobre a cabeça que Jesus, por fim, apoia sobre seu
coração. Depois Maria põe sua mão sobre a cabeça de Jesus, como para
abençoá-lo, e depois se inclina, beija-o sobre os cabelos e os acaricia,
acaricia os ombros, os braços, pega o seu rosto entre as mãos e o move em
Sua direção, o aperta contra o coração. Beija-o ainda entre lágrimas, na
testa, no rosto, nos olhos dolorosos, depois o nina, aquela pobre cabeça
cansada, como se Ele fosse uma criancinha, como eu a vi niná-lo na gruta
do divino Recém-nascido. Mas agora ela não canta, somente diz:
– Filho! Filho! Meu Jesus!
E o diz com uma voz que me dilacera o coração.
Depois Jesus se levantar. Ajeita o manto, fica em pé diante da Mãe, que
está ainda chorando, e por sua vez a abençoa. Em seguida, dirige-se para a
paorta.
Antes de sair, lhe diz:
– Minha Mãe, Eu virei ainda, antes de consumar a minha Páscoa. Reza,
enquanto me esperas.
E sai.

 

(depois já começa as 24 horas da paixão) Santa Ceia – Agonia – Prisão – Julgamento – Flagelação – Carrega a Cruz e Morte

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